• Nenhum resultado encontrado

Do Conde D.Pedro a Alexandre Herculano

O Género Genealógico na Historiografia Portuguesa

3.1. Do Conde D.Pedro a Alexandre Herculano

Iniciar este ponto com o Conde D.Pedro não levantará, por certo, qualquer tipo de reparo ao leitor mais crítico. É hoje inquestionável o lugar de destaque que ocupa na história da historiografia portuguesa, seja no âmbito linhagístico ou seja no cronístico. Já o nome de Alexandre Herculano poderá causar alguma estranheza a um leitor menos informado sobre a evolução da genealogia, e que desconheça, por exemplo, que ao grande historiador se deve a primeira edição conjunta dos três livros de linhagens medievais. Só este facto, a nosso ver, já justificaria a sua escolha; mas ainda há outras circunstâncias, como depois veremos .

Esclarecidas as "balizas", elas significam um período que vai desde os finais do séc. XTTT até aos meados do séc. XIX, ao longo do qual se produziram algumas das obras mais significativas do género, mas também, perdoe-se-nos o termo, as mais «delirantes».

Comecemos, então, pelo período medieval29. Este, como se sabe, destaca-se sobretudo pela produção linhagística dos sees. XJH-XIV. Data dos finais da primeira centúria (c. 1282/6-90), a compilação do Livro Velho de Linhagens. Destinado a descrever a genealogia das linhagens de Sousa, de Bragança, da Maia, de Baião e de Riba Douro, apenas chegou até nós o texto relativo aos Sousas, e parte do respeitante aos Maias30. Mesmo assim, Luís Krus

28 A figura de Alexandre Herculano como "charneira" da evolução da genealogia portuguesa não é uma novidade nem, muito menos, da nossa autoria. Já outros autores a escolheram, como é o caso, só para citar um exemplo, de Luís de Bivar Guerra (1978, p. 167).

29 A bibliografia sobre os três livros de linhagens é já bastante extensa, pelo que apenas se indicam os trabalhos mais pertinentes e que permitiram, de facto, esclarecer autorias, datações, etc., ou que souberam chamar a atenção para a sua importância historiográfica: AC.SOUSA 1946-54; AHERCULANO, 1854; AB.C.VEIGA 1940; AM.FARIA 1944b; L.F.L.CINTRA 1950; J.MATTOSO, 1976, 1977a, 1982a, 1988b,

1991, e a "Introdução" a Portugaliae Monumento Histórica. Nova Série, vol.I, pp.9-20, e vol.U/1, pp.7-54;

L.KRUS, 1989; AR.OLIVEIRA 1994 e 1996. Não se esqueçam, ainda, os contributos fundamentais de alguns filólogos espanhóis, como Diogo Catalan Menéndez Pidal ou Ramón Menéndez Pidal, abundantemente referidos em todos os trabalhos citados de José Mattoso.

30 Sobre o Livro Velho, vejam-se as considerações críticas do Professor José Mattoso, publicadas na "Introdução" à ed. crítica dos livros de linhagens <db. Portugaliae Monumento Histórica. Nova Série (...), vol.I. pp.9-14). Uma interessante análise e interpr. ação do seu conteúdo, privilegjando-se os seus contornos simbólicos a partir da toponímia, foi-nos dada por Luís Krus (1989, pp. 10-39 - ainda sobre este assunto, vg. do

pode aí contabilizar um grupo de 691 nobres, representando 175 famílias'' .

Sendo o texto mais antigo, e possivelmente aquele que, mesmo truncado, chegou até nós menos adulterado por interpolações posteriores, nele se insere uma das primeiras versões da Lenda de Miragaia12; por outro lado, o facto de aí se encontrar uma das primeiras

manifestações quanto à antiguidade da linhagem dos Sousas, por certo que terá sido um dos textos que mais contribuiu para "alimentar" a sua aura quase mítica, prolongada ao longo dos séculos pelas obras genealógicas.

Contudo, e talvez pela sua dimensão reduzida, se comparado com os outros dois nobiliários medievais, é poucas vezes utilizado pelos investigadores, os quais dão muito mais atenção ao Conde D.Pedro. No entanto, e ao longo das nossas reconstituições genealógicas, tivemos a oportunidade de verificar que, por vezes, era o texto mais fidedigno. Talvez valesse a pena alguém fazer um estudo comparativo dos três textos genealógicos, face a um confronto com os dados documentais, para se aferir, família a família, do rigor de cada um dos três livros de linhagens, bem como do grau das interpolações posteriores.

