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O direito de personalidade em face dos usuários de drogas

3.2 Autonomia privada e direito da personalidade

3.2.1 O direito de personalidade em face dos usuários de drogas

A liberdade de escolha sobre o que é melhor ou não para alguém se constitui em processo decisório essencialmente relacionado com a autonomia da vontade e, consequentemente, aos direitos de personalidade.

Tais direitos acompanham a pessoa humana durante toda sua vida, mas desde a concepção já passam a merecer proteção legal, conforme dispõe o art. 2º do Código Civil286. No entanto, há opiniões divergentes acerca da imprescindibilidade, ou não, desses direitos estarem previstos em lei.

Aqueles que defendem que não há essa exigência, como Caio Mário da Silva Pereira287, entendem que os direitos de personalidade não apenas são independentes de lei como são até mesmo anteriores à própria existência de normas positivadas. Assim, sob essa perspectiva jusnaturalista os direitos de personalidade seriam inerentes à própria condição humana, relacionando-se diretamente com valores fundamentais, necessários para que alguém tenha uma vida digna. Nesse contexto, existiriam desde o surgimento dos primeiros seres humanos, não havendo, portanto, necessidade de reconhecimento pela ordem jurídica positiva.

Em sentido oposto, nomes como Gustavo Tepedino288 e Cristiano Chaves289 entendem que esses direitos são frutos do sistema jurídico vigente, estando calcados, por isso, na norma positiva. Logo, esses direitos não existiriam por si próprios, mas decorreriam da atuação estatal, que ao exercitar

286 “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” BRASIL. Código civil: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 6. ed. Brasília: Edições Câmara, 2014, p. 17.

287Caio Mário da Silva Pereira defende “que a origem remota dos direitos da personalidade assenta no direito natural” e que “os direitos da personalidade, como categoria, são considerados como inerentes à pessoa humana, independentemente de seu reconhecimento pela ordem positiva”. SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Direito Civil: alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 23-25.

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TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: _____ Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 44.

289 “Assiste razão aos positivistas, que vislumbram a fonte precípua dos direitos de personalidade no próprio ordenamento jurídico”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 110.

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a função legislativa que lhe é inerente produziria normas, algumas delas relacionadas aos direitos de personalidade290.

Esse último entendimento é importante por levar à conclusão de que os direitos de personalidade são frutos da sociedade, não havendo sentido em sua existência quando o indivíduo se encontra desconectado dos outros. Por isso, o fato de os direitos de personalidade, em muitos casos, aparentarem existir desde sempre, isto é, antes mesmo de os homens terem estabelecidos sistemas jurídicos, decorreria do fato de que alguns desses direitos, com o passar do tempo, tornaram-se consenso na sociedade, moldando-a e tornando-se elemento integrante de sua própria identidade291.

De mais a mais, não haveria como se justificar a existência dos direitos de personalidade como se fossem inatos aos seres humanos quando se percebe a grande variedade de costumes em relação aos povos de culturas diferentes. Deve ser salientado que os direitos de personalidades são ditados a partir de fatores culturais, espaciais e históricos, que aceitos passam a constituir o conjunto normativo de uma sociedade. Nesse contexto, o ordenamento jurídico-positivo apenas irá chancelá-los292.

De qualquer sorte, diante de sua importância dentro da sociedade, com o decorrer do tempo, os direitos de personalidade passaram a ter respaldo constitucional, o que de certa maneira é natural e esperado, afinal, fundamentados no princípio da dignidade humana, estão diretamente relacionados com a cláusula geral de proteção da pessoa humana293. No

290“Os direitos da personalidade, como direitos subjetivos, conferem ao seu titular o poder de agir na defesa dos bens ou valores essenciais da personalidade, que compreendem, no seu aspecto físico o direito à vida e ao próprio corpo, no aspecto intelectual o direito à liberdade de pensamento, direito de autor e de inventor, e no aspecto moral o direito à liberdade, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem, à identidade e ainda, o direito de exigir de terceiros o respeito a esses direitos.” AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 3. ed. São Paulo: Renovar, 2000, p. 246.

291

GOMES, José Jairo. Direito Civil: Introdução e parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 184.

292

ROCHA, João Carlos de Carvalho. HENRIQUES FILHO, Tarcísio Humberto Parreiras. CAZETTA, Ubiratan (coords.). Direitos humanos: desafios humanitários contemporâneos. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 172.

293 “274 – Art. 11. Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana).” JORNADA DE DIREITO CIVIL, 4., 2006, Brasília. Enunciados aprovados: enunciados n. 274. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2006.

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decorrer do texto constitucional é possível extrair vários direitos de personalidade, desde os relacionados à disposição do próprio corpo até aqueles com cunho patrimonial.

