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Conhecendo nossos Colaboradores 39

Capitulo  I:   A estrada que leva à Casa: caminhos metodológicos 16

1.3   O Trabalho de Campo 34

1.3.3   Conhecendo nossos Colaboradores 39

Numa sociedade de indivíduos, o homem moderno, “através do livre desenvolvimento de suas atividades, constrói sua independência com seu trabalho e se torna simultaneamente proprietário de si e de seus bens” (John Locke; In: Castel: 2005:17). Castel nos mostra que é justamente a propriedade que garante segurança; é o suporte imprescindível no qual o individuo pode ser reconhecido em sua independência.

Neste contexto, o individuo não proprietário - aquele que só tem seu trabalho para viver ou sobreviver -, fica desprotegido e vulnerável aos riscos sociais e pessoais – eventos

que comprometem sua capacidade de assegurar, por si mesmo, sua independência social, como: doença, acidente, desemprego, cessação da atividade em razão da idade, etc (Castel: 2005).

Nossos colaboradores sentiram na pele, ao longo da vida, os feitos de estar em vulnerabilidade e, por esta razão foram incluídos no Programa Vila Dignidade. São pessoas que pela própria condição (escassez de recursos financeiros, fragilidades em decorrência de problemas de saúde, ruptura de vínculos familiares, etc) seriam potenciais usuárias das Instituições de Longa Permanência uma vez que os municípios raramente dispõem de outras políticas garantidoras de segurança e proteção ao idoso em situação de risco social e pessoal.

No condomínio Vila Dignidade do município de Itapeva viviam, quando realizamos o trabalho de campo, 20 pessoas com idades entre 61 e 86 anos, sendo dois casais e dezesseis idosos sós.

 

Figura4:  Moradores  da  Vila  Dignidade  -­‐  Itapeva  -­‐  S.P  

Fonte: Site da Prefeitura de Itapeva28

A escolha deste grupo se justifica pela própria configuração do Programa que ao criar um lugar – físico e social – para sujeitos com trajetórias de vida, por vezes, semelhantes,                                                                                                                          

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Imagem extraída de matéria intitulada: Vila Dignidade realiza festa do dia do Idoso, publica no dia 08 de

outubro de 2012 em: http://www.itapeva.sp.gov.br/secretaria/acao-social/noticia/vila-dignidade-tem-festa-no-

dia-idoso-3264/ - último acesso 09/09/2013. Da esquerda para a direita: Dona Delci, 2ª pessoa não conhecemos; Dona Maria Aparecida Rosa; atrás dela Seu Antonio, ao lado Dona Maria Carvalho; Dona Zélia; atrás dela Beth (coordenadora do Programa); ao lado as duas pessoas seguintes não conhecemos; Dona Maria Duffet; Seu Abel; Seu Irineu e Dona Tereza.

Página  |  41   dispõe de um conjunto de sujeitos que em razão de sua condição humana e de sua interação, possui unidade argumentativa diante de uma problemática comum (Ataíde: 2002), formam uma comunidade de destino.

Essa comunidade de destino não representa os idosos, esse conceito genérico e pasteurizado, tão exaustivamente reproduzido, mas, apenas, uma pequena parcela de pessoas com mais de sessenta anos que tiveram suas trajetórias individuais marcadas por fenômenos comuns: subemprego, viuvez, abandono, doenças, acidentes, e outros imponderáveis que as expuseram a situações de vulnerabilidade.

Não houve um número certo de entrevistados estabelecido a priori, participaram da pesquisa aqueles que tiveram vontade e disponibilidade. Dos vinte moradores entrevistamos dez, conforme tabela abaixo, sendo: cinco mulheres e cinco homens. Realizamos dez encontros: nove entrevistas foram individuais e uma, em que o entrevistado seria o marido, contou com a participação da mulher, em vários momentos.

Do total das entrevistas utilizamos oito. Duas foram descartadas após criteriosa avaliação: uma por apresentar detalhes da intimidade da entrevistada que entendemos poder colocá-la em risco de violência doméstica e a outra pela dificuldade do entrevistado em construir sua narrativa – no conjunto, muito fragmentada e dispersa das questões que norteiam a pesquisa.

Abaixo, tabela identificando os colaboradores deste trabalho:

Tabela  1:  Identificação  de  nossos  colaboradores  

Nome Idade Escolaridade Profissão Cidade Natal

Geni de Oliveira Lima 73 Analfabeta Lavadeira Itapeva

Maria Aparecida Duffet 86 4ª série Costureira Itaberá

Abel Paulino dos Santos 64 2º Grau Caminhoneiro Itaberá

Adelino Rocha 84 _ Agricultor Itaberá

Zélia Aires dos Santos 64 - Bóia fria Jaguariaivá/PR

Cipriano Divino Gomes 61 4ª série Ajudante Geral Apiaí

Maria Carvalho de Lara 66 1º ano Dona de Casa Itapeva

Irineu Fonseca 64 4ª série Caminhoneiro Itapeva

Antonio de Paula Galvão 75 4ª série Pedreiro Serro Azul - PR

Maria Aparecida da Rosa 63 4ª série Doméstica Presidente

Um grupo aparentemente reduzido e em nada homogêneo. Compreende 50% dos moradores da vila e concentra pessoas em diferentes momentos da vida: algumas que acabaram de entrar na chamada “Terceira Idade” e outras que vivem nela há quase trinta anos; algumas totalmente independentes e outras que convivem com determinadas limitações físicas ou cognitivas leves, pessoas de bem com a vida e outras nem tanto; otimistas e pessimistas; algumas velhas outras “jovens de espírito”; algumas cansadas, outras com disposição para viver mais 50 anos.

