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Considerações finais

No documento Download/Open (páginas 135-141)

Antes de abordar diretamente os resultados desta pesquisa, é importante destacar que este trabalho não questiona e não nega o caráter mercantilista da indústria cultural, pois entende que se trata de atributo intrínseco à própria indústria cultural. Também não compartilha da visão pessimista com relação à indústria cultural, apesar de reconhecer que entre as consequências decorrentes deste processo está a convergência dos dois tipos de arte [superior e inferior] nos meios de massa o que prejudica a ambas, porque, segundo Adorno (1975) tanto enfraquece a arte erudita quanto a popular. Ou seja, a cultura que emerge da indústria cultural não provém das massas, mas trata-se, conforme Guimarães da Costa (1994, p.181), de “uma nova concepção de cultura que tem as marcas da racionalidade técnica: a estratificação dos produtos culturais, a sua estandardização, depreciação estética e representação falseada da cultura erudita e da cultura popular”.

Entretanto, se a indústria cultural padroniza e deprecia esteticamente, ela também permite o acesso à informação e às mensagens subliminares pelo receptor e pode passar a se constituir em uma arena de debates e de questionamentos cumprindo um papel de dinamizadora do debate que se trava na esfera pública em torno de diversas questões de ordem sócio-cultural e política. E aí reside a importância maior dos meios de comunicação de massa na socialização da cultura porque:

[...] a veiculação sistemática, nos vários veículos da indústria cultural, de informações de grupos de comando da sociedade, é claro, influencia os hábitos, opiniões e consumo. Mas, apesar do monopólio da informação, não se pode argumentar que a comunicação de “massa” seja absoluta ao ponto de excluir do ser humano sua identidade, formação própria, liberdade de contestação e de luta, sua esperança utópica de imaginar os mass media em favor da razão emancipatória. (GUIMARÃES DA COSTA, 1994, p.196)

E porque, conforme Zuin (1994, p.173-174), a consolidação da indústria cultural é também um processo de luta pela hegemonia. O autor afirma que não obstante a tendência hegemônica da indústria cultural ser “a realização do processo de imbecilização das consciências, existe ainda a possibilidade do desenvolvimento de consciências críticas. Isso em virtude de que [...] de uma forma ou de outra as diferenças sociais tão alarmantes acabam por se fazer visíveis”.

Constata-se que entre as características da produção textual do EU& estão a redação bem cuidada, argumentativa, articulada de forma racional, criativa, estilo sofisticado,

analítico e interpretativo, com extratos históricos referentes à temática e previsão de desdobramentos, o uso de siglas e de expressões sem informar o significado, palavras e frases em inglês sem traduzir, sobretudo na área econômica, o que pressupõe que o leitor tenha certo nível cultural que permite à publicação dialogar em patamar mais elevado que o dos leitores de jornais de interesse geral.

Também é possível encontrar a conjugação de textos de diferentes gêneros jornalísticos, como reportagens, análises, artigos e comentários, além de artigos com atributos de reportagens, isto é, com fotografias, tabelas, mapas e infográficos, portanto se constitui numa publicação diferenciada. Em alguns casos, nota-se a aproximação com a produção textual científica, tanto na estrutura quanto no uso de referências bibliográficas, epígrafes e na forma de citações. Há ainda que se registrar os textos traduzidos a partir de convênio como Financial Times, compatíveis com o código simbólico do EU&, até por força de o Valor ter se inspirado no jornal britânico. Portanto, todas as características da prática jornalística de qualquer outra área estão também contempladas no exercício do Jornalismo Cultural do suplemento, o que comprova ser este campo específico uma atividade com os mesmos parâmetros jornalísticos de quaisquer outras editorias.

Em que pesem os depoimentos dos jornalistas ouvidos quanto à autonomia deles durante o processo de produção do Valor, é importante relativizar esta discussão, pois conforme o referencial teórico adotado, os campos têm regras próprias e relativa independência. Isto também ocorre em relação ao campo jornalístico: como se trata de um produto da indústria cultural, mesmo tendo liberdade para decidir sobre fontes e enfoques, o campo do jornalismo econômico determina de forma implícita as regras do jogo jogado de forma consentida tacitamente.(grifos meus). Isto se contata, inclusive, nos depoimentos de alguns dos profissionais ouvidos na pesquisa.

