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3. ENTRE DEMOCRACIA PROCEDIMENTAL E PLURALISMO AGONÍSTICO

3.2. A Democracia Procedimental Habermasiana

3.2.2. Razão e Ação Comunicativa

A partir das inquietações surgidas no diagnóstico da esfera pública burguesa, e da vontade de propor uma reestruturação desse campo, Habermas escreve o livro Teoria da Ação Comunicativa, cujo objetivo é desenvolver uma teoria pós-metafísica da ação e da racionalidade. A questão que ele pretende enfrentar é a seguinte: existe uma semente racional na modernidade que pode ser utilizada como fundamento de crítica para as patologias das sociedades contemporâneas?283 Neste aspecto, para bem entender o universalismo pretendido por Habermas mais adiante e o sentido do consenso, descreveremos a seguir alguns pontos da teoria do agir comunicativo que se mostram indispensáveis à compreensão da democracia procedimental.

Com base em Weber, Habermas argumenta que a racionalidade moderna pode levar ao progresso das condições materiais de vida, mas leva, nos moldes como está posta, ao desencantamento e à alienação com relação ao outro284. Seu objetivo com a teoria da ação comunicativa é de encontrar uma saída para o paradoxo da racionalidade moderna sem desistir da própria racionalidade285.

Sua resposta ao problema, semelhante à dos autores do giro linguístico, é uma mudança para uma visão intersubjetiva da filosofia do sujeito, que identifica nas relações sociais um tipo diferente de racionalidade: a razão comunicativa. Diz Habermas:

Ahora bien, el núcleo racional de estas operaciones miméticas sólo podría quedar al descubierto si se abandona el paradigma de la filosofía de la conciencia, es decir, el paradigma de un sujeto que se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

282 HABERMAS, 1984, p. 202 a 213. 283 HABERMAS, 1999, p. 10. 284 HABERMAS, 1999, p. 381 a 416. 285 HABERMAS, 1999, p. 197 a 205.

representa los objetos y que se forma en el enfrentamiento con ellos por medio de la acción, y se lo sustituye por el paradigma de la filosofía del lenguaje, del entendimiento intersubjetivo o comunicación, y el aspecto cognitivo-instrumental queda inserto en el concepto, más amplio, de racionalidad comunicativa.286

Ele encontra na comunicação uma fonte de racionalidade e emancipação que não é transcendente em sentido tradicional, como as ideias de Deus e Natureza, mas quasi- transcendental, por estar inscrita nos atos de fala cotidianos. Habermas reconstrói as competências comunicativas que são comuns para todas as línguas e indivíduos, aquilo que os torna agentes capazes de participar em atos de comunicação, independentemente da língua. Para isso, faz uso da distinção austiniana entre os diferentes aspectos dos atos de fala: discurso locucionário (que expressa um estado de coisas no mundo), ilocucionário (que constitui um estado de coisas no próprio ato de fala, como no caso de uma promessa) e perlocucionário (constitutivo de um efeito através da linguagem, posteriormente ao ato de fala)287.

Ele identifica no aspecto ilocucionário dos atos de fala uma semente para a relação normativa entre dois interlocutores. Segundo Habermas, para que o aspecto ilocucionário funcione, isto é, para que o objetivo da mensagem em si, que é a comunicação, seja atingido, o ato de fala deve ser transparente, voltado ao entendimento mútuo. Sem isso, o interlocutor não entenderá a mensagem do locutor e o ato de comunicação será quebrado288.

Habermas pretende demonstrar que, em função da própria estrutura da linguagem, devemos nos dirigir para o entendimento mútuo. Assim, por exemplo, mesmo que haja um importante aspecto perlocucionário no ato de fala, o interlocutor não pode fugir de seu sentido ilocucionário, do contrário, a mensagem não é transmitida289.

Para a teoria da ação comunicativa, todo ato de fala voltado ao entendimento mútuo contém três pretensões de validade, sendo uma preponderante em cada ato específico. São pretensões de validade: a verdade (mundo objetivo, externo), a retidão (rightness, mundo social, intersubjetivo) e a autenticidade/sinceridade (a possibilidade de expressar aquilo que se quer expressar, mundo subjetivo).

Diante dessa distinção, o autor identifica quatro modelos de ação, que separamos a seguir conforme sua orientação (ao entendimento/ao êxito)290:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 286 HABERMAS, 1999, p. 497. 287 HABERMAS, 1999, p. 371 a 380. 288 HABERMAS, 1999, p. 372 a 374. 289 HABERMAS, 1999, p. 373 e 394. 290 HABERMAS, 1999, p. 420.

1 – a ação orientada ao entendimento (comunicativa), caracterizada pelos três modelos de pretensão de validade (verdade, retidão e sinceridade).

A - a ação guiada por normas, cujo fim é o mundo intersubjetivo, caracterizado pelo aspecto de retidão ou legitimidade;

B - a ação dramatúrgica, voltada ao mundo subjetivo e caracterizada pela verossimilhança, sinceridade;

C - a ação teórica (conversação), voltada ao mundo objetivo, de caráter constatativo e caracterizada pelo aspecto de verdade;

2 – a ação estratégica, orientada ao êxito, voltada ao mundo objetivo e regulada por uma pretensão de eficácia.

Neste ponto, Habermas dá atenção à diferença essencial entre ação estratégica e ação comunicativa. Enquanto a primeira está voltada à efetividade teleológica (finalística) nos mundos natural e social, a segunda está voltada ao entendimento mútuo. Em outras palavras, a ação comunicativa é um modelo segundo o qual é possível entender as razões dadas pelo interlocutor para suas pretensões normativas e entender porque elas podem ser boas razões. Ela conduz à tomada de posição pelos interlocutores sobre as pretensões normativas discutidas291. Vale salientar que, para Habermas, não é preciso adentrar faticamente em tal

tipo de discurso, mas assumi-lo contrafaticamente. A título exemplificativo, uma vez questionada a pretensão normativa de um ato de fala, engaja-se na argumentação em que participantes discutem tal pretensão e pretendem confirmá-las ou criticá-las através de outros argumentos.

São critérios para configurar a ação comunicativa: a inclusão de todos os afetados, a força exclusiva do melhor argumento e a sinceridade dos participantes na argumentação. Em outras palavras, na ação comunicativa não deve haver nenhum constrangimento interno ou externo que não seja a força do melhor argumento292.

Contrafaticamente, o resultado normativo do discurso racional será um consenso racional, para o qual todas as pessoas possivelmente afetadas podem assentir como participantes no discurso racional293. O consenso racional é conectado com a ação comunicativa, ambos em sentido contrafático. Eles funcionam como ideias regulativas, pressuposições idealizadas, mediatizadas na facticidade de cada ato de fala.

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291 HABERMAS, 1999, p. 391 a 407. 292 Habermas, 1993, p. 163.

Para Habermas, essa é a única maneira de integrar as sociedades pacificamente a longo prazo, uma maneira que não está sustentada em manipulação e violência. A grande preocupação do autor é a de que as decisões não sejam fruto de uma manipulação estratégica de uns sobre outros, devendo ser, contrastadamente, fruto de poder comunicativo, gerado a partir do fluxo de argumentos.

Nesse ponto, cabe recuperar a distinção entre ação instrumental/estratégica e ação comunicativa. Esta última, a ação comunicativa, seria uma ação livre de manipulação e violência. Sem a ação comunicativa, a crítica da própria manipulação e violência estaria inscrita num ato também estratégico, necessariamente de manipulação e violência. Vale manter essa ideia em mente, uma vez que ela será importante adiante com a introdução das críticas de Chantal Mouffe.