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Conhecimento do códice Edições

2. APRESENTAÇÃO DO ESTUDO

1.1. Conhecimento do códice Edições

O Cancioneiro que é hoje conhecido por Cancioneiro da Ajuda encontra-se actualmente depositado sem cota na Biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa e é designado, em geral, pela sigla A ou ainda CA, que comparece em alguns estudos1. Depositário parcial da mais antiga

recolha das cantigas de amor2, é o único cancioneiro da lírica galego-portuguesa de procedência

ibérica e é também o único chegado até nós que se pode situar ainda no tempo da actividade poética dos trovadores3.

Do Cancioneiro da Ajuda pouco mais se sabe quanto à sua história antiga, anterior ao século XIX, para além de constituir provavelmente uma cópia incompleta de material proveniente de uma primeira recolha colectiva e para além de estar, por certo, ligado a um ambiente cortesão (Tavani 1969).

Foi casualmente encontrado por Charles Stuart de Rothesay, embaixador do governo britânico em Portugal na Biblioteca do Real Colégio dos Nobres e, pela primeira vez, tornado público em Paris em 1823, com uma edição em número bastante reduzido de vinte e cinco exemplares, sob o título Fragmentos de hum Cancioneiro Inedito que se acha na Livraria do

Real Collegio dos Nobres de Lisboa. Impresso á custa de Carlos Stuart, socio da Academia Real

de Lisboa. Em París, no Paço de Sua Magestade Britannica. MDCCCXXIII. Edição magnificente com pretensões ao que poderíamos, hoje, designar de edição semi-diplomática foi acompanhada pela impressão de uma folha solta em 1824 ou 1825 com o título de Advertência que incluía uma descrição do códice e do seu estado de conservação de autoria atribuída ao erudito Timotheo Lecussan-Verdier4. Devido ao local da descoberta e ao título dado por Stuart

1 Se a sigla CA é utilizada por Michaëlis (1904) e reproduzida em vários ensaios portugueses que citam este manuscrito, A impõe-se após os estudos inaugurados pela escola filológica italiana, sobretudo com Tavani (1967) e o seu pioneiro exame sobre a tradição lírica galego-portuguesa.

2 É um facto que a maior parte das composições que constitui actualmente o Cancioneiro deve ser integrada em uma tipologia de amor (cantigas de amor, de meestria ou com refran). Algumas delas, no entanto, admitiriam uma classificação muito mais especializada (paródias, escarnhos de amor, sirventeses, dialógicas, encomiásticas) como A 37, A 38 [PaySrzTav]; A 62 [RoyGmzBret]; A 104, A 105,

A 106 [PGarBu]; A 142, A 143 [RoyQuei]; A 198 [RoyPaesRib]; A 256 [PayGmzCha]; A 282 [PEaSol]; A

305 [MartMo?], etc. A este propósito, leia-se a opinião de G. Tavani que enumera as cantigas presentes no Cancioneiro da Ajuda que não obedeceriam ao cânone amoroso na sua comunicação ao Colóquio

Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) realizado em Lisboa em Novembro de 2004 (Tavani s.d.). Além deste

critério, admitem-se também agrupamentos métricos na organização da recolha (Billy 2004).

3 Ainda que a data não seja absolutamente determinável como vamos ver, não há hesitação em colocar materialmente a confecção deste manuscrito nos finais do século XIII, ou inícios do século XIV.

4 Charles Stuart, barão Stuart de Rothesay (1779-1845), foi diplomata britânico e reputado bibliófilo com desempenho de várias funções políticas em Madrid (1808) e em Portugal (1810). Conselheiro em 1812 e ministro em La Haye (1815-1816) foi ainda embaixador em Paris (1815-1830) e em St. Petersburg (1841-

na sua edição foi, durante algum tempo, identificado como Cancioneiro do Collegio dos

Nobres.

