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1. CONSTRUÇÃO DA CULTURA MONOJURÍDICA LATINO-

1.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS: A CONSTITUIÇÃO DA

1.1.3. Objetivos da domesticação

A lógica da conquista, a qual baixou os índices demográficos e de ocupação territorial pelos autóctones, contrastada com a invasão massiva dos expedicionários em busca das riquezas no continente, fato que praticamente vai eliminando povoados inteiros, gerando problemas de desagregação e interferindo violentamente no modo de organização das sociedades indígenas94; posterior a essa fase dá-se o início ao

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“A conquista significou a destruição de suas civilizações, epidemias diversas, trabalhos forçados e fome que foram responsáveis por uma burtalqueda demográfica num curto espaço de tempo. Significou também desagregação violenta dos laços sociais, familiares e culturais, desarticulando a maneira como

processo de colonização, de assentamento no território ocupado e de instauração dos modelos de exploração já aparelhados no modelo econômico do pacto colonial. A essa fase pode-se chamar de período de domesticação dos indígenas, o qual é atravessado pelo conflito entre alguns setores da igreja e os colonos, pois aos primeiros a evangelização e aos colonizadores, cumprir os desígnios econômicos da empresa colonizadora, junto ao interesse da Coroa.

Nesse contexto, o melhor exemplo que tipifica a fase é o das denominadas “encomendas”, sistema que poderia cumprir a tarefa de converter o terror indígena em suplício, transformando a dominação, por meio do extermínio, em domesticação pelo viés da implantação de aspectos políticos, sociais, culturais e religiosos ibéricos, somado ao processo de domesticação dos corpos, o qual convertia aqueles que restaram do massacre em potencialidade para o trabalho forçado. Nas palavras de Romano Ruggiero, surgia um sistema para “enquadrar” os índios, convertendo sua dispersão e desorientação, fruto das barbáries, em nova ordem de disposição dos laços sociopolíticos, considera-se que a encomenda:

[...] é o sistema mais difundido: os índios são confiados (encomendados) a um espanhol a quem pagam tributo sob a forma de prestação de serviços. A “encomienda” como todas as outras formas de trabalho indígena a serviço do conquistador, quer seja na terra, nas minas, nas areias auríferas dos rios, ou nas oficinas de tecelagem, se caracteriza geralmente, apesar de certas variações locais, pelo trabalho forçado95. É perceptível que a forma de organização econômica para os espanhóis também tinha um propósito de agregar novamente os indígenas em unidades comunitárias, acontece que essas unidades assumiriam novos fundamentos e valores cristãos, pois reunidos como súditos da realeza seria mais fácil obrigar os nativos a se esmerarem em prol da “proteção”, pagando tributos e reverenciando com pesados serviços também aos seus “senhores”.

viviam e como organizavam a realidade social em suas mentes”. FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 09.

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RUGGIERO, Romano. Mecanismos da conquista colonial: os conquistadores. São Paulo: Editorial Perspectiva S.A., 1973, p. 41.

O esquema desenhado nessa instituição visava a conservar a capacidade laboral e os frutos que se poderiam extrair da força de trabalho dos indígenas nos redutos. Esses, encomendados a um senhor eram obrigados a prestar aportes financeiros ou mesmo braçais em favor dos próprios encomendeiros o que também gerava fontes lucrativas para a Coroa. Não obstante isso, os indígenas reduzidos nas encomendas “receberiam” préstimos religiosos, para que a empresa da conversão evangelizadora também pudesse lograr cumprir sua total adequação, possibilitando-lhes incluir-se no mundo moderno como “novos homens” civilizados. No entanto, nota-se que o mais interessante de todo esse engodo é o fato de que os próprios destinatários não obtinham nenhum benefício advindo da sua “liberdade” como encomendado, a alta carga de deveres era imposta e na proporção inversa as benesses e os Direitos também.

Diante disso, é verificada uma pequena abertura na estrutura das encomendas que confere margem de proteção aos indígenas; trata-se de um pequeno campo de batalha no qual, vão emergir as teses de defesa dos padres católicos defensores dos indígenas. Na afirmação da unilateralidade funcional da instituição socioeconômica, materializada na finalidade da dominação sem limites, alguns religiosos vão reivindicar a evangelização, abrindo um front representado pelo conflito no procedimento de domesticar os nativos.