Nos meados do see. XTV, por volta de 1337-40, era feita uma nova compilação genealógica, conhecida por Livro de Linhagens do Deão?3. Propondo-se tratar a

descendência de 30 nobres, que o texto situava no reinado de Afonso VI de Leão e Castela, dos quais apenas desenvolve, e desigualmente, vinte e três, resultou em referências a 1663 nobres e a 423 famílias34. Redigido para um deão35, é sem qualquer dúvida o texto mais rigoroso quanto às identificações de membros do clero, facto que pudemos comprovar no nosso estudo.

Aproximadamente na mesma altura, entre 1340 e 1344, era redigido o Livro de Linhagens do Conde D.Pedro, indiscutivelmente o mais importante e completo dos três livros de linhagens medievais portugueses, e mesmo uma das fontes deste género mais

mesmo autor, 1988-89, pp.36-37). 31 L.KRUS, 1989, p.LXII.

32 Narrativas dos Livros de Linhagens, pp.45^6.

33 Sobre este nobiliário veja-se a apreciação crítica de José Mattoso em Portugaliae Monumento Histórica.

Nova Série (...), vol.1, pp. 15-18; tal como indicámos na nota 30, veja-se também L.KRUS, 1989, pp.40-119.

34 L.KRUS, 1989, pp.LXn-LXm.

35 Luís Krus sugere que esse deão seria Martim Martins Zote n, deão de Braga na altura em que o livro é redigido, aparentado com o arceb0 Dom Gonçalo Gonçalves Pereira (1989, p.77 - nota 140). O mesmo autor teve ainda a oportunidade de realçar a importância dada pela fonte à cidade arquiepiscopal, argumento valorativo daquela identificação (IDEM, ibidem, pp.72 e ss.).

importantes do ocidente medieval europeu, ou, como afirma José Mattoso, a mais célebre fonte histórica medieval portuguesa*6. Ao longo do seu texto - objecto de refundições em

1360-65 e em 1380-83 - são desenvolvidos 76 títulos, onde se referem 4738 nomes, identificando indivíduos oriundos de 776 famílias fidalgas*1. A atribuição definitiva da sua

autoria, bem como da Crónica Geral de Espanha de 1344, ao célebre bastardo de D.Dinis, Pedro Afonso, 3o Conde de Barcelos, deve-se aos trabalhos magistrais do saudoso e eminente filólogo Luís Filipe Lindley Cintra38. Objecto de inúmeras cópias e de algumas edições, só em 1980 conheceu, assim como os outros dois nobiliários já referidos, uma edição crítica, da autoria do Professor José Mattoso, tornando-se finalmente utilisável.

Já em trabalho anterior nos tínhamos tornado devedores destes textos39. Mas não tanto como agora! Com efeito, a tarefa de reconstituição genealógica a que nos abalançamos, não sendo impossível, seria extraordinariamente morosa, e penosa, sem o auxílio destas três fontes, especialmente "o Conde D.Pedro". Naturalmente que tem erros e omissões, como teremos ocasião de demonstrar na segunda parte desta dissertação. Algumas das omissões inclusive, são manifestamente propositadas, o que, em nosso entender, merecia um estudo específico, procurando-se assim conhecer melhor os "amores ou ódios" dos autores, quer do texto original quer das duas refundições, em relação a determinados indivíduos e/ou famílias40. Pese embora este facto, o certo é que a estrutura proporcionada pelo encadeado de gerações e a simples indicação dos nomes e de alguns cargos, se tornou num apoio de utilidade indiscutível, na hora de identificar os milhares de dados que tínhamos recolhido da documentação arquivística .

Depois deste período áureo da linhagística portuguesa que, graças à última refundição do Livro de Linhagens do Conde D.Pedro, podemos alargar até ao final do séc. XTV, a produção genealógica entra em colapso e, que se saiba, a centúria seguinte não produziu

36 De novo, veja-se a "Introdução" da autoria de José Mattoso, em Portugaliae Monumento Histórica. Nova

Série, vol.n/1, pp.7-54, e L.KRUS, 1989, p. 120-572. Como é natural, as œnsideraçôes que se seguem são

subsidiárias dos trabalhos dos autores citados na nota 30, excepto quando reflètent a experiência pessoal proveniente da realização deste trabalho.

