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Conhecimento metafonológico e consciência fonológica

CAPÍTULO 2 – Conhecimento (meta)linguístico, consciência linguística e consciência segmental

2.2. Conhecimento metafonológico e consciência fonológica

Na sua revisão bibliográfica, Castelo (2012) identifica três tradições de investigação dedicadas ao estudo do conhecimento metafonológico, nomeadamente as desenvolvidas na área da Linguística aplicada à Educação, na área da Psicologia e da Psicolinguística e na área da aprendizagem e do domínio da leitura e da escrita. Ao observar a capacidade de os sujeitos identificarem sons da fala, Bruce (1964:158) introduz a expressão analysis of word sounds e, 10 anos mais tarde, Liberman et al. (1974) estabelecem a relação entre consciência fonológica e alfabetização. Assim, a partir das décadas de 60/70, no âmbito da Linguística aplicada à Educação, assiste-se à integração de actividades multidimensionais de consciência linguística (fonológicas, morfológicas, etc.) nos planos curriculares, tanto no EUA (Honda, 1994; Denham, 2007; Honda, O’Neil & Pippin, 2010; Ginsberg, Honda & O’Neil, 2011) como no Reino Unido (Halliday, 1971; Hudson e Walmsley, 2005; Hudson, 1992; Hudson,

2008), levando progressivamente à consolidação e à difusão de expressões como phonological awareness. Na área da aprendizagem e do domínio da leitura e da

escrita, as investigações desenvolvidas no âmbito da Linguística Educacional, da Psicolinguística e da (Neuro)Psicologia debruçam-se maioritariamente sobre a consciência fonológica, assumindo-a como o instrumento subjacente ao entendimento dos processos associados à alfabetização e à construção de medidas de intervenção a adoptar, tanto no contexto clínico (Praat & Grieve, 1984a; Alves, Castro & Correia, 2010; Castro, Alves & Correia, em prep.) como educacional (Titone, 1988; Gombert, 1990; Freitas, Alves & Costa, 2007; Freitas, Gonçalves & Duarte, 2010).

Quando o indivíduo apresenta habilidades reflexivas e manipulativas do código em seus diferentes aspectos, significa que tem consciência linguística, podendo fazer uso dessas habilidades nos diferentes domínios da linguagem. A componente sonora da língua constitui um objecto de reflexão do ser humano, que pode ser executada no donínio da consciência fonológica (Morais, Castro & Kolinsky, 1991; Castelo, 2012). A consciência fonológica consiste numa manifestação do conhecimento metalinguístico, o qual pertence ao domínio da metacognição, tratando-se, portanto, de um conhecimento que o sujeito detém acerca dos seus próprios processos e produtos cognitivos (Gombert, 1990). Em contraste com as actividades de falar e de ouvir falar, a consciência fonológica implica a capacidade de voluntariamente prestar atenção aos sons da fala e não ao significado do enunciado.

Numa concepção ampla, a consciência fonológica pode ser definida do seguinte modo: “En tant que capacité metalinguistique particulière, la capacité metaphonologique correspond à la capacité d’identifier les composants phonologiques des unités linguistiques et de les manipuler de façon délibérée (…).” (Gombert, 1990: 29).

Para Veloso (2003:150), a consciência fonológica remete para “a consciência de que a fala se estrutura em unidades fonológicas de diferentes tipo e extensão que permitem, nomeadamente, manipulações diversas e o estabelecimento de relações de semelhança ou dissemelhança sonora entre os diversos itens lexicais da língua”. Castles e Coltheart (2004: 78) lembram ainda que a consciência fonológica“(is proposed to involve, not simply unconsciously discriminating speech sounds (such as in speech perception), but explicitly and deliberately processing and acting upon them” e, segundo Scarborough e Brady (2002: 312) “especially the internal phonological structure of words.”. Castelo (2012:11) refere que a consciência fonológica supõe “(i) mobilização da atenção do sujeito, que lhe permite reflectir sobre e/ou manipular deliberadamente o objecto; (ii) unidades linguísticas (neste caso, fonológicas) como objecto dessa atenção reflexiva e/ou manipulativa.” Em suma, a consciência fonológica remete para uma reflexão deliberada e, portanto, consciente acerca do sistema de sons da língua, ou seja, acerca das unidades que compõem a oralidade, permitindo, a partir daí, a exploração, a análise, o julgamento, a comparação e a manipulação dessas unidades, subentendendo que, para tal, o sujeito disponha de determinadas capacidades atencionais e mnésicas (Nesdale, Herriman & Tunmer, 1984; Bertelson & de Gelder, 1991; Morais & Kolinsky, 1995; Coimbra, 1997; Chard & Dikson, 1999; Moojen & al., 2003; Morais, 2003; Freitas, 2004a, 2004c; Gillon, 2004; Lamprecht & al., 2009).

Sabendo que a consciência fonológica integra parte da consciência linguística e que, tal como referido na secção 2.1, alguns aspectos interferem no desempenho desta capacidade, assume-se que os mesmos devem ser considerados no estudo da consciência fonológica, nomeadamente (i) os níveis de consciência fonológica em

causa (ii) a tipologia de tarefas usadas e as propriedades fonológicas envolvidas, e (iii) os mecanismos cognitivos recrutados (memória e atenção).

