• Nenhum resultado encontrado

Consciência e Percepção na construção da Imagem Corporal

2. Imagem Corporal

2.3. Construção da Imagem Corporal

2.3.1. Consciência e Percepção na construção da Imagem Corporal

A Imagem Corporal é um fenómeno que se constitui a um nível privado na primeira pessoa em articulação com o exterior, isto é, o mundo social. Neste sentido ocorre na consciência de cada um. Por consciência e na perspectiva de Damásio (2000) podemos entender um conjunto de experiências que permitem ao organismo encontrar um sentido do si num dado momento, esta será a consciência nuclear ou mais básica do organismo. A consciência alargada também inclui o conhecimento de um mais elaborado sentido de si, encerrando já uma identidade que inclui a história de vida de cada sujeito. É organizada pela linguagem e dá sentido à nossa existência. A consciência alargada produz o “si autobiográfico” (Damásio 2000, p. 37) que comporta todas as dimensões biográficas de um organismo, tal leva-nos a outro conceito de Damásio que é a “consciência-com-sentido-de-si”, esta é a consciência do si no acto de conhecer. A consciência alargada permite criar uma individualidade, com sentido de pertença e capacidades de acções pessoais. Partindo destes conceitos de Damásio (2000), podemos considerar que a imagem corporal constrói-se numa mútua articulação entre a consciência nuclear e a consciência alargada. O organismo em primeiro lugar relaciona-se em consciência com o seu corpo e constrói uma relação com o mesmo a partir da sua história de vida e identidade.

A consciência é importante para gerar conhecimento sobre qualquer espécie de objecto a conhecer, a partir daqui surgem imagens que podem ser manipuladas, ao longo da existência do indivíduo. A consciência produz-se a partir do que vemos, ouvimos ou tocamos, para Damásio (2000) assume-se como uma espécie de

sentimento indissociável de imagens, que podem ser de natureza auditiva, táctil ou visceral e que fazem parte de um dado organismo.

Damásio (2000) refere-se às imagens mentais, as quais podem ser conscientes ou não conscientes, estas últimas não são directamente acessíveis, só o são, as imagens conscientes de cada pessoa, contudo o autor admite que todas se tornam conscientes. Imagem mental é para o autor uma espécie de padrão mental que está incluído nas variadas modalidades sensoriais, que não são só a visual, mas também outras como: auditiva, gustativa e “somatossensorial”. A última integra os sentidos relativos ao tacto, muscular, temperatura, dor, visceral e vestibular. Estas imagens não se referem apenas a objectos estáticos e são construídas sempre que o sujeito entre em relação com objectos. Estamos sempre a produzir imagens, até durante o sono, tal é visível através do sonho. Damásio (2000) continua a salientar a importância das imagens referindo que até os sentimentos são imagens, de natureza “somatossensoriais” que indicam estados corporais. Parece-nos pertinente pensar que a consciência constitui-se por imagens, as quais são construídas a partir da relação do organismo com os órgãos dos sentidos, assim conhecemos o nosso corpo, interiorizamo-lo em todas as suas dimensões de repouso ou movimento e integramos neste conhecimento sentimentos de natureza mais ou menos “somatossensorial”. A imagem corporal integra-se neste processo, num registo de imagem mental, mais ou menos consciente.

Ao fim ao cabo, a consciência é conhecimento de um dado fenómeno, que pode ser o corpo resultando uma imagem deste. Ela também depende da própria manifestação interna da interacção entre o organismo e o objecto. Para a construção da nossa imagem corporal a consciência tem um papel importante. Pois baseia-se numa memória autobiográfica, construída ao longo da nossa existência e é passível de transformação. Para Damásio (2000) a ideia que cada um elabora acerca de si, como a imagem do que somos física e mentalmente e que obrigatoriamente inclui a imagem corporal, é uma construção que ocorre de forma consciente, sendo essa transformação também não consciente. Assim, estes processos conscientes e inconscientes são influenciados por inúmeros factores como traços de personalidade inatos e adquiridos, conhecimento, inteligência, meio ambiente social e cultural. Assim temos um “si autobiográfico” que é fruto destas dimensões articulado com experiências e memórias de vida.