Identificada essa questão, o paradoxo do sistema de encomenda indígena passa a ventilar entre a reflexão de estar condensada a proposta da domesticação em exploração ou evangelização e defesa das populações indígenas. Romano Ruggiero novamente explicita:

Assim, o bem espiritual das populações indígenas e a defesa da região servem de duplo argumento para estabelecer e justificar o nascimento e a manutenção da encomenda. Evidentemente, a Coroa intervém de vez em quando para defender os índios. Mas deve-se confessar que ela intervém mais para frear os encomenderos do que para defender seus súditos. Prova está que, para proteger os índios da exação excessiva de tributos, afirmam que não se pode fazê-lo pagar todo esse dinheiro, pois sua condição “parece ser mais de escravos que de homens livres”. Defesa? Ou antes, rivalidade – como teremos oportunidade de verificar em seguida – entre os interesses da Coroa preocupada em salvaguardar suas

prerrogativas, e os dos encomenderos que exercem uma autoridade abusiva? Em todo caso, os índios não têm outra alternativa entre serem “escravos” ou pagar ao encomendero „todo cuanto pueden‟, tudo o que podem96

.

O que não se há de discutir é o caráter exploratório da encomenda, principal instituto econômico do período da colonização. O problema que se pretende abordar é complicado em termos de interesses políticos, pois na condição de súditos e sob as leis da Coroa da Castela, os índios deveriam cumprir suas tarefas e arrecadar seus tributos - junto ao próprio soberano e também ao senhor encomendeiro -; com essa postura cumpriria sua função dentro do sistema econômico, porém o que novamente vai recair sobre este é a questão da disputa entre os setores clericais – preocupados não somente com o campo econômico – e os encomendeiros – objetivando acúmulo de riquezas –, pois tendo os indígenas sido confinados em espaços territoriais sob um poder de mando, torna-se um contexto ideal para as duas facetas da exploração: a laboral e a exploração evangelizadora; de qualquer forma o indígena era domesticado.

Nesse sentido, frente à opressão brutal dos encomendeiros e o pouco interesse destes em efetuar uma devida pauta religiosa aos seus encomendados, vão surgir os embates que darão um mínimo caráter protetivo aos indígenas, ou mesmo na acepção que mencionou Ruggiero, ao menos indiretamente como destinatários os indígenas irão gozar desse “benefício”, por meio das legislações que advieram da relação conflituosa traçada entre os religiosos e os encomendeiros. Para o Jesús A. de la Torre Rangel, a encomenda cumpre do ponto de vista jurídica uma dupla função:

O que importa destacar é que a encomenda, por sua própria estrutura jurídica, não só permite, mas exige a organização comunitária indígena para poder funcionar. Mais do que qualquer outra instituição indígena, a encomenda cumpre a dupla função de juridicidade do Direito Espanhol na

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América: de submissão, por um lado, e de proteção, por outro97.

Essa duplicidade de que fala o autor de Aguascalientes, se revela no plano do reconhecimento da condição de domesticação que exerce esse instituto colonial, mas ao mesmo tempo demonstra que surtia um reflexo que expõe seu contrassenso, pois:

A encomienda implica também obrigações para os encomendeiros, tanto na sua relação com a Coroa, como com os índios encomendados, cuja cristianização protegia sua pessoa e seus bens. Um sistema assim requer a subsistência da comunidade indígena. Sem isso é impensável. O sistema da encomenda não destruiu a comunidade indígena, apesar de todos os abusos dos encomendeiros, caso contrário também teria desaparecido. Paradoxalmente, graças aos sistemas da encomenda, a comunidade indígena, em geral, e os calpullis, em particular, sobreviveram na Nova Espanha98.

Esses aportes demonstram um ponto de vista que conduz à seguinte reflexão: no tocante à dominação, garantiu-se o extermínio físico das massas nativas; já no que tange à domesticação, a lógica será inversa. Em vez do extermínio dos corpos, promove-se a domesticação para produção das riquezas da empresa colonizadora. Ainda, juntamente a esse fator, trata-se também de não eliminar todas as estruturas de integração social que possam ser utilizadas no empreendimento da domesticação; assim, de forma paradoxal, a encomenda acabou possibilitando aos indígenas manter alguns dos seus costumes e usos, pois os arquétipos das comunidades garantiam a unidade social necessária para a exploração econômica por parte do colonizador. Esse paradoxo se sustenta, pois, para os espanhóis conquistadores e para os Reis Católicos, interessava-lhes auferir lucros; assim muitas estruturas nativas – inclusive as jurídicas – se mantiveram durante o período da colonização.

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RANGEL, J. A. de la Torre. Direitos dos povos indígenas: da Nova Espanha até a modernidade. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Direito e Justiça na América Indígena. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 228.

