COMPONENTES DA COMPETÊNCIA SOCIOCULTURAL Celce-Murcia et al (1995)
CAPÍTULO 3: Consideração sobre os programas de PLE na ótica do desenvolvimento da competência comunicativa intercultural
Language shapes the way we think, and determines what we can think about.
Benjamin Lee Whorf (1956)
Este capítulo pretende apresentar uma análise dos programas de PLE presentemente adotados pela FLUP para os níveis A1.1, A1.2, A2.1, A2.2, B1.1, B1.2, B2.1, B2.2, C1.1, C1.2, C2.1 e C2.2 no que diz respeito ao desenvolvimento da competência comunicativa intercultural.15
De modo a completar todos os níveis de aprendizagem previamente enunciados, serão necessários seis semestres. Contudo, na realidade essa situação nem sempre se verifica, uma vez que, a título de exemplo, o nível A1.2 se destina aos alunos estrangeiros que estão a iniciar o estudo da Língua Portuguesa e que têm como língua materna uma língua românica, como o espanhol, o italiano ou o romeno ou de outras línguas maternas, com algum conhecimento prévio sobre a Língua Portuguesa, iniciando a sua aprendizagem nesse nível. Noutra situação, mediante a realização de um teste diagnóstico com uma componente escrita e oral, um aprendente tem a possibilidade de iniciaar ou prosseguir os seus estudos, avançando o nível imediatamente superior. Os níveis usados na designação dos programas de PLE ou PL2 provêm do QECR (Conselho da Europa, 2001). Numa escala global, podemos condensar os níveis comuns de referência postulados pelo QECR (idem, ibidem) no quadro 14.
15
Os referidos programas não foram anexados pelo facto de se encontrarem em reformulação.
NÍVEL C C2 (C2.1, C2.2) É capaz de compreender quase tudo o que lê e ouve sem esforço.
É capaz de se exprimir de forma espontânea com fluência e correção.
C1 (C1.1, C1.2) É capaz de compreender textos longos, complexos e ambíguos.
É capaz de se exprimir de forma espontânea com fluência e correção.
NÍVEL B B2 (B2.1, B2.2) É capaz de compreender as ideias gerais de textos relativamente longos e complexos.
É capaz de se exprimir de uma forma relativamente espontânea.
B1 (B1.1, B1.2) É capaz de compreender as ideias gerais no caso da utilização de uma linguagem clara e de estruturas familiares.
É capaz de produzir um discurso relativamente simples, embora coerente sobre diversos assuntos com os quais está familiarizado. NÍVEL A A2 (A2.1, A2.2) É capaz de compreender estruturas simples
sobre assuntos de cariz pessoal ou relativamente familiares.
É capaz de comunicar em tarefas simples no âmbito da troca de informações sobre assuntos pessoais, familiares e habituais.
A1
(A1.1, A1.2)
É capaz de compreender enunciados simples isolados.
É capaz de dar informações de cariz pessoal de forma lenta e pausada e de interagir nessa mesma base e de realizar tarefas acerca do seu quotidiano.
Quadro 14: Níveis de referência gerais (adaptado do QECR, Conselho da Europa, 2001).
Esta panorâmica serve como introdução aos perfis de saída do que é esperado de um aprendente que frequente estes níveis. Contudo, apesar de concordarmos com a designação atribuída à maioria do níveis de referência gerais, consideramos que, especialmente no que concerne ao nível do utilizador elementar (nível A), o aprendente consegue ir muito mais além do que a mera compreensão de enunciados simples e isolados, sendo capaz de compreender estruturas simples sobre assuntos de cariz pessoal
ou relativamente familiares e de comunicar em tarefas simples no âmbito da troca de informações sobre assuntos pessoais, familiares e habituais. No entanto, ressalvamos que depende da língua materna de origem e dos hábitos de aprendizagem anterior dos aprendentes.
Estando cientes do facto de que os princípios fundamentais do QECR (Conselho da Europa, 2001) se baseiam num processo de ensino-aprendizagem centrado no aprendente enquadrado no âmbito de uma abordagem comunicativa intercultural e que a componente (inter)cultural se insere no âmbito das competências gerais de dimensão cultural, nomeadamente quando "o conhecimento, a consciência e a compreensão da relação (semelhanças e diferenças distintivas) entre “o mundo de onde se vem” e “o mundo da comunidade-alvo” produzem uma tomada de consciência intercultural." (Conselho da Europa, 2001: p. 150), numa aula de LE, o objetivo fulcral é dotar os aprendentes de competências a nível linguístico, discursivo e pragmático que lhes permitam interagir de uma forma culturalmente adequada e eficaz em diferentes situações do quotidiano através do desenvolvimento das quatro macrocapacidades recetivas (ler e ouvir) e produtivas (escrever e falar).
