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Uma das formas de se restabelecer os eventos passados através da pesquisa científica envolve a consideração de documentos que preservaram, de alguma forma, informações a respeito de fatos ocorridos. Esses podem ser registros escritos, visuais, sonoros, objetos e outras materialidades que sirvam de ‘pistas’ na reconstituição de cenários pretéritos possíveis e prováveis. De fato, “[...] qualquer elemento portador de dados pode ser considerado documento” (GIL, 2010, p. 66). A noção é, portanto, abrangente, uma vez que uma variedade de produções humanas podem representar unidades de expressão das formas de viver, das crenças, dos hábitos e das formas de agir dos indivíduos no tempo.

Essa compreensão multifacetada da noção de documento deriva de desenvolvimentos evolutivos da historiografia, especialmente com a Escola dos Annales, em 1929, privilegiando uma abordagem mais global das atividades humanas, até então centradas na história dos ‘grandes homens’ da sociedade e na política, de um modo geral (CELLARD, 2008). Como os indivíduos não costumam produzir esse tipo de fonte na realidade cotidiana, a ampliação da noção de documento permitiu a própria ampliação das possibilidades de estudo da história social, alcançando camadas populares invisíveis, de certo modo, nas anotações históricas consideradas oficiais.

Nesse caso, os documentos tendem a representar fontes primárias em relação à temática da qual tratam, uma vez que são criados, geralmente, por indivíduos ligados diretamente aos eventos – sem mediação – além de serem instituídos no tempo em que foram vivenciados os acontecimentos, configurando-se de forma original. Há, no entanto, a possibilidade dos dados serem compiladas pelo autor em momento posterior aos acontecimentos, o que atribui um caráter retrospectivo aos registros, como o caso de diários e autobiografias (LAKATOS e MARCONI, 2010).

Assim, a pesquisa documental envolve materiais que não passaram por qualquer tratamento científico22, não havendo manuais que indiquem com precisão como proceder diante das informações que contém. Por essa razão, uma das primeiras medidas a serem tomadas é a seleção cuidadosa dos registros e sua cautelosa organização, pois esses atos já

envolvem uma leitura segundo critérios de interpretação estabelecidos pelo pesquisador em função da problemática apresentada no horizonte de determinado estudo.

A partir desse primeiro movimento projeta-se a organização do trabalho considerando- se o tempo disponível diante das necessidades de tratamento das informações no material reunido. Essa tarefa é identificada como pré-análise (SILVA, 2009) e é importante porque visa tornar o tratamento documental mais eficiente, além de encaminhar a própria coleta futura de dados, orientando, de certa forma, as atividades nas demais etapas da pesquisa.

Em função da natureza da fonte, tal trabalho envolve níveis consideráveis de objetividade uma vez que é corrente a compreensão de que não é possível, diante da responsabilidade profissional e de princípios éticos, transformar um documento. Deve-se aceita-lo como é, ainda que esteja incompleto ou contemple parcialmente determinada temática (CELLARD, 2008). Desta forma a presença do pesquisador não influencia os acontecimentos e as relações compreendidas em seu conteúdo ao passo que também não é possível exigir dele qualquer acréscimo em face daquilo que apresenta.

Contudo, sabemos que tanto uma inscrição relativamente simples, quanto um texto bem elaborado ou um objeto necessitam ser interpretados para adquirirem sentido dentro de determinados contextos, o que pode se revelar uma tarefa complicada à medida que a origem de um registro remonta a períodos longínquos em relação à contemporaneidade do pesquisador, além de poder representar traços de uma cultura bastante diversa da sua. Assim que a validade e a solidez dos argumentos em torno das informações contidas nas fontes derivam da consistência dos critérios adotados nas abordagens, já que tendem a expressar a ação de alguém sobre algo por ele não dominado23, processo que implica a subjetividade do pesquisador.

Desta forma, busca-se

[...] a articulação do presente com o passado, o pesquisador volta-se a suas raízes, ativa ou reativa a memória, distanciando-se assim de uma possível fragmentação quando procura, na investigação, o elo entre esses dois tempos históricos da atividade humana, para além de análises “presentistas” que o levariam apenas a ratificar o passado e glorificar o presente. (PIMENTEL, 2001, p. 192).

Na articulação entre diferentes temporalidades, o autor reconhece a importância do que chamou de ‘bagagem’ do pesquisador, derivada da sua trajetória de vida, de modo que referencia a experiência sensível dos indivíduos na influência sobre interpretações realizadas

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Razões dessa ordem levaram Gomes (2007) a advogar à pesquisa documental o status de método – para além do caráter de técnica ou procedimento de coleta de dados. De fato, o autor reconhece nela dimensões epistemológicas, teóricas, morfológicas e técnicas.

no contexto da pesquisa historiográfica. Nesse caso, os cuidados devem derivar para um esforço de distanciamento da contemporaneidade nas relações estabelecidas com os documentos sem, no entanto, desviar-se em direção a um anacronismo a partir do qual o ato de pesquisar a história perde seu sentido na realidade cotidiana.

3.1.1 Os documentos escritos

Apesar da diversidade das fontes que podem ser consideradas como documentos históricos, autores como Cellard (2008) e Silva et al. (2009), destacaram a utilização dos documentos escritos, em seus estudos, ou seja, registros impressos e manuscritos em papel, na condição de fontes primárias ou secundárias preexistentes em relação a determinado processo de pesquisa24. Isso significa dizer que, diferentemente de boa parte das pesquisas narrativas, nesse caso não está incluída a perspectiva de criação da própria fonte para estudo.

Tal espécie de registro está sujeita às classificações: Arquivados, Não Arquivados, de Domínio Público, e Arquivos Privados (CELLARD, 2008). Os documentos ‘Arquivados’ são aqueles foram acondicionados em determinado espaço físico, estando suscetíveis à conservação, descrição e à classificação em categorias, enquanto os ‘Não Arquivados’ dizem respeito a qualquer tipo de material escrito e distribuído, tal como folhetos, jornais, boletins paroquiais, etc. Os ‘Arquivos Públicos’ são provenientes da organização governamental e do Estado Civil, representando, geralmente, documentação volumosa. É importante notar que, mesmo sendo de natureza pública, não é sempre que estão disponíveis, havendo casos em que a própria legislação estabelece prazos para que um documento possa ter seu conteúdo acessado por integrantes da comunidade. Nessa categoria encontramos leis, ofícios, relatórios, anuários e alvarás, entre outros.

Por outro lado, temos as instituições políticas, as empresas, sindicatos, as igrejas, e os próprios indivíduos como potenciais geradores de ‘Arquivos Privados’, compostos por correspondências, diários, autobiografias, atas, memoriais, comunicados e produções de gênero semelhante. É significativo destacar que, nesses casos, as condições de acesso a documentações podem ser extremamente restritas (CELLARD, 2008).

Além dessas classificações Lakatos e Marconi (2010) identificam, ainda, uma terceira. Trata-se das ‘Fontes Estatísticas’, que consistem em dados numéricos e percentuais elaborados tanto por órgãos particulares quanto oficiais, como o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), e o Instituto Brasileiro de Opinião Pública (IBOPE). Os dados produzidos nessa categoria tendem a contemplar uma variedade ampla de aspectos relativos à vida social, desde a ocorrência endêmica de determinada patologia a estatísticas educacionais, por exemplo.

3.1.2 Procedimentos na Pesquisa Documental

Realizada a escolha pela utilização de documentos de natureza textual na pesquisa, os procedimentos a serem adotados para a obtenção de informações consistem, basicamente, na busca, coleta de registros e na análise dos conteúdos que apresentam. O que não é realizado sem apurado cuidado no tratamento dos dados em benefício da sua credibilidade e validade.

O estabelecimento de um corpo documental se dá em função da clareza dos objetivos diante de um problema a ser respondido com a pesquisa. Uma vez reunidos, o próximo passo é a leitura atenta e crítica dos textos, buscando indícios que deem a falar de sentidos sobre os eventos ou circunstâncias às quais se referem. No entanto, tal processo deve incluir a consideração de algumas condições que atribuem consistência e legitimidade à fonte documental.

Cellard (2008) enumera cinco perspectivas elementares a serem levadas em conta: o contexto, o autor ou os autores, a autenticidade e a confiabilidade, a natureza, os conceitos- chave e a lógica interna dos textos. Essas cinco dimensões representam um detalhamento mais apurado em relação às indicações de Silva et al. (2009), a respeito da avaliação preliminar dos documentos. Assim, em todas as pesquisas com base documental devem ser considerados tais aspectos, para então dar curso ao processo de interpretação ‘final’ dos conteúdos.

De fato, levar em conta o contexto histórico no qual um documento foi produzido é uma condição indispensável para a compreensão de sentidos nele presentes. O pesquisador deve buscar estar ciente da conjuntura social, política, econômica relativa à época na qual determinada documentação foi produzida, de modo a evitar ações interpretativas estabelecidas com base nos valores e nas condições sociais que lhe são contemporâneas25.

Isso também é válido, embora não seja sempre possível, em relação ao contexto imediato de quem produziu o documento, buscando compreender quem foi seu autor e quais as finalidades e anseios levaram-no a documentar um evento. Tal iniciativa pode resultar,

25 A proximidade temporal na qual foi produzido um documento em relação ao momento em que o pesquisador o

considera, é um fator que dificulta a compreensão contextual em torno da produção documental (CELLARD, 2008). Ademais, há, para o autor, uma tendência na ação dos pesquisadores de deixarem de fora aspectos importantes do contexto geral de produção dos documentos, o que empobrece o processo de interpretação.

inclusive, na compreensão de motivações individuais ou comunitárias, alterando o modo de conceber o registro. Ademais, a elucidação da identidade dos autores favorece a compreensão das posições, inferências e possíveis ‘desvios’ de informações diante dos acontecimentos aos quais se referem. Tais perspectivas envolvem a própria questão de por que esse e não outro documento chegou até nosso conhecimento (CELLARD, 2008).

A observação desses critérios está relacionada, também, à autenticidade e à confiabilidade de um documento. É importante saber a procedência do registro histórico, se foi produzido na mesma época em que ocorreram os eventos ou em momento posterior, se o seu autor foi testemunha direta ou indireta dos acontecimentos e se é possível que tenha se engando, de algum modo, a respeito daquilo que relata. Para Cellard (2008), esses são critérios significativos a serem considerados na legitimação e validação dos registros que dão a falar do passado no contexto da pesquisa científica.

No que se refere à natureza do texto, o autor chama a atenção para o fato de que há diferentes graus de liberdade e forma nas construções documentais, na dependência da destinação das mensagens e dos meios através dos quais são transmitidas. Assim, é provável que haja diferenças entre o registro de interlocução de um funcionário com os responsáveis por instâncias administrativas superiores em uma empresa, e uma correspondência enviada a um amigo relatando fatos do dia a dia no trabalho. Tais condições devem ser levadas em conta antes de se estabelecer maiores considerações a partir dos conteúdos documentais apreciados. Ademais, há documentos que só adquirem sentidos á medida em que o pesquisador domina determinados conceitos e noções específicas na área, com o caso de peças jurídicas, por exemplo.

Na quinta dimensão a ser considerada para o estabelecimento de uma avaliação preliminar acerca dos documentos, Cellard (2008) destaca a importância dos conceitos-chave e a lógica interna das informações textuais. Nesse caso, de forma semelhante às perspectivas na dimensão contextual, deve-se evitar tomar equivocadamente conceitos e noções que fazem parte do conteúdo estudado. Há risco de considerarmos por um viés contemporâneo uma expressão contextualizada em outras épocas e em outras culturas. Um acontecimento dessa ordem levaria a distorções interpretativas que comprometem os resultados finais de uma pesquisa.

A título de exemplo podemos destacar a noção de família, atualmente. Essa é consideravelmente mais abrangente do que no início do século XX. Um registro documental datado de 1900 contendo essa expressão e interpretado inadvertidamente pelo viés contemporâneo levaria a equívocos evidentes. Por isso é importante uma interpretação

criteriosa das noções e conceitos relacionados ao contexto e à época em que um documento foi produzido.

3.1.3 A interpretação

O processo principal de interpretação de um documento é chamado por alguns estudiosos de ‘análise documental’ (SILVA, 2009; GIL, 2010; CELLARD, 2008). Nessa etapa ocorre intensa leitura e busca por compreensão dos registros, de modo a permitir o estabelecimento de categorias e unidades textuais de análise, em um sentido de desconstrução e reconstrução dos dados, distinguindo-se, portanto, da abordagem analítica em perspectivas positivistas (CELLARD, 2008). Um procedimento que deve ser realizado juntamente com a descrição das informações documentais no relatório de pesquisa, o qual deve ser mediado por inferências com base no que está escrito e no que está nas entrelinhas (SILVA, 2009).

Os procedimentos variam conforme os delineamentos definidos em diferentes tipos de estudo, mas em geral envolvem: definição de objetivos; a seleção dos documentos; a constituição de quadros de referência com termos-chave e definições de conceitos; a construção de um sistema de categorias; a definição de unidades de análise, como frases ou acontecimentos; teste de fidedignidade, quando a mesma pessoa realiza semelhante interpretação das informações após transcorrer determinado período temporal; o tratamento de dados, verificando a frequência das palavras na construção de um texto; e a interpretação das informações mediante comparação com teorias e elementos diversos diante do contexto da pesquisa (GIL, 2010).

É valido destacar que o exercício do senso crítico por parte do pesquisador deve permear todas as etapas do processo, o que irá definir, junto com a observação dos procedimentos elementares apresentados e com a maior ampliação possível dos registros sobre os acontecimentos, a qualidade geral do estudo e sua validação no campo da pesquisa científica.