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Dessa forma, as chamadas encomendas somam-se aos elementos que compõem essa ampla gama que é a empresa da conquista e da colonização da América originária, na qual os paradoxos são inúmeros, mas que via de regra gira em torno dos princípios mencionados anteriormente quando foi recordada a tríade que propõe Jesús Antonio de la Torre Rangel. Mesmo assim, essas incongruências logram afirmar um pouco de ingerência no ímpeto dominador dos conquistadores, em que nada altera a lógica de domesticação ou submissão dos indígenas ao modo de vida “civilizado” europeu. Nem tampouco apaga o “trauma” causado pelo processo de conquista99, porém exemplifica sob o ângulo jurídico a intencionalidade “protetiva”, algo importante que será verificado nas próximas linhas com maior cuidado.

Contudo, no presente momento deste trabalho não há que se perder a experiência do tema das encomendas como elemento estratégico no processo de domesticação, bem como a capacidade de evidenciar os princípios da empreitada conquistadora e efetivamente das estruturas que condicionam a prática colonizadora, trata-se de importante instrumento históricos que deve ser explorado detalhadamente.

Sendo assim, destaca-se ainda na temática domesticação a questão do chamado “trauma cultural” que poderá ser retirado desses lineamentos e ajudará a clarificar a disjunção referida. O trauma cultural, para os indígenas quer evidenciar o seguinte:

[...] todo o aparato simbólico sofreu uma violenta ruptura que se manifestou num verdadeiro trauma cultural. A proibição de seus cultos e a evangelização superficial retirou deles os padrões culturais de leitura da realidade social, sem que

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A história visível da conquista é a história da derrota militar dos povos americanos, da derrubada dos grandes impérios indígenas, do massacre do índio. É também a história da pequena tropa dos conquistadores, a de Cortés, Pizarro, Valdivia, que enfrentaram toda classe de obstáculos – cordilheiras, planícies áridas, selvas, climas quentes, guerras. Foram os “heróis- civilizadores”, valentes, católicos, cruéis e delirantes. Fazem parte dessa história visível a evangelização dos índios, a extirpação de idolatrias, a luta contra o demônio, a dominação e o servilismo dos naturais. Mas, também, a procura do ouro, o enriquecimento rápido e a exploração até a exaustão e a morte dos povos americanos. BRUIT, Hector. Bartolome de Las Casas e a simulação dos vencidos: ensaio sobre a conquista hispânica da América. Campinas: Ed. da UNICAMP; São Paulo (SP): Iluminuras, 1995, p. 31.

tivessem outros que efetivassem uma possível substituição. Enfim, o significado da Conquista para as populações ameríndias foi a violência em todos os planos e dimensões100.

Essa disjunção está imersa na perspectiva do trauma cultural. No âmbito da domesticação, os novos paradigmas colonizadores não vêm somente substituir a ausência das antigas estruturas eliminadas ao fio da espada; mas também romper definitivamente com qualquer resquício destas, elaborando artifícios eficazes para tal finalidade, para posteriormente impor seus arquétipos. O que chama atenção nesse ponto é o fato da importância política da evangelização no quesito ruptura cultural, e não se deve falar em harmonização ou tolerância e sim na supressão total da primeira e também na intencionalidade progressiva de destruição dos resquícios que por derradeira insistência histórica se mantiverem.

Sendo assim, o que se deve destacar é a questão dentro das diferenças entre princípios da conquista e as estruturas da colonização, pois afinal essa desestabilização da cultura local não está explícita em nenhum dos interesses anteriormente referenciados - basta lembrar a tríade -; dado o início da domesticação, os espanhóis tiveram que lidar com a total desolação desses povos, porém fazendo uso daquilo que ainda subsistia ao mesmo tempo em que aplicavam uma paulatina carga de ruptura e de imposição do novo sistema. Na realidade o proveito em manter algumas estruturas indígenas e fazer uso delas se dava pela facilidade não só de cumprir os objetivos da empresa conquistadora como também fundar uma ordem cultural colonizadora com arquétipos próprios; ver-se-á adiante que os usos e os costumes indígenas serão tolerados sob os auspícios da Igreja e da Coroa. Logo, isso não se trata de uma mestiçagem das estruturas, mas de pura colonização pelo viés de subsumir o espólio e desde então trabalhar em cima; da mesma maneira como que se fez com a catedral mexicana, qual a finalidade? Justamente o que já foi mencionado no parágrafo anterior - primeiro romper e depois aniquilar resquícios -, entre o primeiro e o segundo ato, nada impede que se possam utilizar os instrumentos restantes sem desmobilizar a engenharia autóctone, mas então qual seria esse elemento que trabalhará em meio aos dois atos? A evangelização.

