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1. CONSTRUÇÃO DA CULTURA MONOJURÍDICA LATINO-

1.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS: A CONSTITUIÇÃO DA

1.1.1. Conquista: dominação e domesticação

No prosseguimento do processo de expansão espanhola pelo Oceano Atlântico, após o encontro com o Outro, dá-se o momento da conquista e da posterior ocupação do território, atos que se podem resumir em dois momentos: a dominação, pela pacificação ou aplicação das “guerras justas”, e a domesticação dos indígenas, segundo o modo de vida europeu, que envolverá subsumir aos nativos em um âmbito totalizador nos quesitos política, religião, economia, sociedade e cultura. Para dominar os territórios recém descobertos, um instrumento de natureza jurídica se fazia necessário: o chamado Requerimento, o qual cumpria afirmar aos nativos, que advindos de outro espaço geográfico e munidos de uma suposta superioridade civilizatória, imbuídos de uma força divina e de uma autorização soberana, tomavam para si os territórios então destes, bem como se depunham seus governos e as organizações públicas conhecidas. Sendo assim, de acordo com Silvio Zavala49, após o desfecho fatídico do Requerimento, em que a lógica do discurso jurídico da dominação causava mais desconfortos que propriamente eficácia na conquista dos povos originários, veio a promulgação das ordens do Rei Fernando II, em que se troca o termo “conquista” por “pacificação” 50

. Essa mudança retórica intentou

49

ZAVALA, Silvio. La Filosofía política en la Conquista de América. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 37.

50

Pacificação segundo as Ordenanças de Fernando II, 1573, se traduzia em: “[...] traer de paz al gremio de la Santa Iglesia y a nuestra obediencia a todos

reafirmar os ímpetos católicos da empreitada evangelizadora, em que se traduzia na harmonização serena do apostolado indiano com os índios, contudo totalmente na contramão dos objetivos em que investiam os setores privados, aos quais tampouco lhes interessava outra coisa a não ser explorar essas gentes e suas riquezas.

No entanto, juntamente com essa substituição no modo de anunciar a conquista, se seguiu-se certa institucionalização das liberdades indígenas, prosseguida pela firme vigilância eclesiástica e pela política dos costumes europeus, ou seja, era ordenado que os usos e costumes indígenas, inclusive a própria liberdade e propriedade destes, fossem respeitados, com propósito de assim manter uma relação mais amistosa com essas comunidades. Contudo esses propósitos institucionais de pacificação emitiam nota fictícia aos reais fatores que imperavam nas relações entre conquistadores e conquistados, dando-se preferência a uma legislação incrustada por uma filosofia política com intentos evangelizadores, mas com uma prática exploradora desenfreada pela ganância. Recorda Silvio Zavala, da seguinte maneira:

Estos propósitos se enfrentaron a las necesidades y a los apetitos del grupo encargado de la actividad colonizadora. Surgió la lucha entre el derecho y la realidad, entre la ley escrita y la práctica de las provincias. El indio podía ser libre dentro del marco del pensamiento y de la ley de España, pero el goce de esa franquicia se vería contrariado por obstáculos poderosos de orden social. Sin embargo, las ideas de libertad y protección de los nativos formaron parte inseparable de ese complejo cuadro histórico, como atributos de la conciencia española en América51.

Essa orientação institucional52, que é fruto das lutas dos evangelizadores – com destaque para Antonio de Montesino, Bartolomé de Las Casas, Vasco de Quiroga, Alonso de Veracruz entre outros –, los naturales de la provincia y sus comarcas, por los mejores médios que [los expedicionários] supieren y entendieren”. ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquista de América. México: Porrúa, 1988, p. 132.

51

ZAVALA, Silvio. La filosofía política en la conquista de América. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 38.

52

representou a disjunção no acordo político citado acima entre os difusos interesses dos sujeitos envolvidos na empresa expedicionária. Propriamente, Silvio Zavala reconhece esse desencontro quando afirma duas categorias de sujeito no processo de ocupação a quem se dirigiam as disposições jurídicas contraditórias com a realidade: “[...] la legislación se traducían en preceptos especiales en las instrucciones de los conquistadores y pacificadores; por este conducto las decisiones teóricas y las normas legales influían en el modo de efectuar la ocupación”.53