Nesta breve apresentação ficam evidentes as inúmeras singularidades e a impossibilidade em falarmos da velhice, ou dos idosos, de forma generalista. São infinitas as possibilidades de viver a velhice e a categorização pura e simples, “os idosos”, que considera apenas a quantidade de anos somados com a passagem do tempo, se mostra de partida, irreal.

Ela propaga a velhice e o envelhecimento como coisas ruins, que devem ser afastadas de nós - a qualquer preço - em prol do prolongamento de uma vida que nem sempre esta pautada em viver bem a vida. Conduz-nos a uma viagem inevitável às fragilidades, incapacidade, desamparo e à morte.

Essa concepção apregoa o rejuvenescimento constante e a reversão do processo de envelhecimento através do uso de produtos cosméticos, medicina plástica (para reparar os defeitos provocados pelos anos), alimentação adequada, viagens, atividades físicas e uma série infinita de indicações que aquecem o mercado, nos obrigando consumir a fantasia da juventude eterna.

Fugindo destes estereótipos buscamos as particularidades e encontramos diversas visões sobre o envelhecer que foram construídas ao longo da vida, pela maneira com que cada pessoa viveu e encarou a força dos acontecimentos imponderáveis deflagrados em suas trajetórias.

As entrevistas foram pensadas para acontecer individualmente e assim foram operacionalizadas, exceto pela vontade de um casal – Seu Irineu e Dona Tereza - que optaram por realizá-la juntos. Na realidade, D. Tereza, inicialmente, disse que o entrevistado seria seu Irineu – ele falaria pelo casal, mas em alguns momentos ela, que esteve presente toda a entrevista, se manifestou e acabou que ambos participaram do processo.

Por esta razão, a narrativa de Seu Irineu foi a que demandou maior esforço no processo de transcriação. Era preciso manter a proposta do trabalho – cada idoso ter a sua narrativa – sem silenciar Dona Tereza. A solução encontrada foi colocar as contribuições de Dona Tereza na fala de Seu Irineu como no trecho a seguir: “A Tereza sempre ficou em

Página  |  43   Itapeva. De vez em quando ela viajava comigo quando eu trabalhava no caminhão que era do meu pai. Quando eu trabalhava nas outras firmas, de vez em quando ela ia comigo. Foi pra São Paulo, pra Campinas, pro Rio, pra Porto Alegre e pra Santa Catarina”.

O tempo estimado para cada entrevista foi de 1hora podendo, é claro, se prolongar, ou não, a depender da disponibilidade de nossos colaboradores em nos expor suas vidas. Tivemos entrevistas que se concluíram em menos de 30 minutos e outras que chegaram a 1h30 de duração.

Nossos colaboradores escolheram o local onde gostariam de ser entrevistados e, na hora marcada, estavam a minha espera. Visitei sete residências, dois entrevistados realizaram a entrevista no Salão de Convivência e um numa das pracinhas do condomínio.

O momento da entrevista é único e acontece regado de emoções e impressões que vão ganhando forma ou vão se diluindo no desenvolver da conversa. O inicio é sempre tenso, imagino que para ambos. Para o pesquisador fica a sensação de invadir a vida do Outro, um desconhecido que, por razões pouco explicáveis, aceita abrir a sua vida e se submeter à curiosidade alheia. Para o entrevistado uma chateação, às vezes, mas quase sempre, o reconhecimento de que sua história tem algum valor e sua experiência é digna de ser partilhada com os mais jovens29.

Cada entrevista se desenrola num clima de imprevisibilidade. Acontece à seu modo e muitas vezes nos pega de surpresa com situações inusitadas - como uma piada com conotações sexuais que é solta pelo entrevistado após emergência de empatia entre entrevistado e entrevistador, ou alguma lembrança dolorosa, que o entrevistado não quer mexer e o entrevistador, no entusiasmo, insiste sem se dar conta da invasão.

Dona Geni nos recebeu com desprendimento. Quando chegamos à vila – no primeiro dia de entrevistas – foi ela que nos abriu o portão e já foi nos convidando para entrar em sua casa e tomar um café – que acabara de coar. Como eu cheguei cedo ela, mesmo sem estar agendada, já se dispôs a nos contar sua história.

Havia entrado no Programa há apenas 14 dias e estava extasiada com a experiência de viver ali. Passava por uma situação muito difícil: foi despejada de sua casa, pois estava com o aluguel atrasado - quando foi contemplada não tinha endereço.

Nossa conversa foi breve e bem objetiva. Como ela não estava agendada, eu temia atrapalhar sua manhã e atrasá-la para as vendas de sonhos.

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Tivemos noção da importância que representava, para a maior parte dos idosos, ser entrevistado pelo clima cerimonial que era dado a este momento. No horário marcado eles estavam à nossa espera, todos preparados para a solenidade – bem vestido, de posse de seus documentos e integralmente dedicados ao encontro.

Com D. Maria Aparecida Duffet o encontro se deu em ritmo de cerimônia. Antes do horário marcado ela já estava à minha espera no Salão de Convivência - é uma mulher muito bonita e estava linda, toda preparada para este momento.

Fomos à sua casa, que estava impecável, tudo muito limpo e organizado – parecia uma casa de boneca. Quando falou de sua infância e juventude se emocionou muito com as lembranças represadas e que vieram à tona. Nossa conversa foi longa e cheia de emoções, ao final percebi que ela estava cansada e desgastada emocionalmente.

A conversa com Seu Abel foi marcada por silêncios que eu não soube como penetrar... Sua ansiedade era tanta que me tocou e me deixou sem jeito para conduzir a entrevista. Percebi que ele tinha selecionado o que diria – não sei se com receio do que pudesse lhe ser questionado.

Na transcrição desta entrevista tomei consciência da importância do uso do gravador. Ele permite ao pesquisador ouvir a conversa em outro contexto, quantas vezes desejar, recriar o cenário e rever sua performance.

Graças a ele, parte de nossas impressões se diluíram quando ouvíamos nosso dialogo com seu Abel – por exemplo, ficou mais claro que os silêncios tiveram sim à ver com suas escolhas pelo que falar, mas não somente; eles também decorrem de sua fala baixa e pausada, conseqüência do AVC. O nervosismo que tomou conta de nós no momento da entrevista não nos permitiu perceber esse detalhe, que na escuta, se mostrou tão evidente.

Seu Adelino é um contador de histórias, com ele realizamos a entrevista mais fantástica... Ao narrar se parece com um poeta recitando epopéias.... Várias intensidades e tons marcam sua fala que é ritmada, típica de nossa cultura rural – marcada pelo sotaque e pela linguagem característica da roça.

Foi difícil o processo de transcriar, transpor a linguagem oral, e seu rico vocabulário de homem do campo, para a linguagem escrita, que não reconhece palavras com a conjugação fora da norma culta ou que não constem em dicionários. Neste processo privamos pela mínima intervenção possível, vez ou outra um “tá” foi substituído por um “esta” – no intuito de não deixar o texto cansativo para o leitor.

No geral, o desafio foi não perder o ritmo e a sonoridade do texto falado quando o transpusemos para a linguagem escrita, por isso preservamos erros gramaticais e palavras que só existem na língua falada como: barataida (para definir o plural de baratas); maleita (doença de Chagas), encaixador (nome dado à peça onde a cana de açúcar se encaixa para ser triturada, nas engenhocas improvisadas por quem não dispõe de recursos para a aquisição de

Página  |  45   um engenho), tremimento (tremedeira nas pernas); andada (caminhada), aluminar (iluminar com lampeão), fumegar (borrifar veneno com bomba).

Dona Delci, que estava ótima no dia em que chegamos à vila, falante e disposta a colaborar, foi acometida por um súbito mal estar no dia em que estava agendada a sua entrevista. Todo o tempo que passamos na vila ela se mostrou debilitada e pouco à vontade para recusar ser entrevistada, por isso, achamos melhor não realizar a entrevista evitando a sua exposição – o que nos pareceu ser o seu grande temor.

Dona Zélia preferiu conversar conosco no Salão de Convivência. Nossa conversa foi breve e bastante objetiva. Para ela nosso questionário não serviu de disparador, respondia apenas o que lhe perguntava sem aprofundamento e sem se deixar levar por emoções. É uma mulher muito independente e prática, nos parecia que ela queria acabar logo com aquilo, não porque fosse difícil realizar, mas pra poder fazer outras coisas.

Seu Antonio estava à minha espera. Me recebeu em sua casa e tivemos uma conversa longa e muito agradável. Na entrada percebi que na mesa da cozinha havia bíblias e revistas religiosas. Ele estava de corpo e alma em nosso encontro. Cuidou para que eu compreendesse o que ele falava e, por fim, conduziu o processo – como se estivesse me entrevistando, sua intenção era saber de minha vida religiosa e me apresentar a sua Igreja, quem sabe me convenceria a conhecê-la melhor. Ele é um pregador e é agradável ouvi-lo falar de Deus, sua fé impressiona!

Por fim, Dona Maria Rosa, que nos recebeu em sua casa, nos deu uma lição de vida ao narrar histórias de superação. Mergulhou em nosso encontro, reviu e coloriu o seu passado com as luzes do presente. Nos encontramos em sua casa e a satisfação em poder contar sua história me fez ter certeza de que valeu à pena desenvolver essa pesquisa.

Capitulo II: Tempo de Rememorar: o lugar de estar nas narrativas de