• Nenhum resultado encontrado

PARTE I – MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

3 MOBILIZAÇÃO DO DIREITO: APROXIMAÇÃO TEÓRICO-EMPÍRICA ENTRE A

3.1. Reconsiderando o Mito dos Direitos: A Relevância Política dos Direitos

O debate em torno da mobilização do direito remonta a meados da década de 1950, nos Estados Unidos da América (EUA), impulsionado pelo caso Brown vs.

Board of Education42 (1954-1955), em que uma organização fundada em 1909, que

lutava pela igualdade racial – a National Association for the Advancement of Colored

People (NAACP) – recorreu à Suprema Corte norte-americana, para tentar progredir

na superação da discriminação legalmente sancionada. Ocasião em que foi julgada a inconstitucionalidade da segregação entre brancos e negros nas escolas deste país.43

O caso trouxe ao debate sociojurídico norte-americano análises sobre o papel do direito e dos tribunais para a luta social e para provocar mudanças políticas e sociais. Os primeiros trabalhos focavam somente na atuação da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (EUA), que mudava seu entendimento, ao promover a “garantia de direitos civis e liberdades individuais no contexto de segregação racial naquele país” (FANTI, 2016, p. 18). Com isso, tais explicações – convencionais – acabavam atribuindo a então chamada “revolução dos direitos” [“rights revolution” (EPP, 1998)] à atuação de lideranças judiciais ativistas (EPP, 1998).

Quer dizer, uma explicação parcial, já que não inseriam em seu foco de análise os atores sociais envolvidos nas demandas levadas ao direito, ou melhor, às cortes.

42 “The case that came to be known as Brown v. Board of Education was actually the name given to five

separate cases that were heard by the U.S. Supreme Court concerning the issue of segregation in public schools. These cases were Brown v. Board of Education of Topeka, Briggs v. Elliot, Davis v.

Board of Education of Prince Edward County (VA.), Boiling v. Sharpe, and Gebhart v. Ethel. While

the facts of each case are different, the main issue in each was the constitutionality of state- sponsored segregation in public schools”. Disponível em: http://www.uscourts.gov/educational- resources/educational-activities/history-brown-v-board-education-re-enactment. Acesso em 12 de nov. 2017.

43 “The decision, moreover, was part of a much larger transformation in which the Supreme Court, for

the first time in its history, began deciding and supporting individual rights claims in a sustained way. As late as the mid-thirties, less than 10 percent of the Court’s decisions involved individual rights other than property rights” (EPP, 1998, p. 1-2).

Este tipo de análise – convencional – é realizado de cima para baixo (top-down

approach) e tende a reduzir o direito àquilo que as cortes dizem que ele é,

negligenciando seu caráter estratégico-político e “as formas sutis, mas significativas, por meio das quais o direito molda o cenário estratégico dentro do qual as pessoas se relacionam” (MCCANN, 1994). Tal concepção, ainda,

Tends to disregard the designs and aspirations of target populations who mobilize the law in their struggles for change. Without directly examining those various meanings, tactics, and goals – i.e., the legal consciousness – of activists themselves, it is rather presumptuous to judge the relative effectiveness of their actions (MCCANN, 1994, p. 292).

Foi a partir da década de 1970 que começaram a aparecer estudos alternativos, que focavam não mais exclusivamente no direito ou nas cortes, mas sobretudo nos agentes sociais que o mobilizavam. Isto é, uma análise realizada de baixo para cima (bottom-up).

Costuma-se identificar a obra The Politics of Rights: lawyers, public policy, and

political change, do pesquisador em direito e sociedade (law and society) Suart A.

Scheingold, publicada em 1974 (e, em segunda edição, em 2004), como o ponto de virada nos estudos sobre direito nos EUA neste sentido.

O livro foi concebido no final dos anos 1960, quando Scheingold teve um

insight. Ele estava palestrando sobre direitos e liberdades constitucionais, na

Universidade de Wisconsin (EUA), enquanto, no lado de fora, tropas da Guarda Nacional jogavam gás lacrimogênio para dispersar estudantes que protestavam por direitos (FEELEY, 2004). Essa situação fez com que Scheingold repensasse a compreensão convencional a respeito dos direitos e passasse a explorar o que ele chamou de “política dos direitos”.

A virada teórica procedida por Scheingold consistiu em substituir seu foco de análise, que antes estava nas palavras da constituição ou das cortes, para as mentes dos protestantes (FEELEY, 2004). Esta, de fato, vem a ser uma característica dos estudos que se seguiram em torno da mobilização do direito: concebem o ponto de vista dos agentes sociais também como central.

De fato, este autor demarcou “um novo território de pesquisa, ocupado em geral por estudiosos de ‘esquerda’, que busca entender a relação entre estratégias jurídicas

e movimentos sociais” (PARIS44, 2010, p. 13-14 apud FANTI, 2016, p. 37). Tanto que, com a consolidação do marco da “mobilização do direito”, na década de 1990, os pesquisadores passaram a identificar a virada da atuação da Suprema Corte como decorrente da pressão exercida desde baixo (e não mais do ativismo judicial), a partir do aumento de consciência em torno aos direitos (“rights conscioussness”) na cultura popular (EPP, 1998).

O importante insight de Scheingold mencionado acima, a partir do qual o livro se desenvolve, está neste trecho:

The law is real, but it is also a figment of our imaginations. Like all fundamental social institutions it casts a shadow of popular belief that may ultimately be more significant, albeit more difficult to comprehend, than the authorities, the rules, and penalties that we ordinarily associate with law (SCHEINGOLD, 1974, 2004, p. 3).