Os temas culturais devem ser trabalhados de forma a promover uma análise contrastiva e uma reflexão crítica entre as mundividências dos aprendentes conducentes a atitudes de respeito e empatia pela compreensão dos pontos de vista do Outro.
Apesar de estes fundamentos perpassarem todos os níveis de aprendizagem, partimos do pressuposto prévio à análise dos referidos programas de que a competência linguística como subcomponente da competência comunicativa intercultural tanto pode ser perspetivada como um entrave como uma mais-valia, na medida em que um nível linguístico mais incipiente pode bloquear a criação de pontes interculturais. Vejamos, de seguida, se este pressuposto se mantém mediante a análise dos referidos programas. Os programas para os níveis A1.1 e A1.2 são muito semelhantes, exceto nos conteúdos gramaticais mais reduzidos para o primeiro nível. Em ambos os níveis, o aprendente deve ser capaz de compreender e utilizar estruturas familiares do quotidiano, interrogar e produzir enunciados simples sobre questões do foro pessoal e interagir com um interlocutor de uma forma pausada. No âmbito dos conteúdos temáticos, não se verificam quaisquer diferenças. Por se basearem essencialmente na realidade sociocultural do aprendente com a qual lida no seu quotidiano, consideramos que os temas listados pertencem à baixa cultura (quadro 15).
Conteúdos Temas
Relações socioculturais Formas de tratamento
Fórmulas rituais …
O conhecimento do mundo Profissões
Nacionalidade Família
Casa / partes / mobiliário Refeições
Transportes
Ocupação de tempos livres Partes do corpo Dias da semana Partes do dia Horas Meses do ano Férias / viagens Alimentação Cidades / trajetos Serviços / lojas Vestuário …
Quadro 15: Conteúdos temáticos para os níveis A1.1 e A1.2
A partir do nível A2, não se verifica uma diferença na questão dos descritores previamente referidos para os níveis elementares, embora possamos constatar que existe um claro alargamento dos conteúdos gramaticais mas também uma passagem de uma visão bastante etnocentrista para uma ligeira troca de impressões do conhecimento do mundo menos centrada na figura do Eu (quadro 16).
Conteúdos Temas
Relações socioculturais Formas de tratamento (formais e
informais) Fórmulas rituais
Contactos da vida social; experiências pessoais; centros de interesse
O conhecimento do mundo Profissões
Relações familiares Estudos
Ocupação dos tempos livres Centros de interesse
Transportes
Alojamento (hotéis, pensões…) Alimentação
Comércio Férias / viagens
Serviços de saúde (hospitais, centros de saúde, consultório…)
Serviços públicos …
Quadro 16: Conteúdos temáticos para os níveis A2.1 e A2.2
No nível B, o aprendente já será capaz de participar ativamente em conversas, debates sobre assuntos menos correntes e mais afastados do seu quotidiano, sobre os quais contribuirá com a sua opinião de uma forma argumentativa.
A partir do nível B, os textos usados para a prossecução dos objetivos referidos devem ser apenas autênticos de caráter informativo ou opinativo sobre aspetos da cultura portuguesa, incluindo, a título de exemplo, artigos de jornais, revistas, programas de televisão ou de rádio (quadro 17).
Conteúdos Temas
Relações socioculturais Formas de tratamento (formais e
informais)
Fórmulas rituais (formais e informais) Contactos da vida social; experiências pessoais;
Relações entre povos Grupos religiosos Grupos políticos
O conhecimento do mundo - Vida quotidiana
Refeições / maneiras à mesa Feriados
Horários / hábitos de trabalho
- As condições de vida
Nível de vida e custo de vida Cobertura da Segurança Social
- Relações interpessoais Relação entre sexos
Estruturas e relações familiares Relações no trabalho - Convenções sociais Pontualidade Vestuário Bebidas / refeições Serviços públicos …
Quadro 17: Conteúdos temáticos para o nível B1
Apesar de o programa de PLE para o nível B fazer uma diferenciação em termos de conteúdos temáticos para os níveis B1 e B2, na prática, os aprendentes que frequentam
estes níveis pertencem à mesma turma por uma questão de organização logística da instituição. Não é um facto imputável ao QECR (Conselho da Europa, 2001) e, desta forma, acreditamos que não é possível abordar os temas de ambos os níveis de uma forma estanque.
No nível B2, verifica-se uma maior primazia dada a temas de caráter sociocultural específicos da cultura portuguesa, sendo gradualmente minimizados aspetos da baixa cultura (quadro 18), visto que as referências culturais deixam de se restringir ao mundo que gira exclusivamente à volta do Eu, nas suas rotinas, interesses e utilidades para se focar em assuntos da atualidade e de referências culturais do país alvo.
