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Deu no ‘The New York Times’

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Tabela 6 – Perspectiva da Mídia

1. Cobertura da Guerra do Iraque O show de George W Bush

1.2. Deu no ‘The New York Times’

Outra matéria, referente ao assunto, é a que recebeu o título “Deu no ‘The New York Times’”88, de Carlos Haag e Robinson Borges. O lead da reportagem instiga à primeira de uma série de reflexões para as quais o conteúdo desperta. A frase incisiva balança os pilares da credibilidade do jornalismo americano e os do leitor: “Deu no ‘The New York Times’. Ou na CNN. E você acreditou”. Este diálogo inicial com o leitor é justificado com a opinião de John MacArthur89, aliás todas as fontes utilizadas nesta reportagem são autores de obras sobre cobertura de guerra o que legitima a autoridade delas sobre o assunto.

Assim, o EU& informa que MacArthur defende a liberdade de imprensa e a posição crítica dos jornalistas mesmo em tempos de conflito e que se manifesta de forma contundente quanto ao desempenho dos jornalistas americanos na cobertura da Guerra do Iraque: “Hoje, temos uma imprensa ‘venezuelana’, que representa os interesses da oligarquia americana. Cerca de 95% dos jornalistas defendem os valores do governo e da comunidade empresarial e 5% deles reagem”. E ainda por meio da mesma fonte (MacArthur), o

88

“Deu no ‘The New York Times’” - EU&, nº 135, de 28, 29 e 30/mar/2003, p.12-14 89

John MacArthur - editor da Harper’s Magazine e autor de “Second Front: Censorship and Propaganda in

suplemento conduz a se pensar sobre o conceito de patriotismo: “Muitos repórteres acham que ser patriota é ser leal ao presidente Bush. O dever do jornalista é a fidelidade à Constituição e esta nos dá liberdade de imprensa todo o tempo”. E continua de forma crítica:

“Agora, a censura não é mais externa, mas é autocensura. Em todo o mundo foram mostradas as imagens dos soldados americanos mortos, mas um povo soberano como o dos EUA foi impedido de ver os cadáveres de seus combatentes. A imprensa nos trata como crianças”, diz MacArthur.

Entretanto, quanto à autonomia para obter informações durante a guerra, a matéria também prospecta na história elementos comparativos para confirmar que o filtro já existia no passado: “Se na Segunda Guerra, os jornalistas tiveram maior acesso ao front do que na anterior, tudo que escreviam passava por uma censura militar e também se proibia a publicação de fotos de soldados mortos”. Ao ouvir outras fontes sobre o caráter comprometedor da atividade dos “embeddeds” americanos, o EU& reforça claramente sua intenção de instaurador de debate ao manifestar posições de crítica à hegemonia do governo americano nesse episódio. Exemplo disso é a declaração de Judith Mattlof90 para quem “(...) muitos [embeddeds] chegam ao absurdo de falar em ‘nós’, colocando-se como combatente, sem imparcialidade e com apenas uma perspectiva de avanço contra o Iraque”.

Outro exemplo é quando o EU& oferece a noção de como é a condição de censura dos “embeddeds” com a declaração de Hedrich Smith91 de que “há uma multidão de correspondentes na guerra, mas boa parte deles está confinada pelos militares”. Em seguida o jornalista relembra que na Guerra do Vietnã era o inverso “apesar do desejo do presidente Lyndon Johnson em censurar a imprensa, a extensão dos campos de batalha tornava impossível a contenção dos repórteres. E, pela primeira vez, os correspondentes descobriram que os governos em guerra, mentem e muito”.

O suplemento desperta a atenção do leitor para as ideias de muitos analistas, os quais entendem que a guerra atual pode vir a ter surpresas imprevistas. Também critica a cobertura das TVs que “estão com medo de colocar no ar qualquer coisa controversa ou que possa ser considerada antipatriótica por seus anunciantes ou por boa parte da audiência nacionalista”, conforme Daniel Hallin92 sobre a mídia no Vietnã. Identifica-se, portanto, dois recursos flagrantes que permeia a construção do texto desta reportagem: intercalar afirmações e

90

Judith Mattlof - ex-correspondente de guerra e professora de “War Report” da Columbia University 91

Hedrich Smith – ex-correspondente de guerra do The New York Times e autor de “Media and Golf War 92

opiniões de fontes credenciadas sobre o assunto, legitimando a credibilidade da informação prestada e a contraposição com coberturas passadas.

A despeito da expectativa de que a tecnologia permitiria a cobertura em tempo real, o EU& informa que “houve um ‘blackout’ da cobertura da imprensa nas primeiras 48 horas do conflito (repetindo o que houvera em 1983, na invasão de Granada e em 1989, no Panamá)”. E acrescenta que, segundo MacArthur, apesar dos satélites da CNN o que se via nas telas eram “apenas notas oficiais militares e documentários sobre as bombas ‘inteligentes’”.

O conteúdo textual segue sua construção em ideias dialogadas entre os entrevistados que ora se complementam, ora revelam novas perspectivas, mas todos cobrando atitude mais digna dos correspondentes. É o caso de Smith ao argumentar que espera que os jornalistas “saibam aproveitar melhor isso [o fato de estarem dispersos] do que o que venho lendo e assistindo na mídia”. Ou Judith: “Boa parte deles [correspondentes atuais] não têm experiência de cobertura de guerra, conhecem mal o Iraque, não falam a língua, e desconhecem a cultura”. E ainda MacArthur: “Ontem, conversei com um repórter no Iraque e ele me disse, envergonhado, que as perguntas feitas pela imprensa estrangeira no Qatar são mais incisivas e melhores do que as dos jornalistas americanos. Isso precisa mudar”.

O suplemento, ao revelar o descompasso do desempenho dos correspondentes americanos, desconstroi a simbologia que exaltava a mística da eficiência americana, pois registra que “a ‘cutucada’ está vindo de onde se menos esperava, ao menos nos países ocidentais” e complementa com a declaração de El-Nawawy93: “Ao contrário da Guerra do Golfo, monopólio da mídia do ocidente, agora os árabes podem revelar suas opiniões sobre o resto do mundo e mostrar a sua visão de guerra”, o que para o americano Mac Arthur, a Al- Jazeera “ao mostrar o que censuramos por aqui, forçam a CNN a repensar sua cobertura e a mostrar a realidade para os EUA”.

Mas, por meio desta reportagem o EU& reconhece a influência da opinião pública na imprensa ao informar que as contestações populares podem recuperar a liberdade de expressão e que “boa parte dos veículos da mídia americana não esperava os protestos de rua contra a guerra”. E embasa a afirmação com a opinião de Hallin, que difere da constante na matéria anterior, de que na Guerra do Vietnã, “ao contrário do que se imagina, não foi a mídia que virou a opinião pública contra a guerra. ‘Foi o oposto: foi o público, em especial o movimento antiguerra, que obrigou a imprensa a fazer uma cobertura mais precisa e crítica do Vietnã”.

93

El-Nawawy - autor de “Al-Jazeera: How de(sic) Fee Arabs News Network Scooped the World and Changed

Também é possível identificar-se, pelo conteúdo da abordagem, que o suplemento valoriza o papel da mídia como instauradora de debate, apoiado, mais uma vez na opinião de uma fonte. Desta vez é David Paletz94 para quem “antes da guerra, houve uma discussão interna sobre ir ou não ao ataque, mas foi pífia [e pouco noticiada]. Até mesmo porque faltou capacidade aos democratas de criar uma oposição ao conflito. Isso teria chamado a atenção da mídia, que se veria obrigada a divulgar o debate”.

É interessante registrar que os elementos interpretativos do conteúdo ganham preponderância sobre os meramente informativos, o que revela qualidade reflexiva do texto mesmo quando reproduz a opinião de uma fonte. Segundo Jeffey Allan Smith95, “após o 11 de setembro o país, imune das matanças que marcaram o século XX, se viu jogado no patriotismo. Houve uma tendência a tratar o governo com benevolência e a imprensa é um reflexo direto disso. Só se esquecem de que o jornalismo crítico é um dever patriótico”.

E ao optar por um encerramento questionador, o EU& reforça essa tentativa de induzir o leitor a pensar sobre o papel da mídia, quando reproduz a indagação de MacArthur: “Devemos lamentar que um cinegrafista mostrou um soldado americano morto sendo arrastado em Mogadishu, nos tirando da Somália? Só sei que, com censura nós não sabemos o que nós não sabemos”. E finaliza com uma frase instigante, sem tradução: “Nem sempre ‘no news is good news’”.

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