O mundo da imaginação e da consciência entrecruzam-se, ao ponto do primeiro influenciar a eficácia do segundo, existindo um “proto-si” não consciente que determina a consciência. (Damásio 2000) Para Damásio (2000) a consciência é um sentimento, pois sente-se. Este sentir assume-se como linguagem não verbal dos estados corporais, por isso se revelam no organismo. Assim a consciência humana está dependente de sentimentos, os quais vão influenciar sem dúvida a imagem corporal de cada um.

Podemos entender por percepção o acto de tornar consciente a informação que nos chega ao cérebro pelos neurónios sensitivos (Alves, Baptista, & Fortunato, 2003). A percepção acontece no organismo enquanto fenómeno consciente, sendo a consciencialização de um estímulo, que é transformado em informação captada por órgãos e conduzida por neurónios sensoriais. Assim, esta informação consciente é trabalhada, processada e compreendida. Os dados brutos são modificados num registo consciente e apresentam-se como informação construtiva, ou conhecimento. (Alves, Baptista, & Fortunato, 2003). O conhecimento de um dado fenómeno surge pela percepção, dando-se a conhecer como uma vivência subjectiva dos dados provenientes dos processos dos sistemas sensoriais. Assim a percepção não pode ser entendida como uma cópia do estímulo, mas sim como o resultado de um processo elaborado do estímulo sensitivo. A percepção funciona como uma espécie de “porta de protecção” (Alves, Baptista, & Fortunato, 2003, p. 103), perante o caos de estimulação que o organismo recebe.

A percepção é um factor determinante para a construção da imagem corporal, pois numa primeira fase de relação e de conhecimento com o corpo próprio, o organismo integra as suas características várias, sendo os órgãos dos sentidos as lentes de captação. Os olhos observam, as mãos tocam, o nariz cheira, a pele sente, as vísceras mexem-se, o corpo é vivo e vive e nós não o podemos negar nem deixar de o percepcionar todos os dias da nossa vida. Contudo o conhecimento que cada um tem do seu corpo não é uma leitura linear da percepção física desse corpo. Como Schilder (1981) admite, para se compreender a imagem corporal deve-se abordar a questão psicológica central da relação entre as impressões dos sentidos, dos movimentos e da motilidade geral do indivíduo. Ao se perceber a imagem de um objecto, ou quando se constrói a imagem de um objecto, o indivíduo não age meramente como um aparelho perceptivo, pois existe sempre uma personalidade e logo subjectividade que experimenta a percepção. Assim, a imagem corporal surge como resultado de um

trabalho desenvolvido pela percepção integrado na consciência e em articulação com a personalidade ou subjectividade do sujeito, organizando-se como um compromisso entre estas dimensões.

A percepção permite-nos adquirir a corporeidade, sendo esta a expressão, impressão ou o sensível do corpo que coloca o sujeito em relação com o mundo (Faria, 1996). O corpo apresenta-se assim a cada um de nós como instrumento de relação com o mundo, possibilitando-nos uma dada compreensão sobre o que nos rodeia. Esta corporeidade constitui-se a partir da nossa relação com o corpo, sendo este a parte mais material e visível do Eu. A noção de ter um corpo surge de uma primeira impressão da sua existência, ou seja da corporeidade, sendo esta fundamental para a construção da identidade. As sensações e movimentos corporais garantem a corporeidade e oferecem a consciência do corpo, e da identidade ( Erthal, 1991)

O corpo integra a percepção e a percepção é uma constante no corpo, todas as pessoas experimentam a realidade do mundo através do corpo, este sofre diferentes estimulações a todo o momento numa constante interacção corpo–mundo, sendo esta regida pela percepção. O corpo utiliza os seus receptores sensoriais para captar as informações e determinando conhecimentos em estado de consciência.

O corpo é antes de mais um objecto de percepção, individual (do próprio) e do social, pois apesar de ser um objecto de relação muito privado e íntimo, também é aquele que apresentamos de imediato na interacção social. O corpo é um objecto individual e social, público integrando um conjunto de representações socialmente partilhadas e construídas, é por excelência um objecto de trocas sociais. É signo e matéria que funciona como objecto de troca e de consumo. Como assume Baudrillard (1970), é o “mais belo objecto de consumo” (Baudrillard 1970 p.34). Apesar do corpo ser um objecto de percepção relativamente ao próprio e ao exterior, neste processo perceptivo entram variáveis intrínsecas ao organismo, de carácter emocional, afectivo biográfico, sociológico que o tornam num objecto de representação. Assim este corpo é-nos dado a conhecer não só como fenómeno biológico e sensorial, mas também como fenómeno imaginário e subjectivo. Tal leva-nos à posição de Jodelet (1984) que assume que o corpo é talvez aquilo que de menos biológico possuímos. A percepção que estabelecemos é antes de mais subjectiva e pode dividir-se em experiência corporal directa e relação com o meio ambiente. A experiência corporal directa inclui o conhecimento do corpo próprio através do andar, lavar-se, fazer amor, bronzear-se, da dor, da doença, das emoções. Isto pode incluir experiências tanto reais como