A consciência fonológica obedece uma estrutura estratificada composta por diferentes níveis, remetendo para a consciência de unidades como a palavra, a sílaba e os seus constituintes, o acento e os segmentos (Nesdale, Herriman & Tunmer, 1984; Bertelson & de Gelder, 1991; Jekins & Bowen, 1994; Gillon, 2004; Freitas, Alves & Costa, 2007). O conhecimento formal e a manipulação de tais unidades implicam diferentes níveis de consciência fonológica, que emergem em fases distintas do desenvolvimento cognitivo infantil (Seymour & Evans, 1994; Gillon, 2004; Lamprecht, et al, 2009). Diversos autores são unânimes quanto à seguinte proposta de subdivisão: (i) consciência silábica, (ii) consciência intrassilábica e (iii) consciência segmental (Nesdale, Herriman & Tunmer, 1984; Treiman & Zuwoski, 1991; Seymour & Evans, 1994; Reynolds, 1998; Veloso, 2003; Gillon, 2004; Lamprecht & al. 2004, 2009; Valente & Alves Martins, 2004; Freitas, Alves & Costa, 2007).

Yopp (1988), Morais (2003), Freitas (2004a, 2004c) e Morais e Kolinsky (2005) enfatizam que não somente diferentes unidades fonológicas (sílabas, constituintes silábicos e segmentos), mas também diferentes habilidades interferem no desempenho da consciência fonológica. Segundo Morais (2003) e Morais e Kolinsky (2005), as tarefas que avaliam o desempenho da consciência fonológica holística43 apenas recrutam estratégias globais e pouco controladas (daí alguns iletrados ou pré- alfabetizados conseguirem superá-las), enquanto as tarefas que avaliam a consciência fonológica analítica43 supõem a capacidade atencional e controlada de o sujeito

43 A distinção entre consciência fonológica holística e consciência fonológica analítica

(expressões apresentadas em Morais & Kolinsky, 1995, e em Morais & al., 1998) é a mesma que a exposta na secção 2.1 relativamente à consciência linguística holística e à consciência linguística analítica, relativamente às unidades em foco, as fonológicas.

analisar sons da fala (habitualmente motivada pelo processo de alfabetização) (Morais & al., 1979; Read & al., 1986; Castro, 1992; Morais & Kolinsky, 2005).

Com base na revisão de alguns estudos sobre o efeito inerente aos procedimentos e/ou à estrutura interna das tarefas utilizadas para observação da consciência fonológica, Yopp (1988), Chard e Dickson, (1999), Alves, Castro e Correia (2010), Alves e Lacão (2010) e De Graaff et al. (2011) referem que o desempenho dos sujeitos está fortemente dependente do esforço cognitivo associado às tarefas seleccionadas e que o desenvolvimento desta capacidade é complexo e progressivo, começando por apresentar melhores resultados em tarefas de síntese e culminando nas tarefas de inversão. De acordo com Coimbra (1997), Chard e Dickson, (1999), Sim-Sim (2001), Alves, Castro e Correia (2010), Nazari (2010); Rios (2010), De Graaff et al. (2011) e Castro, Alves e Correia (em prep.), e ainda que podendo sofrer algumas variações decorrentes das propriedades dos estímulos e/ou dos procedimentos utilizados (De Graaff & al., 2011; Castro, Alves & Correia, em prep.), verifica-se que as tarefas de consciência segmental obedecem à mesma tendência geral que a descrita para a consciência fonológica: observam-se melhores desempenhos em tarefas de síntese/reconstrução, de identificação, de detecção, de exclusão e de supressão (para a ordem síntese>identificação, cf. Yopp, 1988; Vloedgraven & Verhoeven, 2007; Castro, Alves & Correia, em prep.; para a ordem identificação>síntese, cf. Moojen & al., 2003; Moura, Cielo & Mezzomo, 2009; Silva & al., 2010; Castles, Wilson & Coltheart, 2011), seguindo-se as tarefas de segmentação (cf. Yopp, 1988; Stanovich, Cunningham & Cramer, 2000; Vloedgraven & Verhoeven, 2007; Castro, Alves & Correia, em prep.), até chegar a tarefas mais complexas de manipulação como a inversão, por exemplo (cf. Yopp, 1988; Stanovich, Cunningham e Cramer, 2000; Anthony & Francis, 2005; Castro, Alves & Correia, em

prep.). A figura 9 apresenta uma escala de complexidade associada às tarefas de

consciência segmental observadas nos estudos acima referidos.

Figura 9 – Escala de complexidade associada a tarefas de consciência segmental

De acordo com a figura 9, verifica-se que a tarefa de exclusão44, por exemplo, ocupa o segundo lugar da escala apresentada, constituindo-se, portanto, uma tarefa pouco complexa do ponto de vista metassegmental.

