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4. VOZES SOBRE DIREITO E DEMOCRACIA: Uma Análise da Organização e do

4.2. Análise dos Aspectos Discursivos

4.2.1. Luta por Direitos Políticos: Vozes e Participação

Em resposta à hipótese geral levantada na introdução deste trabalho, de que há um processo de construção de direitos políticos nas manifestações, identificamos diversos elementos que a suplantam e confirmam. Adiantaremos, paralelamente a tal confirmação, a compreensão do conteúdo identificado sobre este processo, que é de aprofundamento do elemento participativo e, talvez, deliberativo. Isto confirma uma das hipóteses específicas formuladas na introdução, e afasta as outras duas. Dividimos esta exposição em quatro partes, formadas a partir dos elementos discursivos específicos apresentados no final do Capítulo 2.

4.2.1.1. Liberdade de Expressão e Ação Comunicativa

Conforme exposto no item 2.2.3.9, há uma transversalidade no discurso das convocatórias a respeito da luta por direitos, e, especificamente, da luta por liberdade de expressão e de manifestação. Também expusemos as derivações positiva e negativa deste discurso, associadas, de um lado, à repressão policial, e de outro, à capacidade de intervir nas decisões.

A liberdade de expressão é um dos pressupostos da teoria do agir comunicativo, associado à possibilidade de expressar argumentos na esfera pública que sejam levados a sério pelos interlocutores. Poder expor ideias é uma das condições do discurso, constituindo parte central do procedimento habermasiano. O mesmo vale para a liberdade de protestar. Ela é uma derivação da liberdade de expressão, com conteúdo ainda mais associado aos direitos políticos. Em ambos os casos, a existência desses direitos está atrelada à democracia. No caso sob exame, a luta por direitos demonstra uma faceta importante da relação entre constitucionalismo e democracia. A co-implicação entre ambos, segundo a teoria

habermasiana, assume que nenhum dos dois esteja completo, perfeito, terminado. Lutar por direitos, tal qual enunciado nas convocatórias, seria uma forma de aprofundar o constitucionalismo, e ao mesmo tempo, aprofundar a democracia.

A discursividade das convocatórias a este respeito não está associada aos mecanismos de decisão por meio da representação. A defesa da livre expressão e protesto tem como escopo a atuação direta do povo, que participa da construção de poder comunicativo na esfera pública, in casu, nas ruas e nas redes. Quando entendido ao lado da demanda para que as vozes sejam ouvidas, apontada no item 2.2.3.17, o conteúdo participativo do discurso dos protestos pela construção de direitos fica ainda mais claro. A mensagem é de que a voz do povo deve ser ouvida, conclamando do direito de participação e o poder influência nos processos decisórios. Não se trata de um discurso de validade limitada, em seu interior, de modo que não prospera a terceira hipótese específica formulada na introdução, de que se pretende apenas colocar o sistema liberal representativo de volta nos trilhos.

Vale delinear a compreensão dos direitos políticos que estamos utilizando aqui. Ela não se restringe à construção de normas num arcabouço eleitoral. Este último foi ao longo da história, o fronte mais relevante da disputa do conteúdo dos direitos políticos associados à expansão da democracia, como vimos na introdução. O que defendemos neste trabalho é que os direitos políticos não se restringem aos mecanismos de representação eleitoral, mas abarcam também os outros aspectos propostos na introdução e desenvolvidos no Capítulo 3. Assim, neste quesito, torna-se claro que o discurso das convocatórias aponta para a construção de direitos políticos, com conteúdo participativo.

4.2.1.2. Associação entre Participação e Mudança

Um segundo elemento discursivo presente nas convocatórias diz respeito à associação entre participação e mudança. Como introduzido no item 2.2.3.14, as convocatórias expõem o discurso horizontal de que a mudança é alcançada por meio da participação. Ela não é fruto do processo eleitoral, nem da vitória de determinado grupo político a reocupar o espaço institucional. A mudança depende da intervenção do próprio povo nas ruas, que expõe suas demandas e os descaminhos do Estado, dos políticos e dos partidos. É uma forma diferente de enxergar a relação entre Estado e sociedade civil no modelo liberal representativo; a qual, do ponto de vista de construção de legitimidade, não se resume ao momento eleitoral.

Outro discurso semelhante a este é de que a participação, além de ser um mecanismo de mudança, é também um dever cívico (item 2.2.3.15). Esta é uma postulação do republicanismo, que encontra relevância por atribuir ao cidadão não apenas o direito político de cunho participativo, mas o dever compartilhado. Novamente, não se trata de um discurso com prazo de validade interno, formulado como intervenção urgente direcionada à normalidade anterior. Em ambos os discursos que permeiam as convocatórias para os atos, e que estão profundamente associados entre si, pode-se identificar a construção de direitos políticos de cunho participativo.