37 L.KRUS, 1989, p.LXUI.

38 A bibliografia fundamental encontra-se citada na biografia do Conde D.Pedro (cfr. Parte II - 4.1.).

39 J.A.S.PIZARRO, 1995.

40 Como referimos anteriormente, só para dar um exemplo, o nobiliário do Conde D.Pedro omite uma irmã do próprio conde...

qualquer obra digna de menção42. Pelo contrário, o labor cronístico do bastardo de D.Dinis teve, nesse período, os seus mais célebres expoentes.

Assim, teremos que aguardar pelo séc. XVI para que de novo surjam textos genealógicos com alguma importância. De resto, datam também desta centúria, nomeadamente do período manuelino, algumas das mais importantes medidas e produções no campo da heráldica, onde sobressaem, entre outras, o Livro do Armeiro-mor ou a lindíssima Sala dos Brasões do Paço Real de Sintra, para além, como é óbvio, da reestruturação do cargo e do regimento do armeiro-mor, de 1507 .

Desse século, porém, apenas seria impresso um nobiliário, o anónimo Livro de Linhagens do Século XVI (cl549-55), publicado em 1956 pela Academia Portuguesa da História, com uma "Introdução" de António Machado de Faria. Sem qualquer utilidade para o período anterior ao séc. XV, para o qual é inteiramente subsidiário dos livros de linhagens anteriores, tem sido bastante usado pelas suas informações relativas a Quatrocentos e à primeira metade de Quinhentos, mas, como se compreenderá, não sabemos até que ponto as suas informações merecem crédito.

Há notícia de outros nobiliários feitos no séc. XVI, a maioria dos quais, possivelmente, serão cópias do texto do Conde D.Pedro; mas existe um, geralmente atribuído a Damião de Góis e que será, porventura, aquele que mais interesse e curiosidade desperta, muito embora nunca se tenha tentado a sua edição .

Nas duas centúrias seguintes vão surgir alguns nomes dos mais famosos da genealogia portuguesa, mas, infelizmente, os sécs. XVII e XVTII também serão responsáveis pelo completo descrédito com que a genealogia chegou, praticamente, até aos nossos dias . Vejamos alguns dos nomes, e das obras, que merecem aquela fama.

Do séc. XVÏÏ46, podem-se citar os nomes de Gaspar Álvares Lousada, de Gaspar

42 Veja-se, a propósito, o trabalho de Carlos da Silva Tarouca, O «Livro do Duque» - o missing link entre os

Nobiliários Medievais e os Livros Genealógicos Modernos, cit. por António Machado de Faria na

"Introdução" ao Livro de Linhagens do Século XVI, p.XV. 43 Cfr. F.S.AAZEVEDO, 1966, p.74.

44 A menos que fosse o texto que se encontrava pronto para publicação, quando a morte surpreendeu o seu responsável, Braamcamp Freire (ref. por AM.FARIA na "Introdução" ao Livro (...) do Século All, p.XVHI). Para a centúria de Quinhentos haveria ainda que citar outros autores, como o conceituado Xisto Tavares, D.António de Ataíde, nome homónimo dos Io e 2o Condes da Castanheira, ou António Correia Baharém. mas o mais que fizeram, e já será útil, foi actualizar alguns títulos dos livros de linhagens medievais.

45 L.B.GUERRA L978, p.165.

46 Para além dos que se seguem, não podemos esquecer os nomes de Frei António Brandão e de Frei Francisco Brandão que, nas respectivas "Partes" da Monarquia Lusitana, não só aproveitaram trechos dos

Estaco, de D.António de Lima Pereira, ou de Cristóvão Alão de Morais. Seria este último, porém, e justamente, o mais considerado desse período. Autor da Pedatura Lusitana, a sua carreira de magistrado em vários pontos do país permitiu-lhe compulsar uma vasta gama de fontes, tornando a sua obra uma das mais seguras da época, a ponto de ter merecido uma edição já neste século, estando prevista para breve uma outra47. Criticado por autores posteriores, nomeadamente por D.António Caetano de Sousa, por ter tratado famílias exteriores à nobreza, foi o primeiro genealogista a distinguir, com clareza, genealogia de nobiliarquia - sendo mesmo por alguns considerado como o pioneiro da genealogia científica em Portugal - postura que só neste século viria a ser continuada.

