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Saberes que se entrelaçam arquitetando as percepções da Casa 130

Capitulo  III:   A Casa é onde quero estar: Lugar, Memória e Velhice 130

3.1   Saberes que se entrelaçam arquitetando as percepções da Casa 130

A Casa é tema de investigação recorrente nas Ciências Humanas e Sociais e nas Artes. Primeiro lugar em que nos situamos no espaço, lócus da existência humana e parte constituinte de nossa identidade e subjetividade. São freqüentes estudos que a abordam, sobre as mais diversas perspectivas: na Literatura, na Arquitetura e na Psicologia.

Na Antropologia, trabalhos significativos foram desenvolvidos por Gilberto Freyre60 e, mais recentemente, por Roberto DaMatta abordando a Casa como alegoria para compreensão da sociedade brasileira e sua formação cultural. No entanto, nas Ciências Sociais, constatamos limitada bibliografia sobre este tema.

Esta escassez nos fez trilhar novos caminhos na busca pela compreensão do imaginário social que paira sobre a idéia de Casa. Para investigarmos as sensações do morar, recorremos a outras fontes e nos aproximamos da musica.

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Principalmente os clássicos Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia

patriarcal, 25ª. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1987 e Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.

Página  |  131   Como é característica das artes anteciparem questões debatidas por teóricos das Ciências Humanas e Sociais as letras de musica que têm a Casa como inspiração se apresentaram como alternativa valiosa à analise antropológica pois acrescentaram poesia e sutilezas de uma realidade própria deste gênero artístico ampliando nossas possibilidades de percepção deste lugar.

DaMatta, preocupado com as relações em nossa sociedade, explorou a Casa em contraposição à Rua. Em sua obra A Casa & A Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil61, o autor nos mostra que, além de espaços físicos, tais metáforas são conceitos repletos de significados; importantes para a compreensão das contradições, ambigüidades e complementaridades das relações sociais no Brasil.

Este autor nos diz que “o espaço é como o ar que se respira. Sabemos que sem ar morremos, mas não vemos nem sentimos a atmosfera que nos nutre de força e vida” (DaMatta: 1997), portanto, é preciso nos situarmos para vermos e sentirmos os distintos espaços e as temporalidades que neles se desenvolvem; afinal, na sociedade brasileira:

[...] o espaço não existe como uma dimensão social independente e individualizada, estando sempre misturado, interligado ou ‘embebido’ como diria Karl Polany - em outros valores que servem para a orientação geral.

DaMatta: 1997: 20

De acordo com esses valores, DaMatta nos mostra que o espaço da Casa é o universo privado da família, parentes, compadres e amigos; lugar privilegiado do aconchego, do repouso e da hospitalidade; espaço das ações que podem ser condenadas na rua e do tempo dos finais de semana – tempo interno, de lazer e para ser vivido em família. Em contraposição, a rua é o lugar da individualização, de sujeitos anônimos submetidos à frieza da lei, às relações impessoais e ao tempo externo, marcado pelo ritmo do trabalho.

Ampliando a perspectiva de DaMatta algumas canções, que fazem parte de nosso repertório musical62, nos ajudaram a pensar esse lugar denominado Casa. Iniciamos nossa incursão pela Casa de Arnaldo Antunes (A casa é sua: Iê, iê, iê: 2009) que tem quintal, sala de estar, sala de jantar, cozinha, quartos e banheiro.

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DaMatta, R; A Casa & a Rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil; Rocco; Rio de Janeiro; 1997. 62

A escolha destas canções se deu de forma aleatória. Ao ouvi-las, durante o processo de produção desta dissertação, percebemos que poderiam ser exploradas em nossa analise.

Os espaços desta morada, como evidencia DaMatta, misturam-se aos sentidos que regem as relações pessoais e intimas de seus habitantes; dependem deles para superar a impessoalidade e a condição de objetos inanimados e dar vida ao lar.

O antropólogo sugere que “de casa vêm também casamento, casadouro e casal, expressões que denotam um ato relacional, plenamente coerente com o espaço da moradia e da residência” (DaMatta: 1997: 54). O musico, em sua composição, relaciona plenamente Casa e casamento e, abrindo mão da racionalidade, descreve os espaços de sua Casa utilizando unidades de medida puramente emocionais.

Para dimensionar sua solidão, decorrente da ausência do companheiro, Antunes mergulha nos espaços da casa, transformando-os em instrumentos catalisadores de seus sentimentos. Nada de material lhe falta: tapetes, relógio, abajur, se integram aos espaços, caracterizando e compondo-os para seus distintos usos. No entanto, a solidão, e a ausência de quem se ama, torna insuficientes os objetos e incompletos os espaços da Casa. A sala nada diz sem “você sentada... sem você estar”. Não falta tapete, mas “falta o seu pé descalço pra pisar”. Não falta cama, mas “falta você deitar”.