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FERREIRA, Jorge Luiz. Conquista e Colonização da América Espanhola. São Paulo: Ática, 1992, p. 10.

Tal processo acima mencionado se pode definir de dois modos: aculturação ou deculturação. Para o primeiro caso vale resgatar as palavras do autor José Luiz Ferreira, em que mencionando sobre uma civilização agonizante:

O saldo mais desastroso da Conquista manifestou- se no processo de aculturação econômica, social e religiosa sofrido por estas populações. O colonizador, ao negar todo o conjunto de atitudes, crenças e códigos de comportamento próprios destes povos e sem oferecer substituto à altura, desarticulou a forma destas populações interpretarem e viverem sua própria existência. Este processo levou, por exemplo, os infelizes habitantes da Ilha de Páscoa a uma “terrível apatia” e a uma “civilização agonizante”, como diagnosticou Métraux101.

No fragmento se encontram os dois momentos importantes relacionados com a conquista como ato de aculturação: eliminar a cultura existente para em seguida, através da colonização, negar qualquer indício da anterior religiosidade pela evangelização, consolidando a nova fé em seu lugar; porém, dentro da política de cumprir as finalidades e explicitando os princípios da empresa colonizadora, aparecem alguns elementos tolerantes, que pela sua própria lógica se confirmam como perversos.

Diante disso, no tocante ao que se pode chamar de deculturação, vale referir a explicação dada pelo autor Héctor Bruit:

Em outras palavras, esconderam o que tinham sido e passaram a ser o que nunca foram. [...] O trauma foi coletivo e sobreviveu na medida em que a sociedade e cultura indígena não desapareceram totalmente. Como já foi assinalado por mais de um estudioso, ao longo do período colonial não chegou a realizar-se uma aculturação completa, pelo contrário, o que se desenvolveu foi

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um processo de deculturação em que os valores dos vencedores e vencidos se justapõem102. Destarte, o que promove o aparece é aquilo que se percebe em várias obras acerca da introjeção dos valores religiosos e culturais dos povos Ibéricos aos indígenas; mesmo que estes últimos mantenham guardados em sua consciência de oprimidos a antepassada cultura e religiosidade, ainda há que se operar um processo de justaposição no qual se revela a eliminação dos resquícios - proposta da aculturação promovida pela evangelização - anteriores. Não logrando arrancar do âmago desses povos as suas características originárias, ainda que tenha deturpado boa parte, a justaposição é afirmada como mecanismo de subjugação e a referida tolerância revela sua perversidade na vigilância e nas punições auferidas aos que insistiam em revelar algum indício pagão. No entanto, vale referir que esta estratégia de defesa dos indígenas constituía uma espécie de resistência103.

Portanto, a partir do ponto de vista dos autores mencionados, pode-se concluir esta etapa expondo os principais elementos que conduzem ao chamado processo de conquista e de colonização, manifestação do período de constituição da totalidade moderna, no qual foi mapeada e refletida uma geopolítica colonizadora (que envolve o período destacado). Logo, expostos os principais fenômenos que consolidam o processo de dominação e domesticação dos povos originários, passa-se à próxima etapa visando dar enfoque naquilo que é propriamente a área e o tema da pesquisa, visualizando o campo jurídico e principalmente sua manifestação plural, na qual certamente ficará mais claro o entendimento após os esclarecimentos da geografia temática mencionada.

102

BRUIT, Hector. Bartolome de Las Casas e a simulação dos vencidos: ensaio sobre a conquista hispânica da América. Campinas: Ed. da UNICAMP; São Paulo (SP): Iluminuras, 1995, p. 5.

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[...] os indígenas deste país, embora lhes ensinem os evangelhos há muito tempo, não são mais cristãos agora do que eram no momento da conquista, pois, no que tange à fé, eles não têm mais agora do que tinham naquela época, e no que se refere aos costumes, estão piores „en lo interior y oculto”; e se parecem praticar certas cerimonias formais – entrar na igreja, ajoelhar-se, rezar, confessar-se e outras – eles o fazem forçados. ZUNIGA apud RUGGIERO, Romano. Mecanismos da conquista colonial: os conquistadores. São Paulo: Editorial Perspectiva S.A., 1973, p. 20.

1.2. DA INVASÃO À COLONIZAÇÃO: ASPECTOS DE UM