• Nenhum resultado encontrado

3. ENTRE DEMOCRACIA PROCEDIMENTAL E PLURALISMO AGONÍSTICO

3.3. As Críticas de Chantal Mouffe e o Pluralismo Agonístico

3.3.2. A resposta não é “racional”; é política

A primeira crítica desenvolvida por Mouffe a Habermas direciona-se à pretensão de recuperação da razão enquanto proposta epistemológica. Partindo de uma tradição pós- estruturalista, Mouffe acentua o caráter político das ideias de Habermas e pretende desmascarar a racionalidade comunicativa como critério apolítico de decisão.

Nesse sentido, critica a proposta habermasiana que associa democracia e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

315 Sobre a emergência do agonismo na teoria jurídica e política contemporânea, ver SCHAAP, 2009. 316 FOUCAULT apud KALYVAS, 2009, p. 16.

317 Em suas palavras: “liberal democracy requires consensus on the rules of the game, but it also calls for the constitution of collective identities around clearly differentiated positions and the possibility of choosing between real alternatives. This ‘agonistic pluralism’ is constitutive of modern democracy and, rather than seeing it as a threat, we should realize that it represents the very condition of existence of such democracy.” MOUFFE, 2005, p. 4.

À ideia de alternativas políticas Mouffe associa a binariedade dos códigos sistêmicos da teoria de Niklas Luhmann. É na apresentação de diferentes direções para o jogo político, binariamente em cada tema, que se constroem alternativas. A esse respeito, ver MOUFFE, 2005, p. 5.

liberalismo de forma co-originária. Segundo ela, além de desconsiderar a tensão intrínseca entre as duas tradições, a proposta de resolver a questão conforme preceitos de racionalidade põe fim ao debate público e mascara seu conteúdo político319.

A autora manifesta incômodo com imperativos de racionalidade e moralidade, entendendo que não é papel dos intelectuais impor limites racionais para uma questão que, em sua visão, é política.

The solution to our current predicament does not reside in replacing the dominant “means/ends rationality” by another form of rationality, a “deliberative” and “communicative” one.320

Isto é, ela não identifica o problema em uma forma de racionalidade.

This is not a matter of rational justification but of availability of democratic forms of individuality and subjectivity. By privileging rationality, both the deliberative and the aggregative perspectives leave aside a central element, which is the crucial role, played by passions and emotions, in securing allegiance to democratic values. 321

Assim, Mouffe diz observar a partir das paixões e emoções a atuação dos sujeitos e sua obediência a valores democráticos. Para a autora, a interação dos sujeitos com os valores democráticos não se dá sobre um arcabouço racional de justificação, mas em formas concretas de individualidade e subjetividade. Por essa razão, repreende a abstração dos cidadãos como indivíduos existentes antes da sociedade, como sujeitos numa etapa pré- política em que seriam abstraídos das relações sociais de poder, de linguagem, cultura, etc.

Ou seja, ela critica Habermas por trabalhar com sujeitos ditos “pré-políticos”. Seria como se, em sua própria teoria, Habermas atribuísse aos indivíduos uma condição racional abstrata que foge de sua identidade de carne e osso, de sua concretude linguística e social. E que, portanto, “what is precluded in these rationalistic approaches is the very question of what are the conditions of existence of the democratic subject”.322

Essa crítica acentua as diferenças filosóficas e de arcabouço conceitual entre os autores. Enquanto Habermas provém da tradição filosófica da teoria crítica e pretende fazer uma reconstrução do papel da racionalidade e da própria modernidade, Mouffe representa uma vertente desconstrutivista, com forte influência de Derrida323. Assim, o diferente enfoque sobre racionalidade na teoria de Habermas e a consequente exportação desse racionalismo do campo teórico e estrutural para os sujeitos são objetos de análise relevantes.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

319 MOUFFE, 2000, p. 31-21 e 48-49. 320 MOUFFE, 2000, p. 95.

321 MOUFFE, 2000, p. 95. Destaque nosso. 322 MOUFFE, 2000, p. 95-96.

The view that I want to put forward is that it is not by providing arguments about the rationality embodied in liberal democratic institutions that one can contribute to the creation of democratic citizens. The constitution of democratic individuals can only be made possible by multiplying the institutions, the discourses, the forms of life that foster identification with democratic values.324

Assim, primeiramente, ao ter como guia a potencialização das formas de socialização democráticas, abrangendo paixões e valores, Mouffe aponta para uma relevantíssima ponte de aprofundamento da democracia. A busca por instrumentos concretos que incentivam as formas de vida democráticas e a mobilização de paixões para o campo político constituem relevantes aspectos que vão além de quesitos institucionais e argumentativos.

Nos escritos de Habermas esses aspectos também estão presentes, mas não assumem lugar de destaque, como se pode ver no seguinte trecho:

To be sure, the normative expectation of legitimate lawmaking is primarily linked with the communicative arrangement and not with the competence of the participating actors (even though the procedures and processes are not self-supporting but must be embedded in an open political culture). 325

Isto é, Habermas não assume, como o faz Mouffe, a tarefa de formar “subjetividades democráticas”. Como ele mesmo diz, deve-se produzir uma organização comunicativa que potencializa o intercâmbio de argumentos e reforça a pressuposição pelos cidadãos de racionalidade das decisões. Habermas tem como elemento central a racionalidade das decisões e a inclinação dos atores para a concessão racional de legitimidade normativa (ainda que tácita).

Apesar da crítica ao estabelecimento de padrões externos ao jogo político, de hierarquias entre os valores liberais e republicanos, devemos assinalar que a própria Mouffe recorre a condições gerais da democracia, a requisitos valorativos “mínimos”, perceptíveis nas construções discursivas de “instituições liberais-democráticas”, “valores democráticos”, “liberdade e igualdade”, entre outros. Ou seja, apesar de criticar as limitações racionalistas de Habermas ao jogo político, Mouffe também elabora critérios que permitem, por exemplo, a transformação de antagonismo em agonismo, e de inimigos em adversários. Não obstante, esses são critérios assumidamente políticos. O distanciamento do racionalismo de Habermas é relevante por dar centralidade ao conteúdo político e hermenêutico de sua formulação !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

324 MOUFFE, 2000, p. 96. Destaque nosso. 325 HABERMAS CARDOZO p. 1481.

discursiva. Esse entendimento será retomado na conclusão.