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3.2 Autonomia privada e direito da personalidade

3.2.2 Concretização do direito da personalidade

Ponto relevante em relação às internações compulsórias é que não são aplicáveis aos usuários que são capazes e, por isso, podem se autodeterminarem. Nesses casos, qualquer tratamento que se faça necessário deverá ter o aval do beneficiário, por isso, caso algum usuário de droga concorde com a internação, não será caso de internação compulsória, mas voluntária.

Daí a importância sobre a autonomia da vontade e a capacidade de fato, pois existindo ambos, não será possível determinar a internação compulsória do usuário, sob pena de flagrante ilegalidade. Com efeito, registra-se que a autonomia da vontade possibilita que alguém não apenas registra-selecione o direito de personalidade aplicável, mas que possa desenvolvê-lo em conformidade com a situação posta, assumindo nesse sentido papel dirigente e determinante para que o direito seja concretizado300.

Bastante relevante para o exercício de alguns direitos de personalidades e sua concretização sob a perspectiva da autonomia é a questão da capacidade. Em primeiro lugar, deve ficar claro que personalidade e capacidade não são sinônimos, por isso, não poderão ser confundidos e tratados com se fosse uma só coisa. Confusão, aliás, que chegou a existir na doutrina do início do século anterior, conforme informa Francisco Amaral301.

Amaral302 defende entendimento no qual a personalidade é inerente à própria condição humana, enquanto que a capacidade busca a concretização, não podendo se falar em variações que possam levar a um entendimento sobre existência de mais ou menos personalidade, mas, em sentido diametralmente oposto, pode se falar em variação acerca da capacidade. Nesse desiderato, as

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MEIRELES, Rose Melo Venceslau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, introdução.

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De acordo com o autor, após parabenizar o legislador do Código Civil por não confundir personalidade e capacidade, “no início do século, achávamos que personalidade era sinônimo de capacidade. Depois, graças à reflexão e à influência de nova doutrina, chegou-se a conclusão de que a personalidade é ínsita à natureza humana, e a capacidade a sua concretização. “AMARAL, Francisco. Parte geral do código civil. In: Seminário novo código civil brasileiro: o que muda na vida do cidadão. Brasília: Câmara dos Deputados, 2003, p. 202.

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AMARAL, Francisco. Parte geral do código civil. In: Seminário novo código civil brasileiro: o que muda na vida do cidadão. Brasília: Câmara dos Deputados, 2003, p. 202-203.

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pessoas, e por consequência a personalidade, não surgem em razão do Direito, mas este apenas garante as condições de exercício da capacidade.

Em suma, direitos de personalidade e capacidade não devem ser confundidos, pois são conceitos jurídicos diversos303. A personalidade torna-se direito intrínseco à pessoa a partir de seu nascimento com vida. O mesmo não pode ser dito em relação à capacidade, pois, ordinariamente, apenas com dezesseis anos de idade é que alguém deixa de ser absolutamente incapaz304, podendo gerir a própria vida, contando com a necessária assistência de um responsável até os dezoito anos. Superada essa idade e não havendo nenhum impedimento legal, aí sim poderá gerir a própria vida com ampla liberdade.

Outra diferença marcante entre direito de personalidade e capacidade é que o primeiro surge a partir do nascimento com vida e se extingue com a morte da pessoa305, ou seja, acompanha seu titular durante toda a sua existência. A capacidade, além da questão etária acima apontada, também poderá deixar de existir para aqueles casos em que alguém perde as condições necessárias para reger a própria vida, isso poderá ocorrer em relação a pessoas alienadas mentais ou quando o vício em drogas for tão intenso e incontrolável que os usuários percam por completo a condição de decidir o próprio destino.

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A capacidade divide-se em capacidade de direito e de fato ou exercício. Tal qual o direito de personalidade, a capacidade de direito é inerente a toda pessoa, enquanto que a capacidade de fato, em regra, só é adquirida a partir dos 18 anos de idade. Nesse sentido, Nelson Nery aponta o seguinte:

“2. Capacidade de direito. Toda pessoa tem capacidade direito, isto é, capacidade de adquirir direitos e de contrair obrigações. Por exemplo, menor com cinco anos de idade pode ser proprietário de imóvel, ser titular de direito de pensão alimentícia, contrair empréstimos etc. 3. Capacidade de exercício. Só têm capacidade de exercício, isto é, capacidade para praticar

validamente anos da vida civil, os maiores de dezoito anos. Os menores relativamente incapazes podem praticar atos, desde que assistidos ou representados.”NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 145.

304 “Antecipa-se a plena capacidade civil da pessoa humana, dos atuais 21 anos para 18 anos de idade. [...] Sob essa mesma ótica da antecipação da capacidade, reduz-se para 16 anos de idade o limite para emancipação dos filhos por outorga paterna (art. 5º, parágrafo único, inciso I), e iguala-se também em 16 anos a idade do homem e da mulher para fins de capacitação nupcial (artigo 1.517 do novo CC).” OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Direito de família no novo código civil. In: Seminário novo código civil brasileiro: o que muda na vida do cidadão. Brasília: Câmara dos Deputados, 2003, p. 168.