Dessa maneira, seguindo a organização que realiza o pesquisador mexicano no tocante à pacificação, estabeleceu-se uma análise sob três perspectivas: a finalidade religiosa, a anexação política e seus desdobramentos jurídicos e, por fim, a guerra justa54. Revisando rapidamente a organização da ocupação, é perceptível que ela se desdobrava na lógica citada com fins a dar conhecimento aos índios do justo título que possuíam em mãos os representantes da Coroa espanhola liam o Requerimento, documento de cunho jurídico que informava em idioma castelhano do que se tratava aquela invasão. Ora, em resumo o texto informava dos poderes que haviam investido ao Papa e aos Reis Católicos um tal Jesus Cristo - o qual não havia deixado procuração para tais fins, mas que seus representantes trataram de verificá-la como vontade tácita do filho de Deus – que lhe requeria seus bens materiais e imateriais, seus corpos e de familiares, e determinava que deveriam render-se ao poder político da Coroa e ao religioso da Igreja Católica.

Como este documento não causava os efeitos que se esperava, partiu-se para outras legislações que poderiam dar contornos jurídicos aos seus atos, nesse contexto foi que surgiram as referidas “ordenanças” e outras legislações - Leis Novas, Recopilação de Leis de Índias etc. Entretanto, como não faz parte dessa etapa a análise puramente jurídica da questão da conquista, apenas fazem-se referências que em cumprimento aos princípios ou finalidades da expedição, em conformidade com a Bula Papal que dava guarida como justo título aquele empreendimento, interessam apenas aclarar melhor essa relação que conforma o domínio e a domesticação dos indígenas – conquista e pacificação –, para que se possa avançar no estudo com segurança e compreensão das relações que se desenvolveram nesse período.

53

ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquista de América. México: Porrúa, 1988, p. 133.

54

ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquista de América. México: Porrúa, 1988, pp.132-148.

Em torno da finalidade religiosa, a dimensão era converter os indígenas ao reduto da fé em Cristo, promovendo progressivo abandono das suas culturas religiosas, classificadas como idolatrias55 e perseguidas de forma violenta - simbólica ou física -. Então, tratava-se de afastá-los das crenças “pagãs” e de aproximá-los da revelação da “verdade”, Zavala recorda parte do texto da Recopilação da Lei de Índias sobre esse intento:

El espirito católico del Estado español al confluir sobre el tema de la pacificación, había ordenado: “los señores reyes nuestros progenitores, desde el descubrimiento de nuestras indias Occidentales, Islas y Tierra Firme del mar Océano, ordenaron y mandaron a nuestros capitanes y oficiales, descubridores, pobladores y otras cualesquier personas, que en llegando a aquellas provincias procurasen luego dar a entender, por medio de los intérpretes, a los indios y moradores, cómo los enviaron a enseñarles buenas costumbres, apartados de vicios y comer carne humana, instruirlos en nuestra santa fe católica y predicársela para su salvación y atraerlos a nuestro señorío, porque fuesen tratados, favorecidos y defendidos como los otros nuestros súbditos y vasallos, y que los clérigos y religiosos les declarasen los misterios de nuestra santa fe católica, lo cual se ha ejecutado con grande fruto y aprovechamiento espiritual de los naturales. Es nuestra voluntad que lo susodicho se guarde, cumpla y ejecute en todas las reducciones que de aquí adelante se hicieren56.

Esse ato de impor a religiosidade europeia aos indígenas coaduna com o mencionado expansionismo católico fora do contexto de disputa com o protestantismo da Reforma religiosa, pois se via a possibilidade

55

Aquilo que os espanhóis chamavam de idolatria não se limitava apenas às práticas e crenças religiosas vigentes nas regiões conquistadas, mas ao conjunto da cultura autóctone que não se coadunava com a doutrina cristã. Para os religiosos europeus, os cultos nativos eram obra e manifestação do diabo que era necessário destruir sem contemporização. FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 76.

56

de aumentar o número de devotos da Igreja Católica, a parte de cumprir a missão de fé que havia encarregado o Papa ao Reis Católicos. Contudo, do ponto de vista da conquista, essa foi uma “arma” importantíssima, pois a perseguição das chamadas idolatrias corresponde muito mais ao ato de pacificação e de serenidade que se pautava acima; “[...] A imposição do catolicismo no mundo conquistado pelos espanhóis não representou apenas um entre outros aspectos da dominação colonial, mas foi poderoso instrumento para sua viabilização”57

.

Jorge Luiz Ferreira reafirma essa conduta como instrumento eficaz no processo da conquista, justamente por essa postura da Igreja Católica que visava eliminar uma das bases de sustentação dos impérios que foram dominados: as ditas campanhas de extirpar idolatrias, que se traduziam assim:

A repressão e a proibição de seus cultos, chamadas de “campanhas de extirpação da idolatria”, e a evangelização forçada produziram efeitos danosos na mentalidade aldeã. A imposição do cristianismo desencadeou um processo de desagregação cultural, retirando deles o instrumental cultural de leitura de sua realidade social, sem oferecer, contudo, um outro que efetivasse uma possível substituição58

Logo, o que se está destacando é a postura tomada como processo de evangelização que cumpriu essa função dominadora eficaz para atríade antes mencionada. Porém, não se pode olvidar a função protetora dos indígenas que exerceram alguns setores da igreja na América, frente ao flanco da dominação – exploração escravagista e o ímpeto desenfreado dos conquistadores –. Vale advertir que, recordando as obras de Jesús A. de la Torre Rangel59 as quias tratam a respeito do assunto, no sentido de legar proteção, muitas leis e juízos foram

57

FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 73.

58

Ibid., p. 74. 59

DE LA TORRE RANGEL, J. A. Alonso de Veracruz amparo dos indios. Su teoría y práctica jurídica. Aguasclientes: UAA, 1998. DE LA TORRE RANGEL, J. A. El uso alternativo del derecho en Bartolomé de Las Casas. San Luis de Potosí: Universidad Autónoma de San Luis de Potosí – Comisión Estatal de Derechos Humanos – CENEJUS-CRT, 2007.

caracterizados por padres, dentre os quais alguns já foram citados acima. Contudo, esse fator não deve ser isolado e tão pouco desvirtuar a totalidade encobridora que cumpriu o fanatismo católico gerando perseguição e aniquilação das culturas religiosas autóctones, pois, apesar do absurdo que possa parecer, em nenhum momento até mesmos esses religiosos mais críticos chegaram a pensar em desistir da empreitada evangelizadora.

Diante disso, vale relembrar a afirmação dessa luta intolerante: No processo de conquista da América, a evangelização confundiu-se com a própria dominação colonial. Tornou-se, na verdade, seu principal instrumento. A repressão aos cultos tradicionais e a imposição da doutrina católica formando a cultura nativa em crime, contribuíram para desestruturar a mentalidade e os padrões culturais das populações nativas da América60. Tendo em vista essa estrutura, é pertinente lembrar que a segunda vertente da pacificação se constitui naquilo que Zavala denominou anexação política61, formalizada a partir de um embasamento no Direito medieval e que consta da atitude de vários conquistadores no “ato de tomar posse”. Assim sendo, ocorreu desde Cristóvão Colombo, Diego Velasquez, Hernán Cortes, Pizzarro etc., juridicamente significava tomar em nome do rei a propriedade daqueles territórios e surtia os seguintes efeitos legais, nas palavras de Zavala:

Los efectos jurídicos de las tomas de posesión fueron aceptados por la ley 14, título 12, libro IV de la Recopilacion de Indias, precepto que condicionó todo el régimen de la propiedad de las colonias. El rey afirmaba que pertenecían a su patrimonio y Corona Real todos los baldíos, suelos y tierras y sólo su concesión o confirmación podían ser título legal del dominio inmobiliario en las Indias. Las propiedades que no tuvieran este amparo jurídico debían incorporarse al patrimonio Real62.

60

FERREIRA, Jorge Luiz. Op. Cit, p. 80. 61

ZAVALA, Silvio. Las instituiciones jurídicas en la conquista de América. México: Porrúa, 1988, p. 135.

62

Esses efeitos eram frutos do conteúdo político dessa legislação que colocava até mesmo os indígenas sob o domínio e a hierarquia do Rei espanhol na medida em que se oportunizava a esses subjugados uma escolha “voluntária”, de qualquer forma materializada no domínio fático e na submissão política, na condição de súditos da Coroa. Esse tipo de postura gera - apesar do grau de liberdade jurídica que se concedera a estes sujeitos locais, conforme se verá nas próximas etapas - de imediato o submeter-se à soberania da Espanha, pois “[...] la idea fundamental de la proposición política, en 1518 como en 1573, era que entre los índios reinaba um estado de fuerza y de agravios, que el poder español reprimiria, imponiendo el orden y la justicia”63.

Nesse segundo impacto que anuncia a afirmação da estrutura da conquista, busca arrebatar a autodeterminação e autogoverno que competia aos locais, desconsiderando toda a ordem da estrutura sócio- política que implicava sua sociedade, bem como hierarquizando-os de maneira totalizadora dentro de um esquema alheio às suas vontades e à sua livre manifestação destes. Ademais, adverte-se que o grau de liberdade dado aos indígenas por meio das legislações deveria responder a uma ordem política de controle dos costumes pelos monarcas espanhóis e da moral pelo poder eclesiástico; conformando um esquema para o qual as opções eram dadas de antemão, sem margem para gerar qualquer tipo de escapatória; assim nem mesmo as lutas jurídicas alternativas impressas pelos apóstolos da causa indígena escapam dessa lógica. Traduz-se em um ato de prolongamento do poder político espanhol até as Índias:

Los indios como vasallos, harían presentes y servicios al rey, y éste los tomaría bajo su amparo y protección, haciéndoles mercedes. Era la relación política interpretada conforme a la tradición medieval; el rey quedaba a modo de brazo amparador de la justicia y fuente del orden entre los nuevos vasallos indios, del mismo modo que en Europa ejercía igual función en relación con sus súbdito naturales64.

Entretanto, vale salientar que a não adequação a qualquer dessas linhas assinaladas acima “autorizava” o conquistador a utilizar seu ímpeto

63

Ibid., p. 139. 64

humano, radicalizando os argumentos com o uso da violência – em muitos casos as duas opções anteriores eram posteriores ao procedimento que será descrito. A denominada Guerra Justa, que foi apaixonadamente defendida por Ginés de Sepúlveda no debate de Villadolid com Bartolomé de Las Casas, trata-se de mais uma trampa arquitetada pela filosofia política da conquista, pois principia sua fundamentação da culpabilidade dos indígenas e da inocência e clemência dos invasores, os quais tiveram de suportar os tormentos de serem convertidos à causa civilizadora.

Sendo assim, após o Requerimento ou em alguns casos antes mesmo, pressupondo a não aceitabilidade dos indígenas nas condições “propostas”, partia-se para o conflito violento, apesar de que em tese deveria seguir-se o rito: “[...] Cuando los indios rechazaban la fe y se negaban a prestar de paz la obediencia al rey, surgía la posibilidad teórica del empleo de la guerra”65. Essa referida possibilidade teórica era regra prática dos espanhóis que seguiam as recomendações da Coroa na Guerra Justa empregada contra os indígenas, nesse ato nada consta de ilegalalidade, pois todos os atos que dominavam a cena da conquista, inclusive na etapa violenta, eram amparados por legislação específica e uma filosofia fundante.

Portanto, a síntese da relação se dá ao verificar que a brutalidade, nessa etapa da conquista, deveria ser constituída supletivamente ao ato preferencial da via pacífica – evangelização -, em termos teóricos eram essas as recomendações, porém isso não quer dizer que a perversão se constituiu na prática como primordial forma de contato, afinal o próprio texto do Requerimento omite qualquer regulação no procedimento de comunicação “com” os indígenas e também na comunicação “aos” indígenas, e mesmo nos momentos em que se intentou este diálogo, deve-se pressupor – e tão pronto confirma-se nos estudos consultados –, que a negação a estas propostas também justificavam a guerra justa.

Logo, sem adentrar na perversidade da materialidade legislativa que possibilita, ao menos no campo do Direito, uma isenção de culpabilidade dos conquistadores, bem como, na maneira em que se deu este encontro, em que os contornos tomam outro rumo, vale salientar que a doutrina que vigorava nesses termos também fazia eco de apoio à ação, “[...] conforme a la doctrina escolástica de la guerra, los requisitos esenciales de ésta eran: autoridade legítima, causa justa, recta intención y forma prudente de llevarla a cabo”66

. 65 Ibid., p. 140. 66 Ibid., p. 141.

Esses aportes filosóficos, jurídicos e da doutrina eclesiástica, davam autoridade aos conquistadores, os quais em posse do Requerimento, obtinham a devida autorização Real para impor qualquer ato violento, contanto que objetivasse viabilizar a causa motivadora da Guerra Justa e sagrada. Logo poderiam aplicar qualquer expediente brutal se, na conduta do processo fosse observada a intenção de proporcionar aos naturais da região uma condução à civilidade. Assim se caracterizava a encruzilhada dos espanhóis: legitimados a praticar sua concepção de forma “prudente”, amparados na fundamentação filosófica e religiosa do ato jurídico de conquistar pela palavra da fé ou pelo fio da espada, tarefa para a qual cabe análise mais detalhada nas próximas linhas.