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Considerações sobre a valoração da prova neste caso

Durante este processo interamericano, os Representantes remeteram prova abundante para que a Corte constate a existência de um contexto específico, no qual se evidencia a ocorrência de uma prática de tráfico e formas contemporâneas de escravidão com um modus operandi particular, em que se enquadraram os fatos do presente caso. Isso gera consequências jurídicas na hora de avaliar a prova, como analisamos nos seguintes parágrafos. Sem prejuízo do anterior, remetemos prova direta que permite à Corte determinar os fatos particulares do caso e as violações alegadas. A seguir, desenvolvemos algumas observações sobre o efeito do contexto e o padrão provado na análise da prova produzida no caso em espécie.

1. Efeito do contexto deste caso e das omissões do Estado na valoração da prova

a) Sobre o efeito do contexto no presente caso

Primeiro, tanto os Representantes como a Comissão, os diversos declarantes e o próprio Estado do Brasil se referiram ao contexto de trabalho escravo na época dos fatos. Como se desprende da seção de contexto supra, provamos que nessa época, no Pará, apresentava-se uma prática reiterada e conhecida de tráfico de pessoas e exploração humana extrema. Tal prática ocorria em rotas de tráfico estabelecidas, seguindo um padrão e um modus operandi específico, que inclui o recrutamento por engano para garantir o uso da força de trabalho, e endividamento e ameaças, muitas vezes acompanhada pela violência física ou psicológica, que compreendia a proibição da saída dos trabalhadores das condições indignas de trabalho das fazendas.

Do mesmo modo, provamos que o Estado conhecia este contexto de trabalho escravo no Brasil303 desde antes de 1995 e, especificamente, na região do Pará. De fato, o próprio Estado reconheceu e aceitou a existência de tal contexto na audiência pública:

Excelentíssimos senhores juízes, tudo o que nós vimos durante estes 2 dias, como já disse anteriormente, traça um cenário, um contexto, uma estrutura, a realidade infeliz do

nosso pais que é de ainda enfrentar a exploração de trabalho humano de trabalho escravo. A definição deste julgamento, no entanto, preciso observar os atores deste caso concreto,

vítimas, violadores de direitos humanos, e não a realidade contextual que o trabalho escravo ocorre no nosso pais, o Brasil acredita que esta Honorável Corte proferira julgamento com base sobretudo na conduta comprovada destes atores e não de um contexto geral; nesse sentido, alguns comentários sobre o mérito se fazem bastante necessários304.

Portanto, este contexto não seria um ponto em controvérsia.

No que diz respeito ao valor jurídico do padrão provado, observamos que o mesmo tem tido incidência concreta nos pronunciamentos desta Honorável Corte. Desde os primeiros casos e em sua

303 Anexo 45 do EPAP, Presidência da República. Casa Civil – Biblioteca da Presidência da República. Palavra do Presidente – 1º semestre de 1995. Presidente Fernando Henrique Cardoso. Programa transmitido em 27 de junho de 1995. 304 Alegações finais orais apresentadas pelo Representante do Estado Sr. Boni Moraes Soares, audiência pública, dia 19 de fevereiro de 2016.

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jurisprudência consolidada, o Tribunal tem utilizado o contexto para estabelecer fatos e ponderar o valor da prova apresentada pelas partes305, para determinar a responsabilidade internacional agravada306, para determinar o alcance de uma violação de direitos humanos no plano coletivo307, e para avaliar a outorga de reparações308..

No que se refere à valoração da prova, de acordo com a jurisprudência reiterada desta Corte, uma prática violatória produz efeitos concretos na hora de analisar a prova. A respeito, o Tribunal destacou:

[E]sta Corte ha establecido que no es posible ignorar la gravedad especial que tiene la atribución a un Estado Parte en la Convención del cargo de haber ejecutado o tolerado en su territorio una práctica de violaciones a los derechos humanos, y que ello “obliga a la Corte a aplicar una valoración de la prueba que tenga en cuenta este extremo y que, sin perjuicio de lo ya dicho, sea capaz de crear la convicción de la verdad de los hechos alegados”.309

Neste sentido, a Corte determinou que quando se prova uma prática violatória, tolerada pelo Estado, ao vincular os fatos particulares a esta prática, não se utiliza o mesmo padrão de prova para avaliar os fatos concretos, mas que se aplicam certas presunções. No caso Godínez Cruz v. Honduras, a Corte ressaltou:

Cuando la existencia de tal práctica o política haya sido probada, es posible, ya sea mediante prueba circunstancial o indirecta, o ambas, o por inferencias lógicas pertinentes, demostrar la desaparición de un individuo concreto, que de otro modo sería imposible, por la vinculación que ésta última tenga con la práctica general. […] Si se puede demostrar que existió una práctica gubernamental de desapariciones en Honduras llevada a cabo por el Gobierno o, al menos, tolerada por él y si la desaparición de Saúl Godínez se puede vincular con ella, las denuncias hechas por la Comisión habrían sido probadas ante la Corte, siempre y cuando los elementos de prueba aducidos en ambos puntos cumplan con los criterios de valoración requeridos en casos de este tipo310.

Ou seja, nos casos, como o presente, em que se constata a existência de um contexto e de uma prática violatória que foi tolerada pelo Estado, e em que se demonstra que os fatos do caso concreto se inserem em tal prática, a Corte poderia estabelecer a presunção de alguns fatos e determinar a

305 Corte IDH. Caso J. vs. Perú. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações Custas. Sentença de 27 de novembro de 2013. Série C No. 275, pars. 305 e 306 e 315 a 321.

306 Corte IDH. Caso Servellón García y otros vs. Honduras. Sentença de 21 de setembro de 2006. Série C No. 152, par. 109.

307 Corte IDH. Caso de Personas Dominicanas y Haitianas Expulsadas de la República Dominicana. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações Custas. Sentença de 28 de agosto de 2014. Série C No. 282, par. 275; Caso Cantoral Huamaní y García Santa Cruz vs. Perú. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações Custas. Sentença de 10 de julho de 2007. Série C No. 167. 308 Corte IDH. Caso Servellón García y otros vs. Honduras. Sentença de 21 de setembro de 2006. Série C No. 152, pars. 182 e 201; Caso Anzualdo Castro vs. Peru. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações Custas. Sentença de 22 de setembro de 2009. Série C No. 202, par. 193; Caso Masacre Plan de Sánchez Vs. Guatemala. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações Custas. Sentença de 19 de novembro de 2004. Série C No. 116, pars. 85 – 86.

309 Corte IDH. Caso Escué Zapata Vs. Colombia. Mérito, Reparações Custas. Sentença de 4 de julho de 2007. Série C No. 165, Par. 45.

310 Corte IDH. Caso Godínez Cruz Vs. Honduras. Mérito. Sentença de 20 de janeiro de 1989. Série C No. 5, Par. 130, 132.

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inversão do ônus probatório a respeito de algumas alegações311. Isto é especialmente determinante para comprovar em contextos como o do presente caso, as afetações coletivas a pessoas sujeitas a condições e situações semelhantes, que também são de difícil acesso, as quais estão em uma situação de vulnerabilidade extrema marcada pela discriminação, pela pobreza, pelo anafalbetismo e outras condições312. Nas palavras da perita do Estado Ana Carolina Alves Araújo Román, “uma série de provas que se não forem coletadas no momento exato da fiscalização fica muito difícil reproduzi- las depois”, especialmente com relação às vítimas ”é muito difícil localizar estas pessoas para serem ouvidas como testemunhas” depois da fiscalização, pois “estas pessoas desaparecem e não serão mais encontradas”.313

Ou seja, o contexto também se define pela própria negligencia e falta de diligência estatal, que incidiu de maneira direta na perda da prova fundamental.

A respeito, o perito Dr. Rodríguez Garavito comentou o seguinte sobre a influência do contexto na valoração da prova no caso específico, levando em consideração as circunstâncias da Fazenda Brasil Verde:

Estos casos por definición tienen desafíos de prueba…En qué medida creo que el contexto puede ser útil? Creo yo que a falta de una prueba individualizada, la situación de un sistema laboral que viven y tradicionalmente ha estado estructurado alrededor de la esclavización de personas o a través de un tráfico de un Estado a otro, de un país a otro, o de un estado a otro dentro de un mismo país de una forma continuada y de una manera que tiene algunas verificaciones como este caso, con algunas inspecciones regulares que encontraban con el lapso de unos 5 años situaciones similares, deben ser tenidas en cuenta para la prueba de la existencia de trabajo forzoso y servidumbre por deudas314.

