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Ao longo deste processo de investigação acerca de intervenções artísticas urbanas com uso de projeção de luz, percebeu-se a semelhança entre esse tipo de manifestação expressiva e as práticas projetivas anteriores ao cinema, realizadas em feiras e ruas, com dispositivos como a lanterna mágica. O deslumbramento com que o homem do final do século XIX percebia aquelas projeções é, em parte, comparável ao fascínio que o homem contemporâneo tem pelas imagens, eletrônicas ou não, presentes na paisagem urbana, como outdoors e painéis digitais. Vistas sob o aspecto de encantamento, as intervenções urbanas com projeção de luz conseguem atrair o olhar apressado do transeunte para a interferência na paisagem cotidiana. A iniciativa, por parte dos artistas, de atingir um espectador desavisado, que não tenha uma prévia intenção de fruição estética, em espaços abertos e não-institucionais, acaba por despertar-lhe uma outra percepção quanto à materialidade artística e à construção do espaço citadino.

Apesar da existência de um histórico bastante consistente na expressão artística que se expande para fora de museus e galerias, com esculturas em espaços abertos, propostas deambulatórias dos Situacionistas, práticas da Land art, happenings e intervenções urbanas, fica a sensação de que o espaço urbano se mostra cada vez mais receptivo a esse tipo de manifestação expressiva. A fusão entre arte e cotidiano, iniciada com as propostas vanguardistas do começo do século XX, parece ainda possuir um frescor que a valida.

Mesmo que as ambientações das grandes metrópoles possuam algumas particularidades comuns, existem condições sócio-econômicas que particularizam tais espaços. Posto isto, é preciso pensar as ações interventivas de acordo com os determinantes contextos existentes. Tomando-se como exemplo a cidade de São Paulo, percebe-se, nas últimas décadas, a crescente decadência e fragmentação do espaço urbano como local de coexistência e participação social. Assim, ações expressivas que conseguem, de alguma forma, reverter esse quadro acabam por ser reconhecidas. Na realização de ações com projeções no espaço urbano, como o caso do Vídeo Guerrilha, apresentado no Capitulo 4, nota-se a intenção de resgate

do ambiente da cidade como um local de convivência e expressão. O “Agigantador de pessoas”, uma das mega projeções do Vídeo Guerrilha, além de proporcionar ao espectador-participante o aspecto lúdico de ser visto em um tamanho monumental, parece evidenciar e resgatar o elemento humano dentro de uma mega-estrutura impessoal que é a metrópole, e esse parece ser o grande desafio das intervenções artísticas no corpo degradado da cidade.

Manifestações de Street art, como descritas e analisadas no Capítulo 2, parecem trilhar esse caminho ao reivindicar o espaço urbano como um território apropriado para expressões individuais em contrapartida à impessoalidade e determinação de padrões impostos pelo bombardeio de mensagens publicitárias. Essas práticas conseguem ampliar a percepção do espaço público como um território expandido do fazer artístico e se engajam como uma forma de retirar o público de um posicionamento passivo diante da paisagem cotidiana. Apesar da presença do grafite, uma das formas de Street art, em museus e galerias de arte não causar mais nenhum tipo de estranhamento, é no embate pelo espaço das ruas que ele apresenta seu valor, mantendo características como a inventividade e a transgressão.

A utilização de projetores digitais em manifestações expressivas, no final dos anos 1980, está vinculada às práticas da videoarte (RUSH, 2006:148), mas quando essas projeções são direcionadas para o ambiente caótico dos espaços urbanos, na forma de intervenção, percebe-se a aglutinação de características próprias da Street art nas ações. Junto com o que está sendo apresentado nas imagens existe também uma atitude menos elitista e institucionalizada da arte que é reverberada pela sua presença na rua e consequente mudança da paisagem urbana.

A proposta curatorial de um evento como Media Facade Festival87, comentado no Capítulo 3, dá o tom dessa tendência, pois é evidente que todo o material apresentado no Festival poderia ser exibido em galerias e salas de projeções, mas ao levar a produção de conteúdo midiático experimental para o espaço urbano são levantadas questões relativas às ideias de convivência e participação no ambiente das cidades.

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A edição de 2010 ocorreu entres os dias 27 de agosto e 10 de setembro. Disponível em

Preparando a sua versão 2.0, o evento Vídeo Guerrilha também se desloca nesse mesmo vetor, ou seja, continua apostando na intervenção do espaço urbano como forma de atingir um espectador latente dentro de cada passante, um flâneur em potencial, pronto para ser afetado por manifestações expressivas inesperadas, para que esse possa parar por um instante e perceber o belo na transitoriedade, no efêmero e no fluxo de imagens postas como um retrato da própria vida na cidade. Enquanto o flâneur de Baudelaire despendia o seu tempo ao buscar estas características tipicamente urbanas e nelas encontrava beleza, o transeunte contemporâneo acaba sendo percebido como um sujeito ensimesmado, indiferente ao que acontece à sua volta.

É com a intenção de despertar a percepção dos indivíduos anestesiados pelo ritmo de vida mecânico e pela rotina massacrante das grandes cidades que vejo uma função para intervenções urbanas com projeção de luz e de imagens. Uma forma de criar um contraponto ao cinza que se sobrepõe na paisagem.

O aspecto efêmero das intervenções acaba por valorizar essas ações expressivas. O estranhamento ocorrido na percepção de quem é atingido pela intervenção, mesmo que por um curto espaço de tempo, faz com que as projeções continuem a existir mesmo depois dos projetores serem desligados. É como se, para os espectadores da ação interventiva, uma máscara da cidade tivesse caído. Assim, a fachada do prédio e a paisagem da cidade passam a se mostrar de uma outra maneira, e nunca mais serão as mesmas.

Talvez tenha sido a vontade de realizar uma intervenção com projeção de imagens no ambiente em que resido a força motriz deste trabalho de pesquisa. É claro que a ação também poderia ter sido feita sem nenhum estudo prévio. Mas é inegável o quanto conhecer trabalhos realizados anteriormente, tanto os executados com um grande aparato técnico quanto os mais singelos, foi importante na construção da minha própria intervenção. O conhecimento das propostas estéticas que valorizam o espaço urbano como território pleno de possibilidades expressivas me serviu como uma bússola. A ideia de que alguma pessoa parou para olhar para as imagens que propus na tez urbana, me faz pensar que este trabalho cumpriu sua missão e conseguiu efetivar uma comunicação.

É importante pensar a projeção luminosa na cidade como uma forma poética de projeção do espaço urbano, como um projeto de cidadania, participação e convivência. Uma maneira fugaz de projetar na cidade um projeto de cidade.

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