Nesse sentido, adotada a divisão feita por Carlos Alberto Bittar294, ao se decompor os direitos de personalidade a partir dos atributos que demandam proteção, depreende-se que eles se dividiriam a partir de aspectos físicos, psíquicos e morais295. Ainda de acordo como Bittar, os direitos físicos estariam relacionados com os “componentes materiais da estrutura humana (integridade corporal, compreendendo: o corpo, como um todo; os órgãos; os membros; a imagem, ou efígie)”. Os direitos psíquicos velariam intimidade e pela integridade psíquica da pessoa. Por fim, os direitos morais objetivariam resguardar os atributos relacionados às virtudes pessoais ou o patrimônio moral, dos quais se destacam a honra e as manifestações intelectuais296.

Diante da ampla gama de direitos decorrentes desses três aspectos da personalidade humana, parece razoável entender que os direitos de personalidade estariam limitados ao texto constitucional297. Não estão. A presença deles pode ser detectada em variado número de diplomas normativos, destacando-se, pela importância, o Código Civil brasileiro.

294 De acordo com o autor, os direitos físicos estariam relacionados “componentes materiais da estrutura humana (a integridade corporal, compreendendo: o corpo, como um todo; os órgãos; os membros; a imagem, ou efígie)”. Os direitos psíquicos buscariam resguarda a integridade psíquica da pessoa, ou seja, velando pela liberdade, intimidade entre outros. Por fim, os direitos morais velariam pelos atributos inerentes às virtudes pessoais ou patrimônio moral, tais como “a identidade; a honra; as manifestações do intelecto”. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. rev. e atual. por Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 17.

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Francisco Amaral também optou por uma classificação tripartida, tomando por base os aspectos fundamentais da personalidade que são tutelados juridicamente. Para ele, os direitos de personalidade são divididos em físicos, intelectuais e morais. AMARAL, Francisco.

Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 260. 296

Trilhando o mesmo caminho de Francisco Amaral, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald argumentam que “a classificação deve ter em conta os aspectos fundamentais da personalidade que são: integridade física (direito à vida, direito ao corpo, direito à saúde ou inteireza corporal, direito ao cadáver...), a integridade intelectual (direito à autoria científica ou literária, à liberdade religiosa e de expressão, dentre outras manifestações do intelecto) e a integridade moral ou psíquica (direito à privacidade, ao nome, à imagem, etc)”. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 115.

297 “Além do previsto no art. 1.º, III, é no art. 5.º que se encontram arrolados alguns direitos de personalidade, particularmente no caput e nos quinze primeiros incisos, que arrolam, entre outros, os direitos à vida, liberdade de expressão, autonomias religiosas, ética e política, privacidade, intimidade, honra e imagem.” LIXINSKI, Lucas. Considerações acerca da inserção dos direitos de personalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de direito privado, São Paulo, n. 27, p. 201-222, jul.-set. 2006.

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O Código Civil brasileiro, mais precisamente nos artigos 11 a 21, traz elenco representativo de direitos de personalidade. Isso não significa que todos os direitos de personalidade presentes no referido diploma normativo estão contidos apenas nos artigos mencionados. Ao contrário, ainda que esses artigos relacionem vários e importantes direitos de personalidade, muitos outros estão elencados no decorrer do Código Civil.

E mais, este diploma fixa parâmetros que servirão de balizamento para a interpretação de todos os direitos de personalidade. Entre os quais, destaca-se a previsão de que os direitos da personalidade não são transmissíveis ou passíveis de renúncia, assim como não podem sofrer limitação voluntária em seu exercício, a não ser que a lei excepcione298.

Falar em direito de personalidade é falar em escolhas, que poderão se mostrar favoráveis ou desfavoráveis aos interesses de quem exerce. Neste contexto, a autonomia surge como a possibilidade que alguém tem de ditar o próprio destino e gerir a própria vida, o que poderá leva-lo a resultados que poderão lhes ser desfavoráveis ou favoráveis.

De fato os direitos de personalidade abrangem variados aspectos da existência humana, mas aqueles que visam resguardar corpo e mente do indivíduo são especialmente importantes quando se coloca em discussão a possibilidade de alguém negar, ou não, submeter-se a algum tratamento médico, ainda que essa pessoa seja usuária de drogas ilícitas299.

298 “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” BRASIL. Código civil: Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 6. ed. Brasília: Edições Câmara, 2014, p. 17.

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É regra geral dos direitos da personalidade que eles não comportam limitação voluntária, isto é, a autonomia privada cede lugar aos preceitos jurídicos, aos bons costumes e à ordem pública. Toda ofensa a integridade física, dentro da capacidade de consentir que possa ferir a lei, os bons costumes e a ordem pública, é proibida. GOGLIANO, Daisy. Autonomia, bioética e direitos da personalidade. Revista de direito sanitário, São Paulo, v. 1, n.1, p. 117, nov. 2000.

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