imaginárias, puramente físicas, psicológicas e pertencentes tanto ao passado como ao presente. A relação com o meio ambiente refere-se a todo um conjunto de trocas de referência feitas no social relativamente ao corpo do sujeito. Jodelet (1984). A percepção do corpo pode então estabelecer-se num contacto mais intimo e pessoal do sujeito com o seu corpo e podemos chamar a esta (percepção intima do corpo) ou num contexto de percepção mais social em que o indivíduo percepciona o seu corpo a partir de devoluções apreciativas (com valência positiva ou negativa) efectuadas pelos outros indivíduos sobre o seu corpo (percepção social do corpo).

A percepção do corpo não se reduz a uma mera transmissão de características corporais que são integradas a partir dos órgãos dos sentidos, mas a uma interacção entre as dimensões mais subjectivas, afectivas, auto biográficas e respostas sociais sobre o corpo ditadas pelo mundo exterior. Tudo isto é integrado pela consciência, quer seja a nuclear ou a alargada, num registo mais ou menos consciente (Damásio 2000). A partir daqui surge a imagem corporal, a qual se inicia sempre a partir de uma percepção, percepção essa que desemboca numa imagem representativa do corpo. A imagem corporal começa por ser uma imagem perceptiva do corpo e transforma-se numa imagem representativa do corpo. Estas imagens são uma constante em nós e são reais para o seu autor. Esta imagem perceptiva e representativa do corpo ganha consistência numa consciência que inclui uma história e uma vivência.

A nossa posição vai ao encontro da de Van Kolck (1987) a qual assume que a percepção individual do corpo já é a imagem corporal, pois é a forma como cada pessoa elabora a imagem do seu corpo, acentuando ou modificando diferentes partes em função de mecanismos da sua personalidade, vivências passadas e presentes. O indivíduo não é só um agente perceptivo, mas uma personalidade em constante comunicação.

A autora da presente investigação assume que a imagem corporal é um processo dinâmico que nasce com a percepção, insere-se como processo consciente e não consciente. O homem neste processo de construção utiliza a consciência como faculdade humana de imaginar, representar, projectar, construir, materializar uma visão que antecede o olhar, ele é o eterno espectador e investigador, utilizando o corpo como condutor do real e não real. O corpo é percepcionado como substância material, carnal, testemunha da existência humana, mas a imagem resultante dessa percepção é aquilo a que podemos chamar uma “figuração” construída num registo mais ou menos consciente e que revela a imagem e a representação psíquica daquele

corpo e aqui estamos no registo simbólico. A figuração do corpo foi produzida pelo próprio espaço de representação íntima e histórica. A figuração é a imagem do corpo que comporta em si uma experiência do sujeito com a dimensão natural, sensível e visível, mas também com a sua biografia, lembranças, fantasias, visualizações, projecções e códigos sócio-culturais. A figuração do corpo comporta não só os dados perceptivos regidos pela consciência mas também um universo invisível e impalpável. Ela é o primeiro indício da imagem corporal, assumindo-se como uma imagem mental sobre o corpo introdutória da imagem corporal.

A figuração do corpo também comporta em si fortes significados sociais e culturais relativos ao corpo e que caracterizam uma dada sociedade e cultura. Transmite-se um forte código de significados corporais correspondendo a representações sociais relativamente ao corpo, as quais influenciam experiências individuais de sujeitos pertencentes ao mesmo grupo. Assim o fluxo perceptivo é influenciado pelas representações sociais do colectivo. A consciência perceptiva que produzimos sobre o mundo e o corpo é indissociável de todo um conjunto de projecções humanas, que tornam a consciência perceptiva não numa leitura linear do fenómeno, mas numa comunicação silenciosa e profunda num espaço de representações.