Ora, Scheingold traça a distinção entre o que ele chama de duas realidades do direito: uma que é mais familiar e que representa a existência concreta do direito, em que ele aparece como regras formais e instituições oficiais; e outra, mais evasiva, que é a vida simbólica ou ideológica do direito, já que toma forma na mente dos cidadãos.45

Segundo o autor, para compreender a importância do direito, não é suficiente considerá-lo somente concretamente, deve-se entende-lo em conexão com os padrões de crença evocados pelos símbolos legais. E conclui: “In its symbolic form, the law shapes the context in which American politics is conducted” (SCHEINGOLD, 2004, p. xlvix).

A partir disso, ele contrapõe duas formas de entender a relação entre direito, política e mudança social: o “mito do direito”, em que ele explora as características simbólica e ideológica do direito; e a “política do direitos”, em que ele reconsidera o mito e concebe o direito como um recurso político contingente que pode funcionar como catalizador tanto para a mobilização política como para a própria mudança social.

44 PARIS, M. Framing equal opportunity: law and the politics of school finance reform. Stanford: Stanford

Law Books, 2010.

45 “Law in the United States has two realities. In its familiar form, the law is palpable; it appears as formal

rules, official institutions, and the like. The ideological existence of the law is more elusive; it takes shape in the mind, and is a reflection of and a reaction to the law’s more palpable presence. The political presence of the law is to be found in the interaction between these separate realities” (SCHEINGOLD, 2004, p. 203).

O mito dos direitos estaria, portanto, “relacionado a crenças sobre moralidade e direito, e mais especificamente a crenças ligadas ao constitucionalismo estadunidense, à lei e à política nos Estados Unidos, às cortes e à dinâmica casual de mudança social” (FANTI, 2016, p. 38). Mesmo que o autor critique a crença de que os direitos seriam diretamente empoderadores ou transformadores46 – ao conceber como um mito –, ele afirma que há uma poderosa influência, ainda que indireta, do simbolismo do direito na sociedade47 (SCHEINGOLD, 1974, 2004). Sobretudo da Constituição, que traz direitos gerais, abstratos e simbólicos, a serem mobilizados pelas pessoas, que, de fato, tendem a concebê-los como equivalentes à justiça social. Quer dizer, mesmo as propriedades míticas e ideológicas dos direitos possuem capacidade constitutiva na prática social. “Legal values conditions perceptions, establish role expectations, provide standards of legitimacy, and account for the institutional patterns of American politics” (SCHEINGOLD, 2004, p. xlvix).

Com isso, ele chega à segunda perspectiva: da política dos direitos, a qual proporciona uma nova perspectiva sobre a utilidade política dos direitos legais. Isto é, ele acredita que o direito seja um recurso útil para a ação política dos movimentos sociais e para a mudança social. Inclusive, ele reconheceria que “certas formas de atividade política só seriam possíveis graças à presença dos direitos na sociedade estadunidense” (FANTI, 2017, p. 247).

Scheingold acredita que o direito e as cortes podem ajudar os agentes sociais a legitimar suas demandas e a catalisar a organização de grupos relativamente sem poder (FANTI, 2016).48 De qualquer forma, ele alerta para o fato de que o direito deve ser encarado como um instrumento auxiliar – subsidiário – na ação política mais ampla dos movimentos. Nesse sentido, ele exemplifica seu ponto de vista:

The civil rights experience provides the clearest demonstration that legal tactics – even with reluctant legal leaders – can release energies capable of initiating and nurturing a political movement. But clearly

46 “The myth of rights is (…) premised on a direct linking of litigation, rights, and remedies with social

change” (SCHEINGOLD, 1974, 2004, p. 5).

47 “What I shall argue is that the influence of legal symbols is indirect but powerful” (SCHEINGOLD,

2004, p. xlvix).

48 “Rights are employed as mobilizing catalysts. They provide credible goals, cue expectations, and

enhance self-images. In thus instilling a sense of purpose, feelings of legal competence, and perceptions of political efficacy, an emphasis on rights lays the foundation for effective political organization” (SCHEINGOLD, 1974, 2004, p. 214).

legal tactics are only part of the story of the civil rights coalition and the rebirth of black politics (SCHEINGOLD, 1974, 2004, p. 211).

Isto é, para Scheingold, o direito será uma arma tanto mais importante, quanto mais os agentes sociais se tornarem conscientes das limitações das estratégias jurídicas tomadas isoladamente e do potencial de outras formas de atuação política (FANTI, 2017). Nas suas palavras: “The courts are only one of a number of authoritative agencies that articulate goals for the polity” (SCHEINGOLD, 1974, 2004, p. 7).

Scheingold, portanto, repensou a compreensão convencional dos direitos ao combinar duas perspectivas em sua análise: a capacidade constitutiva do mito dos direitos e a utilidade política dos direitos. Quer dizer, ele não concebe mais o direito como mero reflexo das práticas sociais, mas também como constitutivo das mesmas. Law is understood as ‘a continuous part of social practice’, meaning that, ‘first, law is internal to the constitution of those practices, linked by meaning to the affairs it controls; [and] second, and correlatively, law largely influences modes of thought rather than conduct in any specific case. Law enters social practice and is, indeed, imbricated in them, by shaping consciousness, by making law’s concepts and commands seem, if not invisible, then perfectly natural and benign (Sarat and Kearns49, 1993, p. 31 apud SCHEINGOLD, 2004, p. xxii). O autor acertou quando disse, no prefácio da primeira edição, que seu livro deveria ser encarado como um ponto de partida de uma nova perspectiva de relacionar os estudos entre direito e política e entre movimentos sociais e mobilização do direito. De fato, pesquisas sobre mobilização política coletiva – sobretudo empíricas – se desenvolveram a partir deste marco e vieram a corroborar algumas de suas premissas, como se passa a analisar a seguir.