Além disso, pode-se vislumbrar também um elemento deliberativo no discurso. As vozes das convocatórias que conclamam atenção pretendem ser ouvidas, ainda que a maioria dos representantes eleitos tenham um posicionamento pessoal ou partidário divergente. O pleito por respeito à liberdade de expressão e de protesto pressupõe que a expressão e o protesto, em espaços não institucionais, podem interferir nas decisões tomadas em espaços deliberativos, isto é, que as razões e a pressão exercida são relevantes para o convencimento e a tomada de decisão. De outro lado, porém, a discursividade contrasta, em alguma medida, com o desenvolvimento dos atos, descrito no item 1.2 deste trabalho, em que associamos o declínio dos protestos também a introdução de um momento mais deliberativo, em que o intercâmbio de argumentos sobre as demandas fez arrefecer o movimento inicial majoritariamente guiado por emoções. Dessa forma, o elemento deliberativo pode estar presente no discurso, de forma implícita, a partir dessa dedução interpretativa de que a atuação direta deve ser levada em conta argumentativamente nos espaços de decisão. Porém, isto não conduz a uma identificação fortemente fundamentada deste elemento, que não aparece de forma explícita nos discursos e não é contraposto de forma sólida por outra tendência.

4.2.1.3. Oposição Povo X Estado, Políticos e Partidos.

Um terceiro elemento discursivo, identificado no item 2.2.3.4, é o que constrói a identidade do povo a partir de sua diferenciação do Estado, dos partidos e dos políticos. Ele é o critério que confere unidade ao povo. A crise de representatividade é tida como prejudicial a todos do povo, sem exceção, que se unem como um só para demonstrar seu descontentamento. A unidade das demandas, criada de forma metalinguística nas convocatórias, está associada à falta de representatividade dos entes públicos e dos políticos.

A mesma perspectiva pode ser compreendida a partir do elemento específico que veicula o apartidarismo dos atos. Há quem o compreenda como uma negação da política, em sentido amplo. Porém, as vozes recorrentes que demandam atenção e liberdade de expressão não são, nem pretendem ser em seu conjunto apolíticas. Negar participação aos partidos num ambiente em que a identificação do povo é feita a partir de sua diferença com o Estado e os políticos tem significados que vão além da simples incompreensão do papel dos partidos numa democracia. Isso demonstra que a produção de legitimidade e de poder comunicativo se dá também com a participação da sociedade civil; ela não é exclusividade das estruturas partidárias. A sociedade civil diz em alto e bom som que merece ser ouvida sobre as decisões do país, ainda que não esteja engajada em estruturas partidárias.

Novamente, nota-se que está presente na discursividade dos protestos a construção de direitos políticos de conteúdo participativo, indo além dos espaços formais de representação para envolver também a esfera pública.

4.2.1.4. Assembleias no Espaço Público Urbano e Digital

Em quarto lugar, conforme indicado no item 2.2.3.8, uma parte das convocatórias fez menção a assembleias e reuniões para organização e construção das pautas dos protestos. Como apontamos anteriormente, o discurso sobre tais assembleias não foi majoritário, possuindo menor transversalidade se comparado aos demais, supra e inframencionados. Não obstante, a presença de espaços de deliberação abertos não deixa de ser relevante para a análise do atos, inobstante sua ocorrência setorial. É um discurso que contrasta, sem dúvida, com a ideia sedimentada na maioria das convocatórias de que as pautas já estavam dadas. Como vimos, a unidade de pautas, apesar de divergir de nosso marco teórico - como será apontado adiante -, está atrelada, ainda assim, à construção de direitos políticos em sentido participativo e, reflexamente, deliberativo. A elaboração de assembleias, não se contrapõe a esta tendência derivada do discurso de unidade; apenas assume que é preciso criar espaços alternativos de deliberação durante as próprias manifestações. Esta observação, aliás, poderia vir junto da análise formal dos protestos, por tratar da forma de organização dos atos e seu conteúdo simbólico; porém, este elemento foi identificado apenas através do discurso e merece as considerações adequadas neste sentido.

As assembleias somam-se à construção em rede de posicionamento, descrita no item 4.1.1. Elas introduzem um modelo de organização que amplia o espaço de decisão formal dos próprios atos, no campo digital e/ou urbano, envolvendo toda a sociedade civil.

Tais espaços são tidos como destinados à construção aberta e direta, sem necessidade de representação, e seus resultados pretendem-se fundamentar no intercâmbio de argumentos.

Desse modo, este quarto elemento, apesar de ir de encontro à proposta de unidade de pautas, contribui para o sentido identificado de construção de direitos políticos de cunho deliberativo e participativo.