Os objetos, vivos por testemunharem e partilharem a intimidade do casal, estão à beira da loucura e a desordem, decorrente da ruptura da relação e ausência da parceira, é tamanha que “até o teto tá de ponta-cabeça porque você demora” e é sentida também pelo cachorro que pede socorro com seus uivos incessantes.

Antunes tem Casa, mas “falta ela ser um lar”. Lar que, como bem demonstra o Dicionário Houaiss, em sua origem, se relaciona com lareira, local da cozinha onde se ascende o fogo que com suas chamas iluminam, aquecem e transformam os alimentos (apud Fellipe: 2010). O fogo, que tem como combustível a presença da amada, faz com que os pássaros voltem a cantar, a nuvem desenhe um coração flechado, o chão volte a se deitar e a chuva batuque no telhado.

A presença – amor - aquece a vida da Casa e a eleva à condição de Lar; a ausência – solidão - torna os objetos impessoais e desencadeia intenso processo de desumanização da Casa - o fogo latente do lar se apaga. Quando extraída da Casa a carga emocional, que frutifica do acolhimento e promoção de trocas afetivas entre as pessoas que habitam esse lugar, ela deixa de ser a concha protetora e perde sua função de habitar – estar presente, permanecer (Houaiss).

Lugar de estar bem. Os sentimentos que lhes são suscitados se associam naturalmente a elementos da natureza: estar possibilita abundancia de sol da manhã para acordar; permite

Página  |  133   que as janelas se abram e o vento brinque no quintal - embalando as flores do jardim, balançado as cores no varal; permite que os pássaros cantem e as nuvens desenhem um coração no céu.

A dosagem destes elementos naturais com a companhia de alguém que se ama, transformam a Casa em Lar: Casa idealizada e projetada a partir de relações afetivas - do amor de quem se quer bem. Fortaleza que protege as relações afetivas, Casa sem amor não é lar! A casa é automaticamente associada ao mundo material enquanto que o Lar relaciona-se com o mundo afetivo denotando lugar de proteção.

Entre os romanos e os etruscos Lares eram os deuses familiares e protetores do lar doméstico (Dicionário Houaiss). O artista parece utilizar-se do mito para distinguir e contrapor Casa e Lar. Casa que não é lar, pois cadeira, sofá e cama, na ausência de quem se quer ter, perdem a vida, e se reduzem a objetos que servem apenas à composição e otimização dos espaços. Casa que é Lar traz a segurança que tem como pilar as relações afetivas.

Nesta casa sem vida o tempo é árduo e difícil de ser suportado: nem o prego agüenta o peso do relógio - que marca um tempo pesado e lento; sem calor, sem afeto, tempo morto.

Outra canção, do grupo Biquíni Cavadão (Meu Reino: 1989), apresenta uma Casa aparentemente menor e mais modesta em sua composição que a Casa de Arnaldo Antunes: sala, cozinha e quarto; mas imensa em sua função: Casa guardiã de bens, sensações e impressões que alimentam corpo e alma e formam as idéias sobre o mundo.

Atrás da porta, o morador guarda seus sapatos, no armário suas roupas, na sala os livros e na geladeira o sabor das refeições. O significado dado a Casa está à altura de sua função: “minha Casa é o meu reino” cantam os compositores. Reino que não se reduz ao seu interior, ganha sentido e se amplia com a conexão com o mundo externo, com as relações que tece com as diversas temporalidades e processos externos ao lar e em tudo que vem de fora, junto com seus habitantes.

Enquanto a Casa de Antunes adquire/ perde significado na relação estabelecida entre o casal que habita o Lar, o morador de Biquíni Cavadão dá sentido à sua Casa na relação que estabelece com o mundo. Mais uma vez, é DaMatta quem nos ajuda a entender a relação do espaço interno da Casa com o mundo externo, este autor nos diz que a Casa é:

[...] espaço que somente se define e deixa apanhar ideologicamente com precisão quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios. Assim, se a casa está, conforme disse Gilberto Freyre, relacionada à senzala e ao mocambo, ela também só faz sentido quando em oposição ao mundo exterior: ao universo da rua. Ou seja: o

que temos aqui é um espaço moral posto que não pode ser definido por meio de uma fita métrica, mas - isso sim - por intermédio de contrastes, complementaridades, oposições. Nesse sentido, o espaço definido pela casa pode aumentar ou diminuir, de acordo com a unidade que surge como foco de oposição ou de contraste.

DaMatta: 1997: 15-16.

Os sujeitos se constroem e se constituem socialmente na relação com o mundo externo. Assim, a Casa Reino é também, espelho do mundo, onde idéias e sentimentos se refletem. Seu habitante se define como a soma de tudo que vê, daí precisar de outros sapatos, roupas e temperos para formar suas idéias e sentimentos.

