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3. ENTRE DEMOCRACIA PROCEDIMENTAL E PLURALISMO AGONÍSTICO

3.2. A Democracia Procedimental Habermasiana

3.2.4. Democracia Deliberativa

Os fundamentos da teoria do discurso e da teoria da ação comunicativa dão ensejo aos textos posteriores de Habermas, que traduzem suas proposições para o campo da política e do direito. Nestes, a ideia de quasi-transcendentalização do princípio de universalização (U) é traduzida na tensão entre facticidade e validade.

Para Habermas, o direito não se resume à lei ou aos fatos sociais300; ele deve estar

associado também, necessariamente, a uma pretensão de legitimidade301. Nesse sentido, a

conformidade com o direito não decorre apenas da obediência estratégica ou instrumental a um conjunto de normas e fatos, mas do respeito por sua legitimidade.

Diferentemente de como se pode conceber, à primeira vista, a ideia de legitimidade, segundo a qual a norma seria legítima a partir do real consenso comunicativo da sociedade a seu respeito, Habermas propõe uma percepção que interage entre facticidade e validade. A legitimidade, enquanto ideia regulativa, deve guiar o procedimento, de forma mediada, inserindo-a em determinado contexto histórico.

Ou seja, a compreensão da democracia procedimental é voltada para atores finitos, socializados em formas de vida concretas302.

Em suas palavras: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

298 HABERMAS, 2007, p. 40 e 41. 299 HABERMAS, 2007, p. 42 a 46.

300 Ele critica diretamente as teorias positivistas do direito e a teoria dos sistemas. Ver HABERMAS, 1998, p. 197 a 211 e 42 a 82.

301 HABERMAS, 1998., p. 1 a 28. 302 HABERMAS, 1998, p. 324.

The democratic procedure is institutionalized in discourses and bargaining processes by employing forms of communication that promise that all outcomes reached in conformity with the procedure are reasonable. (…) Deliberative politics acquires its legitimating force from the discursive socially integrative function only because citizens expect its results to have a reasonable quality.303

A aceitação coletiva da racionalidade (razoabilidade) dos resultados procedimentais provém da ideia de autonomia, tida por ele - numa derivação kantiana - como a capacidade de racionalmente produzir as próprias normas, de entender-se como autor do direito e das decisões sobre a vida comum304. Ou seja, as normas devem ser aceitas como produto racional da própria sociedade que as irá cumprir.

Também diante do pressuposto filosófico e sociológico de autonomia, Habermas deriva (1) a produção de poder comunicativo e (2) o respeito pelos direitos civis, sociais e políticos de todos.

No primeiro ponto (1), a sociedade civil ganha destaque como possuidora de poder comunicativo, devendo-se ultrapassar a perspectiva que restringe o poder de decisão ao espaço institucional para incluir espaços em que se reproduz a ação comunicativa (esfera pública).

No segundo ponto (2), referente ao respeito pelos direitos civis, políticos e sociais, destaca-se a ideia de cooriginariedade entre democracia e constitucionalismo, trabalhadas numa pressuposição mútua: de um lado, o constitucionalismo viabiliza a democracia por garantir que todos sejam livre e iguais para participar da vida social e política; de outro lado, a democracia atua na construção da lei e do próprio constitucionalismo, viabilizando sua legitimidade. Assim, para o autor, não se pode ter democracia sem constitucionalismo, e vice- versa305.

Desse modo, pode-se compreender o procedimento democrático, voltado a estabelecer um arcabouço consensual mínimo para o intercâmbio equitativo de argumentos. A ideia do procedimentalismo habermasiano é de que os argumentos apresentados no interior do arcabouço procedimental tendem a ser discutidos por diversas visões de mundo (dissenso), produzindo um momento constitutivo da política. Nas palavras de Habermas, em resposta às críticas de McCarthy:

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303 HABERMAS, 1998, p. 304. 304 HABERMAS, 1998, p. 120.

305 Isso não implica, porém, numa dinâmica definitiva e perfeita entre os dois. Constitucionalismo e democracia, novamente, são conceitos que devem ser compreendidos na relação entre facticidade e validade. O processo de aperfeiçoamento de ambos é tido para Habermas como um processo de aprendizagem autocorretivo (self- correcting learning process). HABERMAS, Constitutional democracy, a paradoxical union, 2001, p. 774.

Se tomamos o estado constitucional por uma ordem legítima, que por sua vez torna possível haver uma legislação legítima (...), e se entendemos “legitimidade” em um sentido não empirista, então supomos a possibilidade de um acordo mútuo não-violento quanto a questões políticas. Pois nesse sentido amplo só se pode ver o “acordo mútuo” como alternativa à imposição de um interesse mais forte, caso os envolvidos (...) aceitem por vontade própria os resultados de um debate político. Esse sentido amplo de acordo mútuo contempla convenções que se firmam ora pela livre expressão da vontade dos parceiros de negociação ou contrato, ora segundo regras livremente aceitas para se chegar a acertos (...). O que qualifica tal acordo mútuo como alternativa ao “uso da força” é o fato de os participantes, em última instância, abandonarem-se à força geradora de laços comunitários, a qual emana do discernimento atestado por via comunicativa e da liberdade de expressão da vontade assegurada institucionalmente (...). Não seria possível que os participantes se abandonassem a essa base comum, não fosse o fato de todos os cidadãos, pelas mesmas boas razões, poderem tomar como ponto de partida tanto a constituição, que instaura uma rede de processos legitimadores para se chegar ao acordo mútuo, quanto a suposição de racionalidade, que se vincula, ela mesma, a esses processo e instituições.306

Com seu procedimento voltado ao consenso, Habermas pretende extrair, portanto, a violência do momento de decisão. Ele busca encontrar uma forma de retirar-lhe o caráter excludente e de responder à pretensão de legitimidade que é característica do sistema jurídico. Diferentemente de Derrida, que enxerga o momento de decisão como um ato de loucura, um ato de inevitável violência e exclusão, Habermas propõe que inclusão e validade sejam buscadas contrafaticamente.307

Ocorre que para o mesmo Habermas a decisão passa a ser questionável logo em seguida. Segundo ele, a decisão significa a interrupção temporária do fluxo comunicativo, que ressurge posteriormente. Isto é, a decisão é sempre passível de questionamento, de reformulação; ela é contingente. Entretanto, nem por isso a decisão deixa de pautar-se na busca por sua própria legitimidade procedimental (agregadora de poder comunicativo).

O ressurgimento do debate sobre a legitimidade da decisão e a tentativa de convencimento a partir de argumentos vencidos e minoritários são vistos por Habermas como um conjunto de fenômenos guiados pelo consenso.

Se nós, como participantes de discursos políticos, não pudéssemos convencer outras pessoas, nem aprender com elas, a política deliberativa perderia seu sentido – e o Estado democrático de direito, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

306 HABERMAS, 2007, p. 324.

307 Aliás, sem adentrar aqui em detalhes, entendemos, como Benvindo, que há entre Habermas e Derrida relevante semelhança normativa. Ver BENVINDO, 2010, p. 336 a 345 e p. 358 a 362.

o fundamento de sua legitimação. Se os envolvidos – certamente dotados da consciência falibilista de poder errar a todo momento – tampouco tomassem como ponto de partida que os problemas políticos e jurídicos controversos podem ter para si uma solução “correta”, então a disputa política abrandaria seu caráter deliberativo e degeneraria a ponto de se tornar uma luta exclusivamente estratégica pelo poder. Sem estar orientados para o objetivo de uma solução de problemas passível de comprovação baseada em fundamentos, os participantes não saberiam de modo algum o que procurar.308

O sistema político de legitimação pretende viabilizar que as diferentes perspectivas sobre o problema sejam levadas em conta, que seus argumentos possam contribuir para o debate e seu conteúdo seja relevante para o resultado. Isto é, o momento de deliberação pública, para Habermas, não pode ser abstratamente indiferente ao conteúdo, surdo às manifestações contrárias, nem isolado de transformações durante a trajetória deliberativa.

Nesse sentido, a pretensão de legitimidade da decisão pressupõe que as propostas políticas lançadas no espaço deliberativo carreguem consigo o peso político de vincular a todos coletivamente. Assim, não bastaria que os resultados fossem uma expressão exclusiva de um modo de vida particular, de uma religião ou de uma um grupo pautada por razões excludentes; mas que tais resultados possam estar justificados discursivamente em razões com possibilidade de aceitação por todos.

Daí, o consenso habermasiano assume uma feição curiosa. Ele pode ser percebido de duas formas: a primeira, como uma pretensão de inclusão do outro, isto é, uma pretensão normativa de legitimidade, mas que reconhece sua impossibilidade e indesejabilidade concreta (falaremos a seguir); a segunda, de que o consenso é efetivamente desejável como resultado.

Conforme textos mais recentes de Habermas, o próprio autor diz ser o consenso indesejável enquanto futuro-presente, mas inafastável enquanto horizonte normativo, seguindo a primeira linha interpretativa. Em suas palavras:

What I find more disturbing is the fact that the expression "ideal speech situation," which I introduced decades ago as a shorthand for the ensemble of universal presuppositions of argumentation, suggests an end state that must be strived for in the sense of a regulative ideal. This entropic state of a definitive consensus, which would make all further communication superfluous, cannot be represented as a meaningful goal because it would engender paradoxes (an ultimate language, a final interpretation, a nonrevisable knowledge, etc.). As I !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

have learned from Albrecht Wellmer's criticism, n109 one must instead conceive the discursive redemption of validity claims (i.e., the claim that the conditions for the validity of a statement are fulfilled) as a metacritical, ongoing process of rebutting objections.309

Even if the ideal reference points are understood as aims that are not attainable in principle, or attainable only approximately, it remains ‘paradoxical that we would be obliged to strive for the realization of an ideal whose realization would be the end of human history’.310 Isto é, em textos mais recentes, principalmente após as críticas de Wellmer, Habermas parece reconhecer que a pretensão de consenso não é desejável de forma concreta. Ela é utilizada contrafaticamente para guiar o processo discursivo e eliminar as barreiras impostas à inclusão discursiva.

O acordo-mútuo mínimo, exclusivamente procedimental - um acordo sobre as regras do jogo e o respeito ao resultado -, mesmo não tendo como saldo o convencimento pelos argumentos, acaba se tornando, em nossa visão, um acordo sobre como lidar com as opiniões divergentes e produzir uma decisão política.