O séc. XVm foi bem mais produtivo - Diogo Rangel de Macedo, Manuel de Sousa da Silva, D.Tomás Caetano do Bem, D.António Caetano de Sousa, Manso de Lima, Montarroio Mascarenhas, Felgueiras Gayo, Lima Bezerra49, entre muitos outros - obrigando- nos a reter um maior número de casos. Jacinto Leitão Manso de Lima (1690-1753), foi um dos genealogistas mais conscienciosos dessa centúria, deixando um extenso Nobiliário das Famílias de Portugal, obra de mérito e geralmente bem fundamentada e que, finalmente, vai ser publicada na íntegra50; o seu contributo para a Idade Média é pouco volumoso e de credibilidade desigual, mas ainda assim contem informações interessantes. Manuel José da Costa Felgueiras Gayo (1750-1831), deixou-nos também um Nobiliário de Famílias de Portugal, trabalho extenso e geralmente muito utilizado pelos genealogistas. Bastante inferior em qualidade, tanto em relação a Alão de Morais como a Manso de Lima, as suas referências à Idade Média são geralmente cópia do nobiliário do Conde D.Pedro; quando não, o melhor é não serem levadas em conta, excepto para se apreciar até onde podia ir a

livros de linhagens medievais, como procuraram indicar as ligações genealógicas entre essas fontes e o seu tempo.

47 Pedatura Lusitana (ed. por Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas, António Cruz e Alexandre de Miranda e Vasconcelos), 12 vols.. Porto, Liv. Fernando Machado, 1942-48.

48 L.B.GUERRA 1978, p.163.

49 Manuel Gomes de Lima Bezerra (1727-1806). foi autor de um curioso livro intitulado Os Estrangeiros no

Lima (2 vols., Coimbra, 1785-1791), curioso exemplo da influência das correntes iluministas em Portugal.

Aparte as suas informações genealógicas, aceites pelos genealogistas com alguma consideração, são interessantes as suas opiniões relativamente à Idade Média em geral, e aos livros de linhagens, sobretudo ao do Conde D.Pedro, em particular (sobre estes aspectos, cfr. J. A S.PIZARRO, 1992, pp.3941).

50 Por iniciativa de Perry Vidal, iniciou-se a sua publicação em folhas avulsas, (reproduzidas em stencil), mas não passou da letra M.

imaginação e a fantasia dos genealogistas da época .

Dificilmente, porém, se pode falar da produção genealógica do see. XVHI sem referir o nome do teatino e académico D.António Caetano de Sousa (1674-1759). Um dos fundadores da Academia Real da História, é precisamente no âmbito académico, influenciado pela busca do rigor histórico, que vai compor a História Genealógica da Casa Real

c'y

Portuguesa, estribada em diversos volumes de Provas .

Obra monumental, foi publicada entre 1739 e 1749 e, mesmo contendo algumas inexactidões, como vários autores se preocuparam em salientar, é inegável que se trata de um trabalho ainda hoje incontornável, mercê do manancial de informações ali contido, transcrevendo-se vários diplomas, reproduzindo-se selos e moedas, alguns dos quais se perderam depois irremediavelmente. Para a parte medieval, e depois da Monarquia Lusitana, deverá ser o trabalho que mais espaço lhe dedicou, não se podendo esquecer o seu contributo para a genealogia medieval, através de biografias e da descendência de Reis, Infantes ou bastardos régios, ou pela publicação do Livro de Linhagens do Deão, até aí inédito.

Na passagem do séc. XVTU para o séc. XIX, e se bem que não fosse um genealogista, não podemos deixar de mencionar o nome de José Anastásio de Figueiredo que, na sua "Nova Malta", e mercê dos inúmeros diplomas que compulsou, deixou algumas informações importantes sobre vários membros da nobreza medieval .

Entrados no séc. XIX, o espírito liberal não se compadeceu com prosápias, condenando impiedosamente as fantasias e os delírios de muitos genealogistas do período anterior - e por arrastamento aqueles que mais seriamente a tinham estudado - deixando a genealogia completamente desacreditada. A tal ponto, que é bem conhecida a afirmação de Braamcamp Freire - Alguns chamam-me genealogista: é espécie a que não pertenço.