305 “Inicia-se com o nascimento com vida e termina com a morte da pessoa natural (C.C 6º). O nascimento com vida caracteriza-se pelo ato de o nascituro respirar. A personalidade é inerência do homem. Personalidade é atributo da dignidade do homem.” NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil anotado e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 146.

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Nessa linha de pensamento, ante a necessidade de analisar e ter que proferir alguma decisão acerca de questões existenciais, é imprescindível para a pessoa a quem coube a incumbência de apontar as respostas, ter suficiente discernimento sobre a questão posta, o que somente é possível se for garantida a liberdade não apenas de ter acesso amplo às informações relacionadas ao problema, mas, sobretudo, de compreender os dados colhidos e, com base neles, proferir a resposta desejada.

Consequentemente, não há como se falar em discernimento e conhecimento suficiente que permitam a compreensão do problema e a elaboração de resposta adequada sem antes se falar em capacidade civil. Não havendo esta, não há como se falar em liberdade para se autodeterminar.

Em outras palavras, para a melhor garantia dos direitos de personalidade, antes deverá se verificar se o titular é detentor ou não de capacidade plena. Caso a resposta seja positiva, apenas a ele caberá pautar as próprias condutas. Na eventualidade da incapacidade ser relativa, o próprio interessada poderá tomar suas decisões, algumas delas inclusive sem a necessidade de ser assistido por outra pessoa, plenamente capaz306. No entanto, caso a incapacidade seja absoluta, ainda que o direito de personalidade a ser protegido diga respeito ao incapaz, este não poderá decidir o próprio destino, cabendo a um terceiro tomar as decisões que entenda necessárias.

Ponto importante é que toda e qualquer pessoa é possuidor de capacidade de direito e obrigações, mas o mesmo não pode ser dito sobre a possibilidade de exercer direitos. Melhor explicando, a capacidade é dividida em capacidade de direito307 e capacidade de fato. A primeira acompanha toda e qualquer pessoa desde o nascimento até a morte, tanto assim que não existe uma pretensa incapacidade de direito. Em relação a segunda, no caso, a capacidade de fato, esta é compreendida como a aptidão para exercer por si

306 “Os maiores de 16 anos e menores de 18 anos já possuem certo grau de maturidade. São, por isso, considerados relativamente incapazes. Embora a lei não lhes permita praticar validamente a totalidade dos atos da vida civil, já lhes reconhece discernimento suficiente para alguns”. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 286.

307 “Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.” BRASIL. Código civil: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 6. ed. Brasília: Edições Câmara, 2014, p. 17.

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mesmo os direitos, ou seja, daí também ser chamada de capacidade de exercício ou de ação308.

O regramento acerca da capacidade civil encontra-se no Código Civil, que em seus artigos 3º e 4º dispõe, respectivamente, sobre a incapacidade absoluta e a incapacidade relativa. Em relação à incapacidade relativa não há dúvida de que qualquer decisão será tomada pelo próprio titular do direito, que apenas precisará contar com alguém para assisti-lo. O mesmo não pode ser dito sobre a incapacidade absoluta, que impõe que a decisão sobre os direitos pertencentes a alguém seja tomada por outrem309.

A incapacidade absoluta restringe legal ou judicialmente o exercício da vida civil pelo próprio titular, o que acaba por refletir na autonomia da pessoa para decidir como irá direcionar sua vida e o que deseja para si. Nada mais lógico, afinal, se alguém não reúne condições para saber o que é certo e o que é errado, ou para determina-se de maneira livre e independente, não há como se resguardar para a pessoa absolutamente incapaz a possibilidade de se autodeterminar.

Portanto, ainda que alguém detenha os direitos de personalidade e seja capaz de direito, ao perder por completo sua capacidade de fato, também

308 “a capacidade de fato é a aptidão da pessoa para exercer por si mesma os atos da vida civil. Essa aptidão requer certas qualidades, sem as quais a pessoa não terá plena capacidade de fato.

[...]

Assim, nesse diapasão, distingue-se a capacidade de gozo, que todo ser humano possui, da capacidade de exercício ou capacidade de fato, que é a aptidão de exercer pessoalmente os atos da vida civil, a qual pode sofrer restrições, por várias razões. Destarte, as incapacidades reguladas no ordenamento são apenas as de exercício ou de fato, pois a capacidade de gozo é atribuída a todo ser humano.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 139.

309 “Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;

III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.” BRASIL. Código civil: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 6. ed. Brasília: Edições Câmara, 2014, p. 17.

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deixará de reunir as condições necessárias para se autodeterminar, de maneira que caberá a outra pessoa tomar as decisões necessárias em nome do incapaz, devendo isso ser visto como uma forma de proteção310.