Impossível não mencionar a predominância da economia no suplemento cultural do Valor, sobretudo, porque, no cenário globalizado, conforme Ianni (2001, p.22-95), tanto os indivíduos, grupos, classes, movimentos sociais, partidos políticos e correntes de opinião pública têm como desafio descobrir as novas dimensões globais dos modos de ser, agir, pensar, sentir e imaginar. E também porque, conforme Wolton (2004, 511-512), é no espaço midiático que se opõem e se respondem os discursos contraditórios ou não, portanto, configura-se como “espaço para debate de ideias dos agentes políticos, sociais, religiosos, culturais e intelectuais de uma sociedade”. E a economia é a força motriz das sociedades capitalistas. Entretanto, cabe ainda o registro de que pelo menos nas matérias que compuseram o corpus desta pesquisa, ao traçar os panoramas econômicos, raramente o

suplemento publica informações sobre desemprego, distribuição de renda e desigualdade social de forma explícita, deixando estas mensagens restritas às entrelinhas.

Conclui-se também, que neste início de século, o aprofundamento das questões abordadas pelos jornais passa a ser de fundamental importância para o leitor dos veículos impressos, o qual tem à disposição as facilidades decorrentes da internet em textos meramente informativos. Não que inexistam no mundo virtual análises interpretativas que ajudem o leitor a compreender a realidade contemporânea. Elas existem, mas em menor número se comparadas aos textos informativos. Assim, o jornal impresso encontra nos textos interpretativos o caminho para atender às necessidades de complementação de capital cultural e de capital simbólico. Deste modo, o Jornalismo Cultural do EU& configura-se como esfera pública para debater as questões comuns da vida em sociedade oferece ao leitor textos interpretativos para municiar o leitor quanto aos desafios contemporâneos.

A presença de debates, tensões e conflitos aparece também na diversidade de autores das matérias, que envolve a equipe do suplemento, os jornalistas de outras editorias do Valor, free-lancers, correspondentes, colaboradores e convidados fornecendo ao leitor uma visão prismática de cada assunto abordado. Entretanto, os debates, tensões e conflitos, além de serem constatados na pluralidade das fontes, são identificados principalmente na divergência de opiniões, nas formas de ver o mundo e nas abordagens plurais, num convite à reflexão que resguarda a autonomia opinativa do leitor.

Entre os critérios de noticiabilidade, além dos comuns à prática jornalística, como atualidade, intensidade, relevância do tema ou do personagem para o público específico, o EU& inclui o inusitado e a exclusividade. Até aí, nenhuma novidade. Mas é preciso destacar que estes são valores-notícia que atendem às expectativas dos consumidores de produtos e bens simbólicos personalizados, cujos padrões modernos e o cosmopolitismo cultural se transformaram em hábitos de sociabilidade e cuja apropriação se constitui em estratégia para manterem ou se incluírem nos jogos de prestígio intelectual universalizado. Então, o Jornalismo Cultural do EU& só é como é para atender às exigências de seu público em função dos mecanismos sociais que assim o determinam.

Portanto, a partir da análise do EU& verifica-se que a inserção de temas diversos decorrentes da modernidade rompe mesmo o paradigma tradicional e realmente alarga o conceito do Jornalismo Cultural; portanto, a hipótese proposta nesta pesquisa se confirma, uma vez que é o próprio cenário do mundo contemporâneo que delineia o arco de interesses do leitor para a vida em sociedade. Contudo, não se trata da inserção pura e simples de temas, pois os elementos que constituem a ampliação do conceito são o estilo textual, a

abordagem refinada com viés cultural, o tratamento aprofundado remetendo à reflexão e conferindo prestígio aos próprios bens simbólicos veiculados e distinção ao leitor, bem como os referenciais internacionais confirmando a mentalidade universalizada dos conteúdos.

Outro argumento que reafirma a hipótese proposta é que o veículo sintetiza uma das principais peculiaridades do seu público: mais que o individualismo decorrente do neoliberalismo e da globalização, o caderno EU& prioriza a personalização no conteúdo, numa sociedade tensionada por lutas heterogêneas, na qual a disputa por sinais distintivos é estratégica para o reconhecimento social. E neste cenário é preciso considerar o risco de a mídia assumir tanto o papel de divulgadora de consensos pré-fabricados quanto o de promotora de reflexões críticas sobre a realidade social. Neste caso, o EU& incorpora temas que extrapolam o universo das matérias convencionalmente publicadas em suplementos ou seções culturais similares e mais que a inclusão destes temas, é a abordagem com mentalidade cultural universalizada que constitui a abrangência e o aprofundamento das discussões.

Entretanto, numa análise crítica não basta considerar-se apenas a construção dos relatos jornalísticos com finalidade de promover reflexões sobre a sociedade. A questão é bem mais complexa porque a compreensão das representações simbólicas depende da interpretação dos discursos de quem as produz, das condições de sua produção, da recepção e do espaço social. E o Jornalismo Cultural, enquanto produto cultural reúne atributos que permitem aclarar os debates e alargar os horizontes. Conforme Guimarães da Costa (2002, p.162), “é na esfera da produção da arte que se encontram os germes do esclarecimento, pressupondo nesse contexto a liberdade do pensamento e sua autonomia diante das forças de regressão que reduzem o homem à extensão da aparelhagem produtiva”.

Esta perspectiva múltipla do jornalismo de cultura não se reduz a um arcabouço restrito de temas numa transgressão clara do campo conceitual do Jornalismo Cultural tradicional. Portanto, a sociabilidade decorre, em parte, da complementação do capital cultural e do acúmulo de capital simbólico obtido da mídia pelo leitor, o que indica para as publicações culturais a necessidade de adequação a esses novos desafios emergentes da sociedade contemporânea. Até porque, conforme Bourdieu (2008, p.447), “basta ter em mente que os bens se convertem em sinais distintivos, que podem ser sinais de distinção, mas também de vulgaridade, ao serem percebidos relacionalmente, para verificar que a representação que os indivíduos e os grupos exibem inevitavelmente através de suas práticas e propriedades faz parte integrante de sua realidade social” (grifos do autor).

Outra tendência é a ratificação da existência da mentalidade cosmopolita que a sofisticação do conteúdo possibilita revelar, pois da modernidade emerge a o imperativo de sintonia com o mundo globalizado difundido, conforme Bourdieu, em doses homeopáticas pela mídia e consentidas tacitamente, como forma de apropriação de sinais distintivos. Assim, o Jornalismo Cultural deste início de século caracteriza-se pela tendência de, além do caráter cosmopolita, agregar conhecimento e instigar à reflexão, independente do tema, a partir de argumentação fundamentada em estudos e teorias e complementar o capital cultural e promover o acúmulo de capital simbólico. É um tipo de jornalismo que amplia a visão do leitor ao expandir os limites temáticos e que se torna instrumento de reconhecimento social ao dialogar com o leitor, no sentido de promover consciência libertária sobre o mundo contemporâneo.

Em outras palavras, o Jornalismo Cultural permite ao leitor, conforme visto anteriormente segundo a visão de Bourdieu, uma forma de tomar conhecimento do habitus de classe que lhe possibilita internalizar as regras de um jogo não explícito (doxa) nas atividades profissionais ou sociais compatíveis com as posições ocupadas no espaço social. A apropriação destas práticas culturais propicia ao leitor conhecer as condições e o campo onde ele deve produzir suas próprias jogadas em “jogos reconhecidos socialmente” e nos quais as marcas de distinção são o diferencial. É assim, conforme o autor, que o agente social assegura sua inclusão em certos grupos sociais, isto é, quando internaliza as formas de perceber o mundo de acordo com o ponto de vista daquele campo, o que inclui o consumo de bens culturais relativos ao habitus de classe constantemente mutável e que é afetado constantemente por essa mudança.

Portanto, o Jornalismo Cultural assume o papel de ampliador dos horizontes de conhecimento e de emancipador do leitor tornando público os debates e os saberes científico, técnico, cultural, econômico, entre outros, desde que tenham relevância para a área e perspectiva universalizada de pensamento. Portanto, um fluxo de informações culturais deve possibilitar autonomia opinativa ao leitor, não só na exposição dos conteúdos bem argumentados, mas, sobretudo, na pluralidade e na não ignorância dos conflitos, das contradições, enfim, das tensões da sociedade capitalista contemporânea, ou seja, que se caracterize como esfera pública.

Este alargamento do conceito de Jornalismo Cultural encontra sustentação também na compreensão de cultura segundo Williams (2008, p.13) que a vê como “um sistema de significações” onde uma ordem social é “comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” e no qual as atividades artísticas e intelectuais são definidas de maneira muito mais ampla “de

modo a incluir não só as artes e as formas de produção intelectuais tradicionais, mas também todas as ‘práticas significativas’ (...) que agora constituem esse campo complexo”.

Por fim, deduz-se que o caráter de esfera pública do Jornalismo Cultural tende a ampliar o debate, com a transgressão das fronteiras dos diversos campos, o que o torna elemento essencial para despertar a consciência crítica nas sociedades democráticas e cumprir, além da finalidade mercantil, a atribuição de emancipador e libertário.

Entende-se que, apesar das características peculiares da análise deste objeto específico, esta conclusão pode ser estendida a outros veículos, pois o fenômeno observado emerge da sociedade contemporânea como um todo, ou seja, a contribuição desta análise aplica-se de forma extensiva a outras publicações similares no mundo globalizado econômica e culturalmente, no início deste século XXI.

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