A estes efeitos também se associa a influência das propriedades linguísticas dos estímulos (Schreuder & Bon, 1989; Treiman & al., 1998; Alves, Castro & Correia, 2010; Rios, 2010; Castro, Alves & Correia, em prep.), tanto ao nível da sílaba (Treiman, 1985; Schreuder & Bon, 1989; Bruck & Treiman, 1990; Treiman & Weatherston, 1992; Stahl & Murray, 1994; McBride-Chang, 1995; Veloso, 2003; Afonso, 2008; Vicente, 2009; Afonso & Freitas, 2010; Alves, Castro & Correia, 2010; Alves & Lacão, 2010; Rios, 2010; Castro, Alves & Correia, em prep.) como ao nível do segmento (Zhurova, 1963/1964; Garnica, 1973; Eimas, 1975; Skjelfjord, 1976; Marsh & Mineo, 1977; Treiman & Baron, 1981; Content, 1985; Content & al., 1986; Lundberg, Frost & Peterson, 1988; Byrne & Fielding-Barnsley, 1990; McBride- Chang, 1995; Treiman & al., 1998; Veloso, 2003; Vidor-Souza, 2009; Alves, Castro & Correia, 2010; Alves, Faria & Freitas, 2010; Castro, Alves & Correia, em prep.).

44 A tarefa de exclusão constitui a tarefa de consciência segmental utilizada no presente

estudo, a qual supõe a detecção de um segmento intruso (tarefa à qual é inerente a capacidade de identificação segmental), apresentado numa série de três palavras representadas pictograficamente, e a subsequente exclusão da palavra que o contém (Prova do Intruso, descrita na secção 4.3.5).

Síntese/

Segundo Liberman e Liberman (1990), a sílaba constitui a unidade fonológica mais fácil de isolar, tratando-se, por isso, de uma unidade natural de segmentação da fala (Lamprecht & al., 2009). Gombert (1990) refere que algumas tarefas de consciência silábica podem ser realizadas sem controlo consciente (como, por exemplo, segmentar um palavra pronunciada lentamente, com pausas entre as sílabas) e outras não (como por exemplo, trocar a primeira sílaba de uma palavra com a primeira de outra). A consciência silábica desenvolve-se precocemente e é anterior à alfabetização (Gillon, 2004; Adams & al., 1998/2006; Lamprecht & al., 2009). A análise da unidade sílaba exige menos esforço por parte do falante do que a de unidade segmento (Freitas, Alves & Costa, 2007; Lamprecht & al., 2009; Vicente, 2009; Alves, Castro & Correia, 2010; Castro, Alves & Correia, em prep.). Ao produzir a palavra *regaçare (em vez de arregaçar), com pausas nas frontreiras silábicas (*re//ga//ça//re), uma criança de dois anos e meio demonstra a precocidade da sua sensibilidade à sílaba (exemplo apresentado por Freitas, Alves & Costa, 2007:11), contrariamente à segmental, a qual emerge por volta da idade escolar (Adams & al., 1998/2006; Veloso, 2003; Morais 2004, entre outros).

Observam-se evidências da consciência fonológica no nível da sílaba quando a criança é capaz de bater palmas de modo a contar o número de sílabas da palavra, inverter a ordem das sílabas na palavra em questão, adicionar ou excluir sílabas, além de produzir palavras que iniciem ou terminem com a sílaba inicial ou final de outra palavra (Lamprecht & al., 2009). Liberman et al. (1974), Fox e Routh (1975) e Treiman e Baron (1981) mostram que as crianças apresentam bons resultados em tarefas de segmentação silábica desde os 3 anos de idade. Quando se observam dificuldades, verifica-se que estas se prendem predominantemente com o formato da sílaba testada, com a localização da sílaba na palavra, com a extensão da palavra que

integra a sílaba alvo ou com a complexidade da tarefa usada (Schreuder & Bon, 1989; Afonso, 2008; Vicente, 2009; Afonso & Freitas, 2010; Alves, Castro & Correia, 2010; Castelo, Freitas & Miguens, 2010; Rios, 2010; Castro, Alves & Correia, em prep.).

A consciência dos constituintes silábicos (Ataque, Rima, Núcleo e Coda) remete para o conhecimento que a criança adquire acerca das unidades que compõem a estrutura interna das sílabas (Treinam & Zukowski, 1991; Sanchez & Gordillo, 2006). Assim, esta capacidade permite identificar e manipular, de uma forma consciente, divisões no interior das sílabas, maiores do que os fonemas (ibidem). No que respeita as idades de aquisição desta competência, Treiman e Zukowski (1996) referem que as crianças entre os 5 e os 6 anos são capazes de realizar operações com constituintes intrassilábicos. Segundo Treiman e Zukowski (1991), as tarefas de identificação de Ataque e de Rima são mais simples do que as tarefas de identificação de Coda. Complementarmente, segundo Afonso (2008), as tarefas de identificação de Ataque simples são mais fáceis do que as tarefas de identificação de Ataque ramificado.

Por se tratar do alvo do presente estudo, prossegue-se, na secção 2.3. com uma descrição mais detalhada deste sub-nível de consciência segmental.