51 A título de exemplo, recorde-se o início dos Pachecos: Fernão Jeremias que viveo peitos annos de

Christo de 1070, natural de Burgos e Rico Homem de El Rey DAffonso 6o de Leão e comtemporaneo do

Conde D.Henrique Tronco dos Reys de Portugal, he em quem todos principião esta Família; era filho de Mem Fernandes, e neto de Jeremias Mendes (até no habitual jogo de patronímicos se enganou!) Rico Homem

do Rey D.Ordonho, o qual se julga ser neto pella proximidade de tempo (!) de Lúcio Junio Pacheco grande

valado de Julio Cezar (...) e viveo peitos annos de 708 da fundação de Roma que são 45 da nossa

Redempção, (7 séculos entre avô e neto é coisa insignificante) e neste tempo consta que esta família tinha o seu Sollar em Burgos de Tarrazona, tendo em suas Casas as suas Armas (...) - F.GAYO, 1989-90, vol. VIU,

p.9.

52 Vd A.C.SOUSA, 1946-54, e PHGCRP. J.AFIGUEIREDO, 7800.

Genealogista é sinónimo de mentiroso e de parvo .

Recuemos um pouco. Curiosamente, foi uma das figuras mais consagradas do liberalismo que reabilitou, se não a genealogia, pelo menos o crédito das fontes linhagísticas medievais.

Publicada em 1854, a Memória sobre a origem provável dos Livros de Linhagens55

prenunciava, como um "arauto", a importância que Alexandre Herculano atribuía àquelas fontes, e às quais viria a destinar a maioria do primeiro volume dos Portugaliae Monumenta Histórica, na secção dos Scriptores56. Editando na mesma obra os textos do Livro Velho de

Linhagens - até aí inédito -, do Livro de Linhagens do Deão e do Livro de Linhagens do Conde D.Pedro, Herculano prestava um enorme serviço aos estudiosos do período medieval, historiadores como genealogistas, porque o seu espírito superior compreendera que o valor e o significado daquelas fontes ultrapassava em muito o simples encadeado de gerações e de nomes.

Razões, voltamos a repetir, que nos levaram, como a outros anteriormente, a colocar Alexandre Herculano como o ponto de chegada de um processo evolutivo de um género historiográfico que, iniciado com uma invulgar pujança nos finais do séc. Xm e na primeira metade do séc. XIV, viera, progressivamente ao longo dos sécs. XV-XDC, a sofrer as vicissitudes dos diferentes interesses e das correntes historiográficas, acabando por cair em descrédito. Mas, ele também deve ser entendido como o ponto de partida, já que a sua acção permitiu que, alguns anos depois, a genealogia desse os primeiros passos como verdadeira ciência. Digamos que o pioneiro dessa genealogia científica, Braamcamp Freire, foi o primeiro "herdeiro" de Herculano. Com ele iniciaremos o próximo ponto.

Antes, porém, deixaremos as palavras do grande historiador que, no seu estilo inconfundível, assim resumia o singular valor da nossa fonte linhagística medieva mais célebre, o Livro de Linhagens do Conde D.Pedro:

No estado, pois, em que a idade media no-lo herdou elle continha não só as linhagens das nobres familias, mas também o espirito, a indole, dessa larga

54 A.B.FREIRE, 1973, vol.I, p.XVI.

55 A.HERCULANO, 1854.

56 Tendo o primeiro fascículo saído em 1856. os livros de linhagens ocupam a maioria do segundo e a quase totalidade do terceiro fascículos, publicados em 1860 e em 1861, respectivamente.

serie de annos. A singeleza, a credulidade, os costumes de então surgem ahi ás vezes inesperadamente no meio do árido catalogo das gerações, que é por assim dizer o seu pensamento radical, a sua essência, e foi o seu primeiro destino. Nas suas paginas sente-se viver a idade media: ouve-se a anecdota cortesan, de amor, de vingança, ou de dissolução, como a contavam escudeiros e pagens por sallas d'armas, e as lendas como corriam de boca em boca, narradas pela velha cuvilheira juncto do lar no inverno. Assistimos, por meio delle, ás façanhas dos cavalleiros em desaggravo da propria honra, aos feitos de lealdade, ás covardias dos fracos, ás insolências dos fortes, e, enfim, a grande parte da vida intima do solar do infanção, do rico-homem e do paço real, que as chronicas raro nos revelam, e que a historia, como o século XVI a reformou e puliu, achou indigna de occupar os seus períodos brilhantes moldados pelos de Sallustio e de Livio .