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Confiança em Padre Cícero

No documento Religião e cangaço na cidade de Mossoró (páginas 116-118)

3.2 A BUSCA DA PROTEÇÃO ESPIRITUAL DO CANGACEIRO

3.2.4 Confiança em Padre Cícero

Nasceu Padre Cícero Batista Romão em Crato, em 1844. Em 1870, foi ordenado sacerdote da Igreja Católica Romana. Sua vida é marcada de contradição. Entre os milagres atribuídos a ele por seus fiéis, tem-se o caso da hóstia transformada na boca de uma de suas beatas em sangue de Cristo. Teve envolvimento e teve papel de liderança na política. Pesou sempre sobre sua vida as duras críticas do seu envolvimento com cangaceiros. De fato tinha o respeito dos cangaceiros, de maneira que a sua cidade sempre foi poupada dos crimes dos bandidos. As suas atitudes e decisões não foram compreendidas e nem aceitas pela cúpula católica, de maneira que lhe foi imposta a censura eclesiástica de excomunhão. Mesmo que muitos tenham intercedido por ele tentando reverter essa sua condição, inclusive as autoridades da Igreja em sua cidade, Roma não atendeu. A decisão de Roma nunca foi executada de todo pelo bispado de Crato, nunca foi aceita pelos seus seguidores e nem mesmo pelo Padre Cícero. Morreu 1934 ainda vestindo a batina e exercendo suas funções sacerdotais (NARBER, 2003).

Padre Cícero teve uma participação importante e decisiva na vida de Lampião. Este tinha razões para considerar o padre mais do que um sacerdote, um amigo e guardião espiritual, por isso carregava no pescoço um rosário que havia ganhado dele (SOUZA, 2006). Para ele, aquele objeto que fora abençoado poderia lhe conceder proteção. Sua relação com Padre Cícero tinha razões familiares, pois abrigava seu irmão João Ferreira, que foi o único a não se envolver com a violência, recebeu também o irmão caçula enquanto era pequeno e as suas irmãs (SOUZA, 2006). Todos foram morar em Juazeiro, ali receberam cuidados especiais, podendo viver em paz sem sofrer nenhum tipo de perturbação.

Outro motivo para que Lampião tivesse muita consideração para com o padre foi o famoso caso da Coluna Prestes50. O país passava por um momento turbulento e o Deputado Federal Floro Bartolomeu recebeu do governo poderes para organizar “Batalhões Patrióticos” para combater Carlos Prestes que estava no Nordeste. Nesse intuito, telegrafou pedindo para que chamasse Lampião e seu bando para integrar essa missão de expulsar a Coluna Prestes. O Deputado Floro Bartolomeu muito doente teve que viajar para o Rio de Janeiro para tratamento médico, vindo a falecer em 8 de março. Padre Cícero, líder político local, foi quem recebeu Lampião e seu bando. Foi feita uma grande festa de boas-vindas para eles na cidade de Juazeiro, com direito a foguetório e sinos repicando nas igrejas. Nessa ocasião, Lampião exigiu que o governo oficializasse sua missão, dando-lhe patente de capitão do exército brasileiro, de 1º tenente a Antônio e de 2º tenente a Sabino Gomes. Armas, munição e uniforme do exército. Concordando plenamente, Padre Cícero chamou a maior autoridade federal da cidade, que era um inspetor do Ministério da Agricultura. Documentos foram preparados e entregues para Lampião. Assim entrou o bando de Lampião em Juazeiro e saiu uma companhia do exército comandada por oficiais patenteados. Mas o orgulho cívico de Lampião não durou muito tempo. Autoridades não reconheceram o posto e ameaçaram de prendê-lo. Conscientizaram de que seus papéis não tinham nenhum valor oficial; muito decepcionado, desiste de perseguir a Coluna Prestes.

Essa atitude de Padre Cícero trouxe-lhe muitos aborrecimentos, era a prova concreta que seus inimigos políticos queriam para acusá-lo de protetor de bandidos. Tentou concertar isso através de discurso público solicitando à população o apoio das autoridades no combate ao cangaço. A gratidão de Lampião era imensa para com o padre, pois seus inimigos diziam que ele deveria ter prendido Lampião naquela ocasião, mas isso ele não fez.

O Padre censurado; defendia-se, alegando que Lampião fora convidado. ‘Seria uma traição mandar prendê-lo ou entregá-lo a seus figadais inimigos.’ Não cederia ‘Considerava a palavra empenhada por Floro uma questão de honra’. (TÁVORA, 1963 apud FERNANDES, 2009, p. 90).

Talvez o relacionamento de Lampião com o Padre Cícero tenha levado a um exagero em achar que todo cangaceiro fosse-lhe devoto. A devoção dos cangaceiros ao Padre Cícero devia ser proporcional à devoção de todos os sertanejos nordestinos a ele. A vida de cada cangaceiro tinha uma relação muito importante com o seu passado, conforme já foi demonstrado, ele

50 Relatos baseados no livro de Queiroz (1986) e Raul Fernandes (2009). Tomislav R. Femenick (2007) oferece

reproduzia os elementos de sua religiosidade familiar em sua vida diária. Se a sua formação religiosa tivesse relação com o padre de Juazeiro, é bem provável que esse cangaceiro fosse-lhe devoto; caso contrário, essa possibilidade se tornava mais remota. Devemos considerar também outros períodos do cangaço.

Lampião contava com a benção e a proteção espiritual de Padre Cícero para o enfrentamento por causa da sua forte relação religiosa como ele. Narber (2003) fala inclusive de uma ligação anterior ao abrigo de seus irmãos pelo padre, quando seus pais morreram e do convite para combater a Coluna Prestes: quando seu pai e seus irmãos foram a Juazeiro buscar a intervenção divina do padre durante a seca 1915 (NARBER, 2003). O fato dessa relação de Lampião com o padre ter aspectos familiares pode ser um ponto importante da reflexão sobre a sua vida religiosa.

O período do cangaço independente foi de grande efervescência religiosa em Juazeiro e Padre Cícero estava em seu auge. Multidões de devotos se dirigiam à cidade para buscar as bênçãos do padre, que segundo a fé do povo fazia milagres. Em cangaceiros ligados a Lampião foi observada a presença de efígie de Padre Cícero pendurada em seus pescoços, como foi o caso dos cangaceiros mortos em Mossoró (NONATO, 2005). Também foram observadas atitudes religiosas dos cangaceiros ao Padre Cícero no exato momento do conflito armado: em confronto com a força do governo do Ceará, logo após a passagem pelo Rio Grande do Norte, os cangaceiros gritavam “vivas” ao padre e a outros santos no momento da troca de balas (NONATO, 2005).

No documento Religião e cangaço na cidade de Mossoró (páginas 116-118)