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3. ENTRE DEMOCRACIA PROCEDIMENTAL E PLURALISMO AGONÍSTICO

3.3. As Críticas de Chantal Mouffe e o Pluralismo Agonístico

3.3.5. O consenso é uma impossibilidade teórica

Nesses termos, chegamos ao ponto central da divergência de Mouffe com Habermas, de grande relevância para este trabalho. Para a autora, a deliberação voltada ao consenso não é apenas uma impossibilidade fática, mas uma impossibilidade teórica.

Segundo ela, buscar o consenso racional configura uma ameaça à democracia332. Com base em Derrida e Schmitt, e suas respectivas construções de identidade333 e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

331 HABERMAS, 2007, p. 339. 332 MOUFFE, 2000, p. 22.

333 Mouffe deriva a formação de identidades da ideia de “constitutive outside” derrideana, retirando dela sua noção de hegemonia. Diz: “(…) any social objectivity is ultimately political and has to show the traces of the acts of exclusion which govern its constitution; what, following Derrida, can be referred to as its 'constitutive outside'. This point is decisive. It is because every object has inscribed in its very being something other than itself and that as a result, everything is constructed as difference, that its being cannot be conceived as pure

antagonismo334, Mouffe apregoa que os obstáculos para a realização concreta do consenso são as próprias características constitutivas da democracia335. A ênfase no consenso e na conciliação, segundo a autora, leva à apatia, ao desinteresse na participação política336. Ela propõe a seguinte leitura:

Consensus in a liberal-democratic society is - and will always be - the expression of a hegemony and the crystallization of power relations. The frontier that it establishes between what is and what is not legitimate is a political one, and for that reason it should remain contestable.337

Logo, na vertente do pluralismo agonístico, deve-se entender o consenso como o resultado de uma hegemonia provisória, que inevitavelmente produz uma forma de exclusão, e deve ser contestável338. Para o lugar do consenso na teoria habermasiana, Mouffe propõe a diferença e o dissenso como elementos constitutivos da democracia.

Ao final de sua exposição, porém (e talvez contraditoriamente), ela reconhece a necessidade de um consenso mínimo em torno de valores democráticos. O seguinte trecho é muito esclarecedor de sua visão:

I agree with those who affirm that a pluralist democracy demands a certain amount of consensus and that it requires allegiance to the values which constitute its 'ethico-political principles'. But since those ethico-political principles can only exist through many different and conflicting interpretations, such a consensus is bound to be a 'conflictual consensus'. This is indeed the privileged terrain of agonistic confrontation among adversaries. Ideally such a confrontation should be staged around the diverse conceptions of citizenship which correspond to the different interpretations of the ethico-political principles: liberal-conservative, social-democratic, neo-liberal, radical-democratic, and so on. Each of them proposes its own interpretation of the 'common good', and tries to implement a different form of hegemony. To foster allegiance to its institutions, a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

'presence' or 'objectivity'. Since the constitutive outside is present within the inside as its always real possibility, every identity becomes purely contingent. This implies that we should not conceptualize power as an external relation taking place between two pre-constituted identities, but rather as constituting the identities themselves. This point of confluence between objectivity and power is what we have called 'hegemony'.” MOUFFE, 2000 p. 21.

334 Numa proposta de recuperação das críticas de Schmitt à democracia liberal para fortalecer a própria democracia liberal (Return of The Political, p. 2), Mouffe enuncia: “While I consider that Schmitt's critique provides important insights and that it should be taken seriously, my position, developed in Chapter 2, is that this ultimate irreconcilability need not be visualized on the mode of a contradiction but as the locus of a paradox. (…) By constantly challenging the relations of inclusion-exclusion implied by the political constitution of 'the people' - required by the exercise of democracy - the liberal discourse of universal human rights plays an important role in maintaining the democratic contestation alive.” MOUFFE, 2000 p. 9-10.

335 MOUFFE, 2000 p. 48. 336 MOUFFE, 2000 p. 104. 337 MOUFFE, 2000 p. 49. 338 MOUFFE, 2000 p. 104.

democratic system requires the availability of those contending forms of citizenship identification.339

Faremos aqui, para facilitar a compreensão, uma parte de nossa análise da crítica de Mouffe ao consenso habermasiano. Como ficou claro no trecho acima, quanto à proposta de consenso sobre os procedimentos, Mouffe não se distancia tanto de Habermas. Afinal, diferentes interpretações sobre o bem comum, diferentes culturas e, até mesmo, diferentes respostas para questões de justiça - constitutivas do procedimento - são mencionadas e prescritas pelo próprio Habermas.

A principal divergência da autora permanece de pé, entretanto, sobre a normatividade do consenso para a prática política. Para Mouffe, o embate entre adversários é tido como momento saudável e constitutivo da democracia, ainda que cada um dos atores não esteja aberto ao convencimento mútuo, e apresente no espaço público seu projeto hegemônico. Como vimos anteriormente, isso diverge da proposta habermasiana, cuja preocupação não é a candência dos embates políticos. Habermas parece entender o conflito, em grande medida, como implicação do próprio pluralismo de ideias, assim como decorrência da concretização das condições ideais do discurso, guiadas ao consenso. Sua preocupação central é a busca por legitimidade das decisões diante do pluralismo. Nesta linha interpretativa, a teoria democrática habermasiana não incentiva a formação de identidades coletivas divergentes sobre o bem comum. Seu fato-problema está em lidar com a pluralidade de visões e com a tomada de decisões vinculantes a toda e cada uma das identidades.

Além do mais, para Habermas, diferentemente de Mouffe, não basta que haja a decisão sem o embate de ideias. A legitimidade da deliberação não condiz com a aglomeração impositiva de capital político, mas demanda um fundamento argumentativo. Desse modo:

Democratic majority decisions are only a ceasure in a process of argumentation that has been (temporarily) interrupted under the pressure to decide; the results of this process can be assumed even by the outvoted minority as a basis for a practice binding on all. For acceptance does not mean that the minority accepts the content of the outcome as rational, and thus would have to change their beliefs. For the time being, however, the minority can live with the majority opinion as binding on their conduct insofar as the democratic process gives them the possibility of continuing or recommencing the interrupted discussion and shifting the majority by offering !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

339 MOUFFE, 2000 p. 103. Curioso notar, neste trecho, que a proposta de democracia radical está inserida como uma das possíveis posições no campo político instituído na própria proposta de democracia radical. Ou seja, fica claro que, ao invés de um sistema articulado de organização social, trata-se assumidamente de uma proposta política, que reconhece a legitimidade de seus adversários e avista sua própria desconstrução enquanto hegemonia política.

(putatively) better arguments.340

Porém, em função da centralidade excessiva dada à tarefa de produzir legitimidade para as decisões coletivas, Habermas deixa de lado certa normatividade do dissenso. Ele trabalha em alguns de seus textos com a necessidade de mobilização política341, assim como com a ideia de que o consenso não é desejável enquanto futuro-presente342. Só que classifica o dissenso como pressuposto fático de sua teoria e como decorrência automática das condições ideais do discurso; e não como um de seus objetivos.

A esse respeito, entendemos que, principalmente no contexto de desintegração da esfera pública e de colonização do Mundo da Vida, para tomar um diagnóstico próximo ao próprio Habermas, o dissenso não pode, de maneira alguma, ser trabalhado como risco.

We have dealt with two strategies that counter the risk of dissension and therewith the risk of instability built into the communicative mode of social reproduction in general: on the one hand, circumscribing the communicative mechanism and, on the other, giving this mechanism unhindered play.343

Mouffe não concorda com a proposta habermasiana, referida anteriormente, de consideração de todos os argumentos numa decisão política. Uma vez que, segundo ela, a decisão representará inevitavelmente um passo em direção a um projeto hegemônico, e que a fidelidade às decisões e instituições democráticas provêm das práticas políticas e da movimentação de paixões coletivas, sua proposta se põe aparentemente indiferente à orientação discursiva sobre o conteúdo das deliberações. Este ponto nos parece uma fragilidade da proposta de Mouffe, que ao tomar com radicalidade a oposição ao racionalismo e à discursividade, desampara o momento deliberativo como momento de construção de sentido. O conteúdo da deliberação, inobstante as diferentes formas de fidelidade institucional, é, ainda, relevante, apesar de ter suas limitações, como vistas a seguir.

A última percepção de Mouffe, que expõe os limites da discursividade habermasiana, também relevantíssima para trabalhar as atuais mobilizações no Brasil, é a de que a prevalência da racionalidade argumentativa pode gerar uma barreira à participação social por meio de manifestações e de demandas populares. Em suas palavras:

Under the pretense of rethinking and updating democratic demands, their calls for 'modernization', 'flexibility' and 'responsibility' disguise their refusal to consider the demands of the popular sectors which are !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

340 HABERMAS, 1996, p. 1494. 341 HABERMAS, 1986.

342 Rever citação da nota 36. 343 HABERMAS, 1998, p. 36.

excluded from their political and societal priorities.344

Esta crítica de Mouffe lança uma dúvida que nos permite refletir sobre a ocupação das ruas brasileiras em junho de 2013. Adiante, retomaremos esta crítica de maneira pontual, assim como o aspecto das limitações que o racionalismo discursivo impõe ao projeto de setores e grupos politicamente minoritários.

3.4. Conclusões Preliminares

Diante do debate aqui exposto, é possível extrair alguns posicionamentos relevantes dos autores a respeito do aprofundamento da democracia e do constitucionalismo. Extrairemos também algumas reflexões sobre ambas as perspectivas teóricas, elaborando uma análise dos pontos centrais.

Do lado habermasiano, tem destaque o papel constitutivo da interação política, cujo resultado não se resume à tradução de interesses e opiniões pré-concebidas, devendo ocorrer por meio do intercâmbio de argumentos. Habermas aponta que a criação de legitimidade e de poder comunicativo ocorre também fora dos espaços institucionais, abrangendo a construção de sentido na esfera pública.

Do lado de Mouffe, tem destaque o instrumental de mobilização das paixões coletivas e o realce do agonismo como elementos essenciais à democracia. Ao retirar o foco da legitimidade, Mouffe aborda as decisões políticas como frutos de relações de poder, imprimindo-lhes um caráter contingente e, inevitavelmente, excludente, de modo a facilitar sua superação e crítica. A esse respeito, Jezierska esclarece:

Here it is important to keep in mind that in the very logic of operation of hegemonies there are inscribed efforts to conceal their contingent status. A hegemonic position will always be presented as obvious. Nonetheless, in a democracy, the disruption of such a claim is purportedly easier as there are plenty of other counter-hegemonic claims. Additionally, the provisionality of any political solution is underlined by the consciousness of limits inscribed in every identity. Hence, I would say that in a democratic society the hegemonic position is more likely to be revealed as hegemonic.345

Além disso, de especial relevância num momento de mobilizações em que o discurso apartidário e apolítico ganha corpo, Mouffe argumenta que é necessária a construção !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

344 MOUFFE, 2000, p. 6-7. 345 JEZIERSKA, 2011, p. 200.

de subjetividades políticas divergentes. Segundo ela, os riscos do totalitarismo estão presentes no discurso de unidade e na intransigência com a diferença.

Deve-se destacar também a crítica que aponta para os limites da prática discursiva habermasiana. Determinados grupos sociais, excluídos em termos econômicos, sociais e culturais, são vulneráveis à coerção exclusiva do melhor argumento. A abordagem do espaço argumentativo como fruto de interrelações de poder e saber é essencial para perceber que sua hiper-valorização por Habermas pode levar à reprodução de desigualdades.

As teorias feministas somam-se à crítica de Chantal no sentido de que as estruturas da razão comunicativa impõem requisitos e meios que servem à reprodução de decisões e práticas machistas. Numa curiosa alusão ao contexto indiano, Mosse argumenta:

(women) have to clothe their ideas and encode their desires in particular ways to make them heard and accepted as legitimate in the public domain (...) But often, their particular concerns do not find place in the consensus.346

Segundo Kapoor, há grupos que não conseguem se expor de maneira adequada para gerar convencimento por motivos de sociais, culturais, de gênero, entre outros. Desse modo, ele questiona a proposta de uma democracia cujas decisões estão fundamentadas em bons argumentos: “Can they enable people to overcome entreched taboos and roles and arrive at universally satisfactory decisions?”347. Nos somamos a Kapoor em seu questionamento, e entendemos que o processo argumentativo nos termos postos por Habermas não dá conta das situações de exclusão do discurso. Isso gera ainda maior perplexidade se levamos em conta, por exemplo, as minorias étnicas e linguísticas, cuja participação num modelo racional argumentativo de matriz europeia seria, de um todo, incongruente com os imperativos do reconhecimento da alteridade de Outro.348

Semelhantes objeções podem ser feitas à questão do consenso. Há que se perguntar até que ponto os movimentos sociais e os grupos minoritários devem fundamentar sua práxis política numa normatividade abstrata voltada ao entendimento mútuo. A atuação estratégica de grupos no sentido de chamar atenção para um problema ou de se fazer ouvir por meio de atos de violência não nos parece a priori incompatível com a democracia, desde que tais estratégias estejam fundamentadas em razões políticas para a denúncia de violências e voltadas à superação das barreiras que lhes são impostas.

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346 MOSSE apud KAPOOR, 2002, p. 11. 347 KAPOOR, 2002, p. 12.

348 Em sentido semelhante, KAPOOR argumenta: “Thus, under conditions of Western hegemony, Habermas’s “impartial” procedures and “universally binding” communicative rationality may not be so neutral and universal after all; in fact, they may mask both Western hegemony and non-Western cultural extinction”. Ibid.

Diante disso, entendemos que a normatividade do consenso, apesar de estar inserida numa interação entre facticidade e validade, permanece, não obstante, demasiadamente abstrata. Ela não lida com as situações concretas de exclusão, com as condições de interação e com as desigualdades políticas das sociedades contemporâneas. Habermas reconhece que os pressupostos do discurso são impossíveis na prática, que não estão presentes na facticidade, mas não pensa de que forma isso pode interferir na normatividade da própria ação comunicativa e do consenso que deles deriva. Sua destranscendentalização ocorre em momento apenas posterior, tornando sua generalização normativa incompatível até mesmo com as respectivas premissas teóricas.

No que tange à divergência sobre consenso e dissenso, devemos salientar que ambos os autores reconhecem o enfoque do outro: Habermas assume ser o consenso indesejável enquanto futuro presente, reconhecendo a permanência do dissenso, e Mouffe reconhece o papel de um consenso mínimo sobre as instituições e os fundamentos da democracia liberal. Não obstante, como bem aponta Jezierska, cada um deles onotologiza respectivamente o consenso e o dissenso. Habermas estabelece uma normatividade universal do consenso como fruto da própria linguagem, e Mouffe diz que o antagonismo político é uma condição natural das relações humanas. Concordamos com Jezierska a esse respeito: não nos parece adequado ontologizar nenhum dos dois conceitos.

Também entendemos que Mouffe não consegue desenvolver nenhuma ideia sobre preceitos de unidade, integração e institucionalidade. Ela não apresenta perspectiva que dê sentido àquilo que caracteriza como “consenso mínimo”. Dessa incapacidade, perde-se, por exemplo, o papel e a autonomia do direito, que é trabalhado dentro da própria política.

Deve-se acentuar, além disso, o caráter reformista tanto da democracia procedimental habermasiana, quanto do pluralismo agonístico de Mouffe. Ambos fazem uso das instituições da democracia liberal para desenvolver suas propostas de democracia radical. Questionando essa visão, Zizek diz que Mouffe não consegue questionar o status quo, aceitando a democracia liberal do modo como está.349

As limitações dos autores nos permitem avaliar suas sugestões para o campo da democracia radical e repensar as práticas que deram ensejo às recentes mobilizações. De um modo ou de outro, as reflexões nos permitem visualizar algumas alternativas ao modelo de democracia representativa.

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