Conteúdos Temas
Relações socioculturais Formas de tratamento
Fórmulas rituais (formais)
Contactos da vida social; experiências pessoais
O conhecimento do mundo Géneros musicais (fado de Coimbra e de
Lisboa, música moderna…)
Os meios de comunicação (rádio, televisão, imprensa)
Publicidade Cinema Literatura
Pontos de referência da história portuguesa recente (o 25 de Abril)
Grupos socioprofissionais Identidade regional
Tradição e mudança social Instituições
Quadro 18: Conteúdos temáticos para o nível B2
No nível C, o aprendente deverá ser capaz de compreender textos mais longos, complexos e abstratos de variadas tipologias textuais, inferindo possíveis sentidos
ocultos ou ambiguidades. Tanto a nível oral como escrito, o aprendente deverá demonstrar correção linguística na expressão do seu discurso. Neste nível, verifica-se a mesma situação do nível B acerca da junção de aprendentes de nível C1 e C2 .
No nível C1, para além da necessidade de o aprendente se expressar com correção, espontaneidade e fluência, demonstrando coesão e coerência no seu discurso, a nível cultural verifica-se curiosamente uma supremacia de temas que consideramos pertencentes à baixa cultura. Neste nível, verifica-se uma introdução a conhecimentos do mundo lusófono. O aprendente deverá precisamente aprender a distinguir variantes da língua portuguesa (quadro 19).
Conteúdos Temas
Relações socioculturais Formas de tratamento
Fórmulas rituais (formais)
Contactos da vida social; experiências pessoais
O conhecimento do mundo Acontecimentos familiares
Organismos públicos Associações cívicas Culturas regionais
Minorias (étnicas e religiosas) Manifestações
Humor
Artes (música, artes visuais, literatura, teatro)
Relações com outros povos
Pontos de referência da história de Portugal
Relações com os países da lusofonia
Quadro 19: Conteúdos temáticos para o nível C1
No nível C2 (quadro 20), os aprendentes deverão conseguir adequar o seu discurso socioculturalmente, tendo igualmente em conta os registos de língua, fazendo uso de
expressões idiomáticas, provérbios e figuras de estilo. Grosso (2011: p. 11) diz-nos que "neste sentido, a história de um país, as normas sociais e os fundamentos históricos da sociedade não são somente fatores necessários para compreender a cultura, mas possibilitam também que o público-aprendente use a língua de forma mais adequada."
Conteúdos Temas
Relações socioculturais Formas de tratamento
Fórmulas rituais (formais)
Contactos da vida social; experiências pessoais
O conhecimento do mundo Humor
Artes (música, artes visuais, literatura, teatro)
Literatura popular (lendas, fábulas, provérbios)
Pontos de referência da História de Portugal
Usos e costumes
Países estrangeiros, estados, povos Educação
Sistema político (Constituição da República Portuguesa)
Quadro 20: Conteúdos temáticos para o nível C2
Apesar de, em geral, concordarmos com distribuição temática pelos diferentes níveis e respeitarmos a abordagem em sala de aula dos conteúdos listados, consideramos que a abordagem dos referidos temas não pode ser exclusiva de um determinado nível. Após a análise dos conteúdos temáticos para cada um dos níveis de aprendizagem segundo o QECR (Conselho da Europa, 2001), apontamos uma clara omissão de aspetos maioritariamente relacionados com a alta Cultura, especialmente nos níveis intermédio e avançado, nomeadamente:
- perceções e suposições;
- expectativas e motivações;
- atitudes e comportamentos;
- normas e regras de conduta;
- estilos comunicativos, de aprendizagem e de personalidade;
- conceções e ideais;
- valores e crenças;
- papéis sociais e relações de poder;
- tabus.
Em função dos conteúdos programáticos analisados e dos aspetos da alta Cultura que consideramos essenciais incluir, gostaríamos de propor uma esquematização programática baseada no modelo do icebergue que contemple os diferentes níveis de aprendizagem segundo o QECR (Conselho da Europa, 2001).
Com efeito, a figura representada no número 64 traduz o panorama geral dos conteúdos programáticos divididos em baixa e alta Cultura.
Os conteúdos que ultrapassam a ponta do icebergue correspondem ao nível A1 e A2, sem distinção de nível. O núcleo do icebergue acima do nível da água traduz-se na importância visível e transversal a todos os níveis de aprendizagem que desempenham as formas de tratamento, os rituais de saudação, despedida, entre outras, como estabelecimento de relações interpessoais bem-sucedidas. "À deriva" colocámos conteúdos como os géneros musicais, os meios de comunicação, apontamentos da história de Portugal, culturas regionais, etc., na medida em que não os consideramos exclusivos de serem apenas abordados a partir do nível B.
Num nível imediatamente abaixo da linha de água, reservámos conteúdos relacionados com as Artes, a História, a Sociedade, embora os conteúdos submersos fora do icebergue possam facilmente vir à tona e reenquadrados num nível mais elementar. A base do icebergue deveria estar revestida de aspetos da alta Cultura que possam verdadeiramente conduzir a um grau de aprofundamento da competência comunicativa intercultural (figura 64).