A 5 de Maio de 1832, por decisão governamental, foi transferido para a Biblioteca Real, contígua ao Palácio da Ajuda, pouco antes da extinção do Real Colégio dos Nobres que ocorre em 1837. Alguns anos mais tarde, foram encontrados na Biblioteca Pública de Évora onze fólios que pareciam pertencer ao Cancioneiro5. Deles deu notícia J. H. da Cunha Rivara em 1842 ao reparar no título dado por Stuart, Cancioneiro, «sendo os versos todos de um só auctor» (Rivara 1842: 406)6. Remata o seu comentário à publicação de Stuart desejando uma nova edição: «Este

livro merecia pois uma nova edição, que o tornasse verdadeiramente vulgar e conhecido. O original está na bibliotheca real da Ajuda; e na bibliotheca publica eborense ha mais onze folhas

1845). Embaixador de D. João VI, no Brasil, participou na independência entre Portugal e Brasil e testemunhou praticamente a abdicação de D. Pedro IV em 1826. Conde de Machico em 1825 e marquês de Angra, no ano seguinte, é-lhe atribuído em 1828 o título Stuart de Rothesay da ilha de Bute. Correspondência, notas e materiais diversos do bibliófilo encontram-se actualmente em várias caixas depositadas na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Department of Special Collections). A propósito do núcleo de duas importantes livrarias portuguesas, a do Conde de Lavradio e a de João Evangelista da Guerra Rebelo da Fontoura, Bivar Guerra pronuncia-se acerca da biblioteca de Lord Stuart de Rothesay como base das citadas livrarias (Guerra 1973: 120-123). Existe igualmente um catálogo de leilão da sua biblioteca em Sotheby, S. Leigh, and John Wilkinson [Auctioneers], Catalogue of the

valuable library of the late right honourable Lord Stuart de Rothesay. London: J. Davy and Sons, 1855

ao qual se referia também C. Michaëlis (1904, II: 6, n. 1). A sua edição do Cancioneiro, largamente comentada por Michaëlis (1904), apresenta modificação de cantigas, alterações da ordem textual presente no manuscrito e leitura deficiente. Tem, no entanto, a enorme vantagem de podermos confrontar o estádio do Cancioneiro antes da intervenção da filóloga. Timothée Lecussan-Verdier, conhecido letrado e erudito francês dos finais do século XVIII que estabeleceu vários contactos com a cultura e com a política portuguesas da época, é o Autor desta introdução à publicação de Stuart. É ocasionalmente citado em diversos ensaios dedicados aos contactos literários entre Portugal e França durante este período (Michaëlis 1904, II: 9, 143; Cunha 1990: 53-81). Deve-se a Cunha Rivara a identificação da autoria desta

Advertência: «A curta, mas erudita Advertencia, que no livro anda impressa, é obra do bem conhecido

Thimotheo Lecussan Verdier, tão benemerito das letras portuguezas; e postque não traga o seu nome, facilmente se revela pelo estilo, e fóra de toda a duvida no-lo affirma o nosso amigo, dono do livro, pelo saber do proprio Verdier» (1842: 406). A esta introdução também se refere I. Francisco da Silva: «Tem no principio uma breve, mas erudita advertência, que se crê ser de Thimotheo Lecussan Verdier» (1909, II: 317).

5 Nem sequer C. Michaëlis é muito explícita quanto a esta notícia. A primeira vez que a ela se refere limita-se, no comentário à edição Varnhagen, «ás 260 Cantigas da impressão de 1823 [Stuart] juntara mais 42 tiradas das 11 folhas avulsas, vindas de Évora, e copiadas por Herculano» (1904: 21). Só mais adiante, em parágrafo específico, refere um enigmático «soube-se»: «Decorrido um deccenio, soube-se que em Évora se guardavam na Biblioteca Publica, onze folhas desmembradas do Cancioneiro...» (1904, II: 100). Por fim, no Índice alfabético remissivo, acompanhado de algumas notas adicionaes, s.v. Évora, informa que «na biblioteca pública antigamente dos Jesuítas, foram encontradas onze folhas avulsas do códice da Ajuda» (Michaëlis 1904, II: 965).

6 José Heliodoro da Cunha Rivara, responsável pela Biblioteca de Évora de 1838 a 1855, dá conta deste achado em uma brevíssima conclusão à notícia publicada em O Panorama sobre a edição de Stuart (1842: 406-407).

do proprio codice, as quaes já andavam extraviadas ao tempo em que se tratou de publica-lo» (Rivara 1842: 407)7.

Também D. João d'Annunciada, pouco tempo após a publicação de Stuart, na sua manuscrita Historia da Litteratura Poetica Portugueza, depositada na Biblioteca Pública de Évora [Armário I-22] e redigida entre 1825 e 1847, referia-se ao Cancioneiro designando-o como Cancioneiro Portuguez Galliziano, indicando que C. Stuart o tinha mandado copiar em 1810. Faculta uma extensa descrição quanto ao conteúdo do Cancioneiro e referia, por fim, a existência dos fólios que se encontravam em Évora e que lhe tinham sido mostrados por Cunha Rivara8.

É então que, após petição de Alexandre Herculano, na altura Bibliotecário-Mor da Real Biblioteca da Ajuda, os fólios eborenses são transferidos para Lisboa e posteriormente integrados no códice, a 26 de Junho de 1843 (Michaëlis 1904, II: 100)9. A produção editorial

relativa ao códice activa-se, de novo, no estrangeiro. O historiador brasileiro Francisco Adolfo

7 Em uma das pastas referente à cota CXIV/2-34, documenta-se o seguinte: «São onze folhas que foram arrancadas do Cancioneiro do Collegio dos Nobres, o qual está hoje na Real Bibliotheca da Ajuda. Já andavam extraviadas quando o Sr. Carlos Stuart imprimiu o Cancioneiro em Paris. 1823». A propósito da transferência para a Biblioteca da Ajuda, pode ainda ler-se na mesma pasta: «NB As próprias foram por ordem do Ministerio do Reino entregues na Secretaria do Governo Civil em 28 de Maio de 1843 de cuja entrega serve de recibo o officio do Secretario Geral ao Bibliothecario, com data de 30 do mesmo mês; e que se conserva no Masso competente». Na cota em que estavam as onze folhas de pergaminho – CXIV/2-34 –, encontra-se agora cópia dos textos que Rivara teve a preocupação de fazer antes de os originais virem para Lisboa. Em outra nota, foi acrescentado: «Foram impressas na 2ª edição do mesmo Cancioneiro por Varnhagen em Madrid, 1849». Estas notícias são referidas por I. Cepeda no seu trabalho dedicado à antiga cota do Cancioneiro da Ajuda (Cepeda s.d.; Rivara 1850-1871). No mesmo ms., pode ler-se a indicação «As originais foram por ordem superior para a bibliotheca de Ajuda, onde se conservam com o volume de que faziam parte». M. Arbor, na mesma linha de I. Cepeda, apresenta uma síntese sobre estas cópias (Arbor 2007).

8 É no capítulo XXVIII [fl. 150v] que encontramos a descrição do Cancioneiro Portuguez Galliziano: «He quase desconhecido na litteratura Portugueza o Cancioneiro de que vou fallar. Consiste na copia d'hum Manuscripto mui antigo, e inedito do R. Collegio dos Nobres em Lisboa passado a letra moderna por Bernardo José de Figueiredo e Silva com faculdade de authenticar Documentos de letra antiga, e mandado copiar por Carlos Stuart em Maio de 1810 (...)». Alude à Obscuridade do Cancioneiro [fl. 155v], do Titulo [fl. 152v], dos Objectos que trata [fl. 185r], Quem seria o seu Author [fl. 187r], Que importância tem na historia [fl. 190v] e em nota de rodapé neste mesmo fólio refere-se aos fólios eborenses [fl. 190v].

9 É com um ofício datado de 4 de Março de 1843 a D. Manoel de Portugal e Castro, Vedor da Casa Real, que A. Herculano solicita o envio dos onze fólios para a Biblioteca de que era responsável: «Consta-me tambem por via segurissima que na Bibliotheca Nacional da cidade d’Evora acabam de aparecer algumas folhas avulsas do celebre e antiquissimo Cancioneiro chamado do collegio dos Nobres, codice que apesar de truncado é um dos mais preciosos manuscriptos da Coroa. Estas folhas, que assim avulsas são inuteis onde se acham devem vir, senão completar, ao menos enriquecer o codice a que pertencem, e de que foram arrancadas por mãos ignorantes em tempos remotos. Parece-me portanto que S. Mag.e as mandará restituir igualmente a esta Bibliotheca se V. Ex.a entender que é conveniente reclama-las tambem pelo Ministerio do Reino». O seu pedido foi aprovado a 17 do mesmo mês e a 26 de Junho de 1843 A. Herculano recepciona os referidos fólios. O ofício de entrega data de 5 de Junho de 1843 e está assinado por D. Manoel de Portugal e Castro: «Mandando entregar nesta Real Bibliotheca d’Ajuda as onze folhas do Cancioneiro...» (Santos 1965: 117, 135, 136, 138-139; Freitas 1910). Um esboço histórico acerca da constituição da Biblioteca da Ajuda em Ferreira (1980) e, mais tarde, também por Cunha Leão (1992).

de Varnhagen, visconde de Porto-Seguro, julgando reconhecer no códice o Livro das Cantigas10

do Conde de Barcelos, publica as suas Trovas e Cantares de um Códice do XIV Século: Ou

antes, mui provavelmente, o «Livro das Cantigas» do Conde de Barcelos (Madrid 1849),

seguido por um Post-Scriptum (1850), impresso na mesma cidade e ainda por umas Novas

Páginas de Notas às «Trovas e Cantares», isto é, a edição de Madrid do cancioneiro de Lisboa atribuído ao Conde de Barcelos, desta vez publicadas em Viena em 186811.

A primitiva localização do velho códice na Biblioteca do Colégio dos Nobres explica-se apenas por esta herança fortuita em meio jesuíta, visto o referido colégio ter pertencido à Companhia (Carvalho 1959). Dos cancioneiros quinhentistas italianos, pelo contrário, conhecia- se rapidamente o promotor das cópias e reconhecia-se o scriptorium onde tinham sido transcritos. Sabe-se que, por volta de 1525-1526, antes do saque de Roma em 1527, é A. Colocci (1474-1549) que promove as cópias italianas12. Mais recentemente, admite-se que por

volta de 1525, estava presente na Cúria Romana, António Ribeiro, quel da Ribera, camarário de Clemente VII (1523-1534), o provável intermediário entre os textos ibéricos e a iniciativa colocciana (Gonçalves 1984; 1986). Desta colectânea (ou antologia), chegada a Roma, não subsistem notícias, por agora, concretas, mas conjectura-se que ela não deveria estar muito afastada do Livro de Cantigas de D. Pedro, datável de 1340-1350, referido no seu Testamento, documento que é apenas conhecido no século XVIII com o clérigo teatino António Caetano de Sousa (1735-1748).

Só em 1904, após duas dezenas de anos de investigação, será publicada a grande edição crítica de C. Michaëlis de Vasconcellos: Cancioneiro da Ajuda. Edição Critica e Commentada

10 A designação «Livro das Cantigas» surgia com a publicação do testamento do Conde D. Pedro em que Caetano de Sousa explicitamente se referia a este «Livro»: «Nelle [Testamento] se declara Poeta, porque deixa as suas Poesias a ElRey de Castella, dizendo assim: Item mando o meu livro das cantigas a ElRey

de Castella. Deste livro faz mençaõ D. Nicolao Antonio na Biblioteca Hispana Vetus [tom. 2. pag. 9],

ainda que com a incerteza de ser do Conde, allegando a Affonso Chacaõ, que elle diz se imprimira em Hespanha; o Chantre Manoel Severim de Faria, em huma memoria de cousas raras, que tinha, faz mençaõ de ter o dito livro. Da sua existencia naõ póde já haver duvida, nem de que o Conde seja o seu Author, pela mençaõ, que delle faz no seu Testamento» (1946: t. I, Liv. II: 163-164). O Testamento de 1350 é publicado nas Provas (1946: 174-177). Na Biblioteca da Ajuda encontram-se cópias do testamento do Conde de Barcelos nos Cod. 51-VI-23, n°. 24, fl. 209-211; Cod. 51-VI-23, n°. 62, fl. 279-280v.

11 A publicação de Varnhagen, também examinada por C. Michaëlis (1904: 21-24), apresentava a novidade textual com os fólios de Évora ainda não criticamente inseridos, mas admitia a hipótese de identificação com o «Livro» do conde D. Pedro que, embora em outros moldes, não deixará de ser acolhida pela crítica posterior. Penso, por exemplo, na aproximação do arquétipo da lírica galego- portuguesa a este «Livro das Cantigas», desde as primeiras análises de Tavani sobre a tradição ms. (1967). A descoberta do outro Cancioneiro português [Cancioneiro Colocci-Brancuti / Cancioneiro da

Biblioteca Nacional de Lisboa] pelo historiador italiano Costantino Corvisieri na biblioteca do conde

Paolo Antonio Brancuti é dada a conhecer a E. Molteni que, pouco tempo depois, projecta publicá-lo apenas nas partes não comuns à outra recolha. A edição será completada por E. Monaci devido à morte de Molteni (Molteni 1880).

12 E. Monaci publicou uma cuidada edição diplomática, acompanhada de fac-símiles, notas e índice onomástico, tabela de abreviaturas do Cancioneiro da Vaticana (Monaci 1875).

por Carolina Michaëlis de Vasconcellos, 2 vols., Halle a.S., Max Niemeyer, 1904. O incomensurável trabalho abrange a fixação do texto, não só dos poemas presentes no códice da Ajuda, como ainda de cento e cinquenta e sete composições obtidas nos cancioneiros copiados em Itália – o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Vaticana13 – as quais, no entender da filóloga, deviam fazer parte da recolha primitiva, um «Cancioneiro Geral Galego- Português», dividido em três partes: cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas «de burlas». Desta edição, que se insere na genuína tradição germânica de metodologia lachmaniana da época14, existem diversas reimpressões anastáticas: Torino, Bottega di Erasmo, 1966;

Hildesheim-New York, Georg Olms, 1980; Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, que inclui, contrariamente às precedentes, o Glossário15 que C. Michaëlis tinha publicado na

Revista Lusitana, XXII 1920 (separata, de 1922) e um prefácio de Ivo Castro, que não só

apresenta a edição portuguesa, como também analisa o trabalho filológico de C. Michaëlis16.

Carolina Michaëlis historiava a sua longa convivência desde 1876 com talvez um dos mais importantes manuscritos medievais, depositado em bibliotecas portuguesas, o Cancioneiro

13 Além do estudo pormenorizado de B (Ferrari 1979), notícias sumárias e respectivas indicações bibliográficas acerca destes cancioneiros são reportadas pela mesma Autora nas sínteses inseridas no

DLM (1993).

14 Convirá lembrar de que esta edição, intitulada Cancioneiro da Ajuda, não reproduz, na realidade, os textos que compõem hoje o manuscrito na sua condição fragmentária, mas sim o primitivo Cancioneiro

da Ajuda com a integração de todos os outros textos que deveriam constituir o original projecto, uma

colecção temática circunscrita às cantigas de amor limitadas ao momento de confecção (Ramos 2004). 15 O Glossário do Cancioneiro da Ajuda é instrumento que ainda hoje é fonte a que muito recorremos sempre que se impõe a abonação de formas do português antigo. De igual modo, as gramáticas históricas, os estudos que caracterizam o português medieval, ou dicionários etimológicos citam-no abundantemente, devido à sua alta cronologia. Chamo, no entanto, a atenção para uma dificuldade bastante importante na consulta deste glossário: como C. Michaëlis integrou na edição do ms. todos os textos que, no seu parecer, figurariam no primitivo cancioneiro, isto é, preencheu as diferentes lacunas de versos inteiros, de estrofes e de textos completos com material proveniente dos cancioneiros Colocci-Brancuti e Vaticana, verifica-se desde logo a inclusão de palavras retiradas destes mss. copiados, como se sabe, em Itália no século XVI. Assim, o designado Glossário do Cancioneiro da Ajuda menciona também formas linguísticas, sem qualquer indicação gráfica, que lhe podem ser estranhas. Todas as entradas com exemplificação posterior ao v. 6865 não se encontram graficamente representadas no pergaminho da Ajuda e, além disso, é sempre necessário verificar se outras localizações não dizem respeito a palavras de versos ou estrofes, introduzidas para completar cantigas que, na cópia da Ajuda, se encontravam incompletas. De idêntico modo deve ser considerado o Rimario do Cancioneiro da Ajuda, útil ferramenta para os recursos técnicos dos trovadores que é efectuado com fundamento no corpus editado por C. Michaëlis. Significa este facto, por exemplo, que uma variante como <trayçion> / <traỹçion> (A 248/A 248bis), em rima com <coraçon>, comparecerá com a grafia traiçon. Além disso, a ocorrência em A 358 não figura no actual estado do Cancioneiro. A forma <ar>, em posição de rima, não comparece igualmente no actual Cancioneiro da Ajuda, mas é proveniente também de um texto integrado por C. Michaëlis, A 386 (Viñez 1989).

16 À edição de 1904 foram feitas algumas recensões por importantes romanistas que proporcionam novas leituras ou interpretações. São de mencionar sobretudo as de Nobiling (1907 e 1908) e as de Lang (1908 e 1928). A filologia portuguesa manifestou-se também através de J. J. Nunes (1905), Azevedo (1912), Campos (1933).

da Ajuda, provido até àquela data de edições deficientes17. Fora nesse ano, e logo após o

casamento com o historiador de arte Joaquim de Vasconcellos em Berlim, há pouco instalada na cidade do Porto, que observara, pela primeira vez, em Lisboa, o códice da Ajuda18. Estava, pois,

a publicar uma obra que tinha sido «planeada e iniciada ha mais de um quarto de século no próprio dia em que, hospeda ainda em tudo quanto se refere á língua, á literatura e á civilização do Portugal antigo, abri[ra] pela primeira vez, na Biblioteca da Ajuda, o códice vetusto e venerando que encerra os monumentos primevos da arte lírica peninsular». Especificava-nos como, logo no ano seguinte, de Maio a Setembro de 1877, «meses felizes e saudosos», o transcrevia, «na empresa de decifrar e copiar, com paixão e paciência essas páginas seis vezes seculares»19. Era Alexandre Herculano quem lhe tinha colocado à disposição a sua residência,

anexa ao Palácio da Ajuda: «Não devo esquecer os manes de Alexandre Herculano, que jentilmente nos cedeu em 1877 durante o verão a sua casa contígua á Biblioteca» (1904, I: VIII; 101) e, anos mais tarde, não deixará de recorrer mesmo a Leite de Vasconcelos, que cooperará na leitura das provas20.

A primeira interpelação que se nos coloca hoje é justamente como explicar este espaço de tempo decorrido entre 1877 e 1904. Não podemos omitir que E. Monaci tinha publicado, havia apenas dois anos, em 1875, a sua edição paleográfica, Il Canzoniere portoghese della

Biblioteca Vaticana. O entusiasmo de C. Michaëlis prosperaria, por certo, com a troca de

correspondência iniciada com Monaci que, por seu lado, no prefácio à edição parcial do

Cancioneiro Colocci-Brancuti de E. Molteni, divulgada em 1880, augurava não só a

importância das variantes que oferecia o Cancioneiro Colocci-Brancuti, como anunciava a promessa de que o Cancioneiro da Ajuda sairia brevemente em edição crítica como Parte

Terceira da sua colecção Communicazione delle Biblioteche di Roma e da altre Biblioteche21.

17 Tinha apenas à sua disposição a «edição» Stuart publicada em 1823, assim como a notícia de Raynouard que a ela se referia no Journal des Savants (1825: 485-495), seguida da «defeituosissima» edição de Lopes de Moura (1847). E mesmo o «ensaio e estudo» de Varnhagen (1849-1850; 1868) pouco mais fazia do que melhorar apenas, em alguns aspectos, a edição Stuart (Innocencio da Silva 1859, II: