• Nenhum resultado encontrado

Um Cancioneiro singular

2. APRESENTAÇÃO DO ESTUDO

2.3. Um Cancioneiro singular

Não é certamente um objecto trivial aquele que foi alvo de várias edições e aquele que, ao inspirar-se da data de publicação de uma monumental edição crítica (1904), promoveu a realização de dois colóquios internacionais no mesmo ano (2004), um em Santiago de Compostela em Maio, mais centrado nos estudos sobre o Cancioneiro, e outro em Lisboa em Novembro, mais dirigido para o próprio manuscrito.

A singularidade do Cancioneiro da Ajuda não se circunstancia tanto pela alta cronologia ou pelas dimensões impressionantes para um livro de poesia medieval. As suas características distintivas advêm mais da sua condição de Cancioneiro inacabado do que da sua condição de

Cancioneiro destroçado, lacunar e incompleto.

A preocupação constante no vaivém permanente entre o que nos transmite o manuscrito, o que nos demonstrou C. Michaëlis e o que nos diz o resto da tradição cancioneiresca românica, esbarrou muitas vezes com a qualidade do que é ímpar no Cancioneiro da Ajuda. Como se no

Cancioneiro da Ajuda o mostrar sem desvendar impedisse actos de decifração que traduzissem

um pensamento cultural próprio à configuração de um objecto enigmático.

Um objecto particularmente exigente, pode dizer-se! Parecia não haver solução para o

Cancioneiro, sendo o que sou e sendo o Cancioneiro o que é. À força do exercício comparativo

e às experiências, acumuladas pelo que revelavam outros cancioneiros foi possível, creio, prosseguir na caracterização da beleza imperfeita do mais belo dos nossos cancioneiros.

Diagnosticar parecia cristalino no procurar a natureza e as causas da afecção, mas a interpretação exigia sempre um submergir franco e, de certo modo, instintivo na obra, quase até pela pura sensualidade de a tocar na demanda do entendimento. O trabalho meticuloso que pretendia esgotar os infinitos níveis de análise de um livro inorgânico, o desejo impossível de nada deixar por saber mostrava como o tratamento não dava mostras de ser sempre o mais infalível. Saber não quereria dizer sempre compreender. E várias questões ficaram por solucionar. Onde foi efectivamente copiado? Por quem foi efectivamente encomendado? Por que é que foi efectivamente interrompido? Que modelo estético esteve por detrás deste plano?

A concepção imperfectível serviu curiosamente como guião para a reconstrução das diversas fases na composição do Cancioneiro da Ajuda. Foram as circunstâncias de estado perene de um livro de música, mais do que um livro de poesia, que exigiram uma convergência pluridisciplinar (história literária, história medieval e renascentista, história da música, história de arte, codicologia, paleografia, etc.). Foi através do recurso a estas matérias que foi exequível

auferir de uma concentração informativa sobre a estrutura do códice e sobre o modo de transcrição textual. Foram, por exemplo, os estudos sobre a notação musical em diferentes cancioneiros nos casos de envoi ou de tornada, que propiciaram a valorização melódica nas

fiindas no Cancioneiro da Ajuda. Foram também os estudos de sistemas decorativos em outros

cancioneiros que de algum modo possibilitam a compreensão do processo subjacente à planificação do Cancioneiro da Ajuda com miniaturas inaugurativas e com tipologia decorativa hierarquizada na construção de cada ciclo poético. Os momentos distintos para as encadernações só adquiriram maior autoridade, após o confronto com modelos estilísticos que não são exclusivos nem de Portugal, nem da Península Ibérica.

Da confluência destes conhecimentos trouxe o Cancioneiro da Ajuda uma valia ainda mais eloquente quando damos conta de que a mise en page, a mise en texte, e mesmo a mise en

graphie, não chegaram a consentir uma qualquer mise en livre final. Nestas circunstâncias, não

só os espaços separadores entre poemas, que lhes fornecem individualidade, como a totalidade do conteúdo e a organização interna, interligada à materialidade codicológica, contribuem para a significação de um fragmento musical, que subsistiu apesar das contingências de um projecto inacabado e inicialmente não protegido por pastas de encadernação. Não estamos, estou convencida, perante actos de destruição intencional que, transcorrido o interesse poético, tenham desmantelado o Cancioneiro para qualquer aproveitamento material de fólios. Não estamos diante de um fragmento, que tenha subsistido ao estrago, estamos na presença de um objecto que é resultante de um programa que não foi levado a seu termo. O projecto textual não se concluiu nem na melhoria de textos insuficientes, nem sequer na integralidade do que estava previsto. Mas, mesmo assim, os elementos pressentidos para a construção do suporte não foram igualmente ultimados em nenhum sector. É um dado insubstituível para a compreensão da tradição textual, porque o Cancioneiro da Ajuda mostra ainda momentos de recolha e de selecção de materiais.

Remanesceu assim, face ao tempo, um conjunto de cadernos, talvez mesmo desunidos uns dos outros, entre os finais do século XIII e o século XV. Não deve tão-pouco admirar que o corpo inicial, referente aos primeiros cadernos, se tenha extraviado, mais do que algumas secções que indiciam interpolações e concretas paragens de cópia. Nessa altura, talvez nos séculos XIV ou XV, grandes tábuas vão proteger uma pluralidade textual coerente, um Livro

Miscelâneo, bem próprio da época. Ao conjunto de poemas sem nome de autor é associado

outro fragmento linhagístico com implicação autoral mais renomada. Assim, a encadernação abrigará duas obras fraccionárias de livros unitários, uma ligada ao Conde D. Pedro, outra, pensava-se, atribuível a D. Denis.

Cortes régias e senhoriais, pré e renascentistas no sul de Portugal, favoreceram a continuidade de um projecto grandioso que, talvez pela sua magnificência, não usufruíra de todas as condições para ser concluído. É por isso que a utilização do códice, comprovada durante o século XV, a atestação de posse e os comentários sugeridos pela leitura vão conformar a sobrevivência de um resto de Cancioneiro em um período que nos facultará a sua conservação até hoje. Foi, de facto, o uso quatrocentista e quinhentista que construirá a memória trovadoresca através da conservação do que será conhecido como Cancioneiro da Ajuda.

O trabalho sobre este Cancioneiro singular propõe, em resumo, dados objectivos de natureza mecânico-experimental, mas também sugere opiniões, quer dizer maneiras de pensar, de ver, de julgar e de afirmar que procuram, no entanto, reduzir o mais possível a margem da subjectividade. São sempre apreciações resultantes de um sentido que procurou ser dado aos sintomas observados. Em uma crítica como esta, a intervenção conjectural é inevitável. Mesmo que ela se apoie na confluência de sinais consentâneos, a pressuposição contribuirá para um apuramento progressivo entre o que realmente é intrínseco ao texto e o que é próprio à transmissão.

Mas as convicções não são necessariamente certezas. E tantas vezes me pareceu que era ainda importante aceitar banalidades para poder talvez entrever certezas. E abranger a perpetuidade de todas as dúvidas, acabou por me resguardar sob a efemeridade de todas as certezas. E, na verdade, le temps n'épargne pas ce que l'on fait sans lui…

***

É natural manifestar gratidão a quem me acompanhou e auxiliou na elaboração deste trabalho. O reconhecimento é, em primeiro lugar, de carácter institucional. À Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa que, desde as aulas de Introdução aos Estudos Linguísticos, me

concedeu meios metodológicos para examinar a Língua e como interpelar a Língua passada. É esta Faculdade, já com o seu Departamento de Linguística, que ainda me consentiu a faculdade de fruir de uma formação magnificente em um período de experiências, que abriam acessos no quadro académico português, a novas matérias com direito às primeiras programações independentes. História da Língua Portuguesa, Gramática Histórica do Português, Filologia ou Crítica textual no sentido da procura de um olhar rigoroso para um texto que, antes de ser lido e interpretado, deverá estar sempre tão próximo quanto possível daquilo que o seu Autor escreveu. A anuência na circulação interdepartamental e interdisciplinar consentia também neste período a participação em disciplinas como a Paleografia, a Diplomática e a Codicologia, o

Latim vulgar, ou mesmo a aproximação à Língua e à Cultura de Itália.

Em segundo lugar, a contingência que, auspiciosamente, me favoreceu o contacto com o

Istituto de Filologia Romanza da Università 'La Sapienza' em Roma. Novas maneiras de estudar

e, sobretudo, novos modos de aprender e entender facilitaram sentidos da compreensão da Língua passada, através de objectos escritos e, em particular, de produtos escritos literários. A Idade Média não possuía os mesmos confins, que hoje compartilhamos, e a circulação textual era, afinal, um indício de que a boa percepção de um texto medieval específico teria de percorrer e exceder quase sempre as linhas de demarcação da sua proveniência com instrumentos técnicos muito desenvolvidos (ciências da escrita, do códice, da história, da linguística). A Idade Média literária não poderia ser concebida sem os ambientes circundantes galo-românicos, provençal e francês, italiano, mas também catalão, castelhano, galego. Experiências que puderam em parte ser concretizadas com o auxílio de instituições governamentais como o Istituto Italiano de Cultura em Portugal, o Instituto Nacional de

Investigação Científica ou o Consiglio Nazionale delle Ricerche.

Só cronologicamente posiciono em terceiro lugar o Romanisches Seminar da Universität Zürich, que me acolheu no centro da România em um quadro de trabalho muito estimulante. Aí me tem sido dada a possibilidade de prosseguir sob a mesma orientação metodológica uma

Filologia, rigorosa e exigente, e, mesmo à distância, me tem sido sempre permissível perseverar

na interrogação de produtos escritos em língua literária galego-portuguesa, ou em língua portuguesa. Regalias reconhecidas em geral, mas ainda mais estimadas quando delas podemos beneficiar.

Mas as instituições são pessoas. E são elas que as edificam realmente. Penso que nem sempre soube demonstrar-lhes quanto as apreciava, por acanhamento ou por pudor, e a dedicação, tantos anos reprimida, faz-me pensar no remorso ou na pena de ter frustrado expectativas, tendo convertido a minha vida em uma sucessão de demandas sem fim.

Da Faculdade de Letras de Lisboa, as aulas práticas de Introdução aos Estudos Linguísticos com Ivo Castro revelam-se antes das aulas teóricas de Lindley Cintra. Os textos

antigos divulgavam-se, depois, sob a perspicácia de J. M. Piel e, aquando da reestruturação global da Faculdade de Letras, com o novo Departamento de Linguística, sobrevieram aspectos fundamentais da investigação e ensino em disciplinas, que se assumiam não só como herdeiras directas da antiga licenciatura em Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa, mas como recursos a novas áreas do conhecimento filológico, material e textual, impulsionados por Ivo Castro. De Lindley Cintra permanece o papel fundamental em uma destreza, que não dava particular importância ao auxílio teórico, acentuando mais o exame dos elementos observados, e resta-me a inquietação de um saber que, perante um domínio amplo de escolas – em Linguística –, não deixou nunca de incutir a solidez e a continuidade da sua experiência.

Ao Ivo devo esta determinante forma de estudar e de aprender a amar a palavra, bem própria do filólogo, e ao Ivo, que me arredou de um divertido e estival soggiorno linguistico, devo a convivência, não menos divertente, com a Filologia Românica romana. O reconhecimento pelo benefício prestado não é passível de ser pronunciado, nem desprovido do afecto, que me permite continuar a manter aceso o entusiasmo por estas matérias.

E, aqui, talvez deva amparar-me em Alberto Caeiro: «Nem sempre sou igual no que digo e escrevo. / Mudo, mas não mudo muito. / A cor das flores não é a mesma ao sol / De que quando uma nuvem dura / Ou quando fica a noite / E as flores são cor da lembrança. / Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores. / Por isso quando pareço não concordar comigo, / Reparem bem para mim: / Se estava virado para a direita, / voltei-me agora para a esquerda, / Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés – / O mesmo sempre, graças a mim e à terra / E aos meus olhos e ouvidos convictos / E à minha clara contiguidade de alma....» (Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos, XXIX, Ed. Castro 1986: 79; 145).

Não me sinto muito à vontade para falar do tempo romano. Sei que não há palavras, que não haverá mesmo palavras suficientes para dizer o que eu aspiraria dizer! Das pessoas, dos livros, e do que se estudava e do que se aprendia. Tantos são os actos e os nomes, ligados aos estudos em Filologia, mas deles devo isolar, por me ter marcado definitivamente, o de Aurelio Roncaglia. Da sua escola permaneceu o privilégio de aceder a colocutores e amigas como Elsa

Gonçalves e como Anna Ferrari que, em procedimentos de dúvida permanente, põem sempre em questão todas as crenças com o objectivo de buscar o fundamento mais sólido e irrefutável para a investigação da verdade.

A alegria de ser aluna, já sem o ser. A voz, a maneira de olhar, o modo de se implicar em cada palavra, a maneira de estar, talvez mesmo a idade... Quase como reflexo condicionado, pegava em canetas e lápis afiados para tomar notas, para eternizar porções de palavras, impressões de rejuvenescer, a cabeça cheia de recordações de aprendizagem, reminiscências em que, aluna, me sentia implicada e seduzida por estes meios de aprender.

Não é também sem algum embaraço emotivo que mencionarei aqui o reencontro com o fino perfil filológico de Luciano Rossi na Universidade de Zurique na mais emblemática hereditariedade de G. Tavani. Não só o diálogo, mas o incitamento, discreto e vigilante, à reactivação do meu trabalho, à persecução de uma ideia, ou à materialização de um empreendimento.

E nesta doce beatitude, que é o sentimento de aprender, o que é o conhecimento? Aprender para ensinar? Um exame de passagem? Talvez o ser culto, ou o cultivar-se, não seja, afinal, mais do que o desejo de aprender na felicidade de continuar a ser discípulo! Não tendo ídolos, continuo a ter admirações sem limites.

Como falar de todos? Como professores? Como colegas? Como amigos? Há heranças tão pesadas, que nos colocam em uma tal situação de devedores, um pouco como sujeitos, receosos e amedrontados, escravos da memória. E depois há outras heranças, das quais não se sabe logo que são heranças, tanto nutrem as nossas vidas diárias. Aos primeiros, em geral, figuras de pais ou de mestres, edificam-se monumentos, que nos esmagam, e aos segundos, companheiros, colegas, amigos sobretudo, nada se constrói, nada se prepara, se não mesas de banquete, onde cada um vem sentar-se, conversar, discutir e servir-se.

Um verdadeiro filólogo deve pensar só em Filologia. Eu fui precisando de todo o resto, de música, de ópera, de palcos de poesia, de pintura, de delícias, de petites madeleines… A Vivaldi e a Händel, que nunca me deixaram desprotegida, e a todos os que me têm suportado, estou grata pelo tempo que me ia sendo dado, consciente de que era um tempo que, sem escrúpulo, lhes ia sendo retirado.

Alguns apoios e presenças constantes deveriam aqui ser nomeados ou renomeados. Todos sabem quem são, tenho a certeza. E sabem como a inconfidência não nos é prezada. E

sabem como as emoções são impúdicas, íntimas e pessoais. Reservo-me para o momento de uma palavra escrita à mão, lembrando-lhes que, de alguma maneira, foram eles que me levaram sempre a Lascia la spina, / Cogli la rosa; / Tu vai cercando / Il tuo dolor. / Canuta brina, / Per

mano ascosa / Giungerà quando / Nol crede il cor [G. F. Händel, Il trionfo del tempo e del Disinganno, Oratório, 1707], prefiguração musical do Lascia ch'io pianga… de Almirena [G. F.

Händel, Rinaldo, Ópera, 1711]. São eles que também, ao contrário de Verlaine, e dos seus

Romances sans paroles, me dizem que há paroles sans chansons…

1. História do manuscrito