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O entendimento sobre o dever religioso do sertanejo nordestino no período do

No documento Religião e cangaço na cidade de Mossoró (páginas 95-99)

2.4 A RELIGIOSIDADE DO CANGACEIRO

2.4.3 O entendimento sobre o dever religioso do sertanejo nordestino no período do

O cangaceiro via-se como alguém lutando pela sobrevivência e optando por uma profissão e não acreditava que sua profissão fosse moralmente correta, mas também não era moralmente inferior à profissão do coronel nem à das volantes.

Como já mencionado, Durkheim (1984) afirma que cada povo tem a sua moral, a qual é determinada pelas condições que vive. Agir moralmente é cumprir seu dever, mas todo dever é finito e limitado por outros deveres; por exemplo, o dever está relacionado com o trabalho, sendo a divisão deste um produto da luta pela vida. Nesse sentido, os rivais não são obrigados a

se eliminar, mas podem coexistir lado a lado. Assim, indivíduos que, em uma sociedade mais homogênea, estariam condenados a desaparecer convivem com outros em uma sociedade mais complexa. Além disso, uma sociedade estabelece correspondência especial, porque os indivíduos não estão sozinhos no mundo, mas rodeados de rivais, que disputam os meios de existência, de forma que eles têm todo o interesse em estabelecer entre si e os seus semelhantes relações tais que os sirvam.

Tem havido certo esforço por parte dos pesquisadores do cangaço para entender e explicar como os cangaceiros conseguiam conciliar a violência com as questões dos valores éticos, visto que, de maneira geral, não se tratavam especificamente de maníacos ou psicopatas, apesar de ser possível encontrar alguns que fossem. Na verdade, devemos olhar para o cangaço muito mais como uma manifestação social da época; assim, talvez o que era entendido por dever religioso, dentro do campo ético, no período, forneça um caminho para essa compreensão. O cangaceiro levava uma vida de crimes e, ao mesmo tempo, cultivava uma vida de devoção religiosa. O crime é, para a nossa consciência moderna, talvez uma das maiores profanações da ética religiosa, mas não o era necessariamente para o sertanejo nordestino. Logo, o cangaceiro podia lidar com a sua consciência moral, na qual conciliava a religiosidade, a criminalidade e a violência, característica bem comum na história humana das cruzadas e guerras santas. Nesse sentido, remetemo-nos à observação de Durkheim (1996) quando fala sobre as forças religiosas e as forças morais:

São forças coletivas, é imprimida em nós pela sociedade como forças morais, que são feitas de idéias e dos sentimentos que o espetáculo da sociedade desperta em nós, não das sensações que nos vêm do mundo físico [...] podemos tomar dessas coisas as formas exteriores e materiais sob as quais são representadas. (p. 344).

As forças religiosas, portanto, são forças humanas, forças morais. (p. 462).

Essa intrigante maneira de conceber a vida foi forjada pela própria sociedade e não tinha a sua definição ou diferenciação das demais práticas humanas do seu ambiente e época, especialmente, dos princípios morais. Dessa forma, o ideal de vingança e o discurso de injustiça estabelecidos pelo seu mundo eram usados para o refúgio de sua consciência.

Mello (1985, p. 71) também fala sobre essa força coletiva sobre a consciência moral:

São forças coletivas construído sob um imperativo da consciência moral, o escudo ético se destinava a preservar ambas as imagens, estabelecendo uma causalidade ética que, sendo embora simples produto de elaboração mental, lograva o efeito por assim dizer mágico de convencer o seu próprio construtor,

aplacando-lhe os reproches da consciência, além de lhe fornecer excelente justificativa a nível sócio-cultural. Essencialmente, trata-se de artifício mental orientado no sentido de dar vida, presença e atualidade a causas inexistentes ou que perderam seu valor, com o fim de encobrir moralmente a permanência de efeitos.

A crença do cangaceiro baseava-se na divindade do Deus Trino e nos santos do catolicismo, transfigurados nos elementos místicos de sua religiosidade popular. Além disso, a sua religiosidade, ainda que impregnada de magia, que é comum em toda a religiosidade mística, estava plenamente relacionada e entranhada na sua vida diária, não sendo vista a religião em um plano de irracionalidade, mesmo porque não tinha esse tipo de conceituação. Nesse sentido, sua vestimenta estava impregnada de religião, com rosários no pescoço, patuás e várias indumentárias religiosas que o protegiam; sua maneira de falar demonstrava uma plena submissão e devoção aos santos, a quem fazia as suas orações e entregava sua vida nos combates armados; seu credo e confissão religiosa tinham a crença de estar em concordância com a Igreja Católica Romana, de quem se considerava parte, evidenciando como a religião era parte natural de sua vida cotidiana.

Também mencionamos que o isolamento da região Nordeste do restante do Brasil, essencialmente no que diz respeito ao desenvolvimento econômico, deu origem a um indivíduo criativo, independente e improvisador. O sertanejo nordestino não só estava isolado do desenvolvimento econômico, como também da convivência e relação com a instituição religiosa dominante no país, mas não sem religião; ao contrário, estava cercado da religiosidade do índio, do negro e do branco. Todas essas religiões não eram estabelecidas por regras institucionais, mas praticadas e baseadas nas experiências comuns, de modo que, na convivência e relação, elas se misturaram e constituíram uma religiosidade popular mística característica daquele ambiente social.

Toda dificuldade do nordestino com o seu solo, seu clima, seu ambiente hostil, sua escassez, oferecia-lhe motivo suficiente para aceitar, pela fé religiosa, as explicações e os compensadores, assim denominados por Stark (2010). Nela, o sertanejo estabelecia a relação de troca dos recursos significativos na constituição dos elementos necessários para a sua vida. Nesse contexto, o cangaceiro, elemento desse ambiente social, com suas ações humanas definidas pela busca de recompensas numa troca constante, possuía os atributos individuais e sociais que lhe eram conferidos pela sua própria sociedade e que eram necessários para a aquisição e legitimação do seu poder. Portanto, mesmo que ele não recebesse do poder público a legitimação da sua profissão, encontrou tal reconhecimento na comunidade popular e em outros dissidentes e opositores do sistema, que eram seus aliados.

Ainda, seu poder também se estabelecia pelo controle que lhe era conferido como “própria razão de troca” (STARK, 2010, p. 44). Nesse sentido, a sociedade possuía meios genuinamente estabelecidos como critérios definidos naquele contexto de precariedade de lei e subsistência, necessários como elementos compensadores e normativos da sua cultura. Curiosamente, seu poder era déspota, marginalmente uma contravenção para o poder institucionalizado, mas legitimado por grande parte da sociedade da qual fazia parte, oferecendo uma reação satisfatória ao sistema vigente.

Quanto à recompensa, a religiosidade do cangaceiro buscava outra forma, não mais aquela relacionada à dor e ao prazer da privação de recursos da precária vida relativa àquele mundo. Agora, a troca estabelecia-se em razão de seu estilo de vida criminoso, sempre sujeito aos conflitos armados, quando, outrora, a busca sobrenatural utilitarista era pela chuva para dar vida aos campos e animais, pela saúde, proteção contra feras, animais peçonhentos, perigos do espiritual e de homens violentos. Ainda que continue necessitando dessa proteção daqueles perigos comuns, soma-se a esses um maior perigo: a proteção contra os inimigos de armas que andam no seu encalço. Logo, a recompensa que busca é de um revestimento que o faça imortal em combate; nesse sentido, já nos referimos à cerimônia do fechamento do corpo para ficar impenetrável às balas e facas e imune aos animais peçonhentos. De fato, o custo que evitava era o seu ferimento, morte ou prisão.

3 A CONFIANÇA RELIGIOSA NO CONFLITO ARMADO ENTRE

MOSSORÓ E LAMPIÃO

Os ritos parecem ser apenas operações manuais – unções, lavagens e refeições – que colocam alguma coisa em contato com uma fonte de energia religiosa para consagrá-la, ou seja, uma técnica mecânica mística. Esses elementos são aparências externas de operações mentais, uma coerção física sob forças imaginárias, para atingir as consciências, fortalecê-las e discipliná-las. Aliás, todas as religiões, mesmo as mais simples, são em certo sentido espiritualistas (DURKHEIM, 2005).

3.1 A CONFIANÇA ESPIRITUAL DOS MOSSOROENSES PARA ENFRENTAR

No documento Religião e cangaço na cidade de Mossoró (páginas 95-99)