A Casa Reino é o lugar de estar em paz. Lugar seguro para os devaneios: à noite, na intimidade de seu quarto, o morador sonha com as coisas mais loucas. Os sonhos são a fuga ou o lugar de ser - nos sonhos lembranças perdidas e sem sentido se juntam, para além da razão, e soam como música.

É também nos sonhos que o mundo externo - violência, dúvida, dinheiro e fé - invade a Casa habitando os devaneios de seu morador. Os sonhos carregam a imagem das ruas por onde passou e de alguém que não sabe quem é: “E que provavelmente eu não vou mais ver”; mas que pela empatia entrou em seu Reino: “Mas mesmo assim ela sorriu pra mim. Ela sorriu e ficou na minha casa que é meu reino”.

A Casa de Biquíni Cavadão é lugar de ser: lugar privilegiado para construir a si mesmo e a relação com o mundo.

Elis Regina também cantou a Casa (Casa no Campo: 1971) ou seu desejo de Casa. Em contraposição à agitada vida urbana, a intérprete idealiza uma Casa no Campo, que lhe dê apenas a certeza dos amigos do peito, dos limites do corpo e nada mais.

A Casa de Elis Regina é modesta, confeccionada com os elementos mais rudimentares e simbólicos de nossa cultura rural: pau à pique e sapé. Sua dimensão é ideal para plantar amigos, livros, discos e lhe permitir ficar do tamanho da paz.

As esperanças em relação à Casa são imensas. Que ela seja o lugar de provimento das necessidades do corpo e conhecimento de seus limites: “eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim [...] eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal”. Espera, ainda, que esta Casa seja lugar de criação: “onde eu poça compor muitos rocks rurais”. E que seja o lugar seguro para viver a velhice: “eu quero a esperança de óculos”.

A Casa de Elis é a fortaleza em que ela pretende proteger seus bens mais valiosos: os amigos, os livros e os discos e encontrar a paz, a tranqüilidade do Lar.

Página  |  135   Nas três canções escolhidas para subsidiar nossa discussão percebemos que a noção de Casa se vincula à segurança dos afetos. Ela é a grande guardiã das emoções, da individualidade e da subjetividade de seus moradores. Lugar da intimidade protegida, a partir do qual as pessoas se projetam no mundo e o apreendem.

Bachelard se dedicou ao estudo da poética do espaço, tendo como instrumento a literatura, e nos alertou de que “há um sentido em tomar a casa como instrumento de analise para a alma humana” (Bachelard: 2008). Acreditamos que assim procedendo ampliaríamos seu valor de proteção e, desde o inicio desta pesquisa, inspirado neste autor, tomamos a Casa, conforme sua concepção:

[...] a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela? Os escritores da ‘casinha humilde’ evocam com freqüência este elemento da poética do espaço. Mas essa evocação é excessivamente sucinta. Como há pouco a descrever na casinha pobre, eles quase não se detêm nela.

Bachelard: 2008: 24

Estamos investigando como velhos trabalhadores pobres percebem a Casa. Suas residências são simples, pequenas e modestas. Não foram por eles projetadas, mas concedidas pelo poder público. Apesar disso, materializam o sonho de toda uma vida de trabalho.

Nosso interesse diante da percepção de espaços tão modestos é tocar na segurança que eles podem garantir aos seus habitantes. Segurança que tem sua importância ampliada quando nos direcionamos para pessoas que enfrentaram as mais diversas situações de risco, incerteza e vulnerabilidade e que chegaram à velhice sem condições de prever o amanhã.

Diferentemente de Bachelard, que tem sua investigação ancorada principalmente nos campos da filosofia e da psicanálise, nossa preocupação, como cientistas sociais, perpassa pela importância que a conquista da Casa tem para o sujeito – enquanto reconhecimento e fortalecimento de sua identidade -, mas esta centrada na importância social de garantir às pessoas o direito à moradia e, na incompletude deste direito, a necessidade do poder público criar formas de acolhimento para as pessoas idosas, para além da velha e histórica institucionalização dos sujeitos nos asilos de velhos, hoje denominados Instituições de Longa Permanência.

Como microcosmo reprodutor das relações sociais a Casa é lócus do debate sobre estar seguro. Na arte, as musicas nos mostraram que a segurança expressa no ideário de Casa

refere-se à proteção dos afetos. Com os idosos questionamos quais os sentidos de ter ou não ter Casa e quais proteções a propriedade desse lugar/espaço pode lhes assegurar? Junto com os idosos exploramos os modos com que as pessoas inventam socialmente este espaço e qual a importância dele para os sujeitos que envelhecem.