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CAPÍTULO IV: LATIFÚNDIO E CONFLITO AGRÁRIO

3 CONFLITOS AGRÁRIOS

Ao aprofundar o trabalho de pesquisa desta dissertação sobre terras devolutas, verificou-se que estas ao lado das do domínio privado, são, também, causa de conflitos agrários no País e no Piauí, provocados, principalmente, pela conservação do latifúndio improdutivo. Por essa razão, achou-se de todo conveniente, registrar algumas notícias a respeito desses conflitos da questão fundiária, acrescentando-as em capítulo destacado.

A questão agrária no Brasil é bem semelhante, por exemplo, àquela configurada na Alemanha, ainda, no século XIX, em torno do rio Elba, onde foram criadas duas estruturas agrárias diversas. Em sua margem ocidental, os agricultores eram livres, embora necessitassem de contrair empréstimos a juros para a manutenção de sua liberdade. Na margem oriental, ao contrário, os chamados Junkers mantinham as estruturas agrárias arcaicas com base em latifúndios de origem semifeudal, onde existiam duas espécies de trabalhadores. Ou seja, os trabalhadores dependentes de seus patrões com contratos renováveis anualmente aos moldes dos tempos medievais e os que eram assalariados jornaleiros ou diaristas dentro dos padrões do proletariado industrial.

A tendência decorrente dessa situação era que os trabalhadores dependentes de seus patrões mantidos mediante contratos que se renovariam anualmente fossem substituídos por trabalhadores assalariados jornaleiro, ou seja, diaristas dentro dos padrões do proletariado industrial. A verdade é que na Alemanha do século retrasado, a combinação de estruturas arcaicas com modernas formas de organização subsistia simultaneamente150.

A situação das estruturas agrárias existentes hoje no Brasil não é muito diferente daquela vivenciada na Alemanha do século XIX. Evidentemente, que aqui não existe

150

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. [Trad. Pietro Nassetti]. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, p. 15-16.

somente o rio Elba como fator de divisor de estruturas agrárias, mas muitos “Elbas”, até mais caudalosos como o Amazonas, Paraná, São Francisco, Tocantis, Parnaíba além de uma centena de afluentes. As estruturas agrárias, aqui, em pleno século XXI, continuam mais arcaicas do que aquela da Alemanha do tempo de Waber. Como na Alemanha, a hipérbole representada pelo rio Elba pode perfeitamente ser usada no Brasil. Pode-se afirmar que a banda Sul do Brasil representada pelas regiões Sul e Leste, corresponde à estrutura agrária dos agricultores livres, que apesar disso precisam contrair empréstimos a juros para conservar a sua liberdade. Nas Regiões Nordeste, Centro Oeste e Amazônia, afastadas poucas exceções, os agricultores, sem terra, ou mesmo o pequeno proprietário, continuam sufocados porque os latifundiários ou Junkers de aqui, mantêm as estruturas arcaicas, com base no latifúndio improdutivo de regime semifeudal. Portanto, nestas últimas regiões empregam-se formas atípicas de contratos agrários as mais diversas, como a empreitada, a locação, o colonato, além de outros, sem qualquer segurança ao trabalhador agrário.

Evidentemente, que há um esforço, principalmente, através de Confederações e Sindicatos de Trabalhadores Rurais, visando à transformação desse numeroso contingente, desclassificado de toda espécie, em trabalhadores assalariados (como ocorreu na Alemanha), com tendência a serem absorvidos por estabelecimentos industriais que se instalam nas zonas periféricas das grandes e médias cidades brasileiras, ou, ainda, em insipientes indústrias instaladas no campo e em propriedades rurais através da reforma agrária, de modo a atingiram (assalariados ou proprietários) o chamado teto vital mínimo de existência com dignidade.

Conforme depoimento de autor credenciado em assuntos de reforma agrária, esta não é mais o direito de cada um à sua propriedade, mas o direito dos trabalhadores ao resultado de sua produção. Começa a se apresentar hoje como uma luta pela transformação da própria sociedade brasileira para um outro sistema, onde o trabalhador não só trabalhe, mas também se aproprie dos frutos do seu trabalho. Cita este autor que os posseiros itinerantes, por exemplo, lutam mais pela posse da terra que pelo seu domínio. É que eles não valorizam a terra como uma forma de propriedade, mas como seu instrumento de trabalho; ou seja, eles precisam da terra para viver, assim como o pedreiro precisa da colher e o pintor do pincel151.

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Há muitos conflitos entre trabalhadores e supostos proprietários pela posse da terra nas chamadas terras devolutas do Estado, em virtude de sua indefinição. Outrossim, existe uma verdadeira confusão na aquisição dos lotes naquelas terras. Muitas vezes surge um conflito até mesmo entre trabalhadores porque não sabem onde se localizam seus lotes de terra. Curimatá é o município piauiense onde existe mais conflito agrário nas terras devolutas do Estado, gerado não só com os trabalhadores entre si mas também entre aqueles e supostos proprietários. Em Colônia do Piauí e Corrente, municípios localizados no Centro e no Sul do Estado, pequenos produtores rurais, ocupantes antigos de terras devolutas estaduais, foram despejados sumariamente por ordem judicial, a requerimento de falsos proprietários, que se adentraram nas respectivas terras públicas. Essa situação se agrava cada vez mais porque os supostos proprietários de terras devolutas, que foram expropriados pelo Estado, por não serem ocupantes nem proprietários legitimados, agora avançam nas outras terras devolutas, que eles pensam que estão desocupadas, para tanto forjando títulos falsos, em conluio com algum escrevente de cartório152.

Numa única ação discriminatória requerida em 1994, na comarca de Bom Jesus (PI), foi arrecadada uma Gleba de Terras Públicas devolutas com a área de 161.151.10.00 (cento e sessenta e um mil, cento cinqüenta e um hectares e dez ares), no lugar Viana, daquela comarca. Todavia, o Sr. Rodrigo Braz Leal Rodrigues e a sociedade Companhia de Alimentos S.A., em 28.12.1994, ingressaram na mesma comarca de Bom Jesus com uma ação de nulidade e readquiriram 63.420,00 (sessenta e três mil, quatrocentos e vinte hectares) daquelas devolutas do Estado atrás mencionadas153.

Esses fatos constituem apenas uma amostra da gravidade da questão agrária no Piauí, provocada, fundamentalmente, pela falta de arrecadação pelo Estado de sua vastidão territorial constituída pelas terras devolutas e sua urgente entrega aos seus posseiros e outros trabalhadores vocacionados para as atividades agrárias em geral. Fora disso, conflitos agrários surgirão agravando cada vez mais a caótica questão agrária no Piauí.

152

Cf. SOARES, Antonio. Entrevista concedida pelo Secretário de Política Agrária e meio-ambiente

da Federação dos Trabalhadores na Agricultura - FETAG, Teresina. Teresina-PI, 04 dez. 2002.

153

Conforme informação do Cartório do 1º Ofício da Comarca de Bom Jesus-PI, In: CARTÓRIO DO 1º OFÍCIO DA COMARCA DE BOM JESUS-PI. Certidão de Registro de Imóvel: registro de imóvel nº

As terras devolutas estaduais, por si só, seriam suficientes para transformar em pequenos proprietários todos os produtores rurais ou a maioria deles, devolvendo-lhes em parte a sua dignidade, valorizando-o como cidadão e aumentando o seu poder aquisitivo com reflexos altamente positivos na economia em geral .

Daí, porque os órgãos do Estado devem procurar acelerar e disponibilizar os diversos meios legais de transferência de suas terras públicas, principalmente as devolutas, aos produtores rurais não proprietários.

O usucapião especial rural foi utilizado por mais de cem anos como modo de aquisição de terras devolutas. Entretanto, como foi dito em capítulo próprio, parece ter sido revogado pela Constituição de 1988 (C.F, art. 191, parágrafo único) razão por que foi sustado o seu exercício como modo de aquisição daquelas terras. Através deste trabalho, defendeu-se que as terras devolutas não são públicas, propriamente ditas, posto que desocupadas, sem dono, não matriculadas em nome do poder público e equiparadas a bens negociáveis, logo são também, usucapíveis.

Assim, os ocupantes ou possuidores de terras devolutas, além dos modos de aquisição, normalmente utilizados pelo poder público para alienar-lhes as terras devolutas, como a venda, a legitimação, a regularização e a doação, poderão usar, também, o usucapião como meio mais eficiente e rápido para adquirir a propriedade da posse que ocupa e explora convenientemente. É sem dúvida um meio de aquisição que deve ser, ao lado dos demais, utilizado como arma do trabalhador no sentido de adquirir o imóvel nas condições referidas, para os fins de reforma agrária. O que se observa é que o poder público, através de sua administração, é muito lento nesse desiderato, enquanto o usucapião, é rápido, eficiente e permite, desde logo, a transferência definitiva ao pretenso proprietário, cuja sentença é definitivamente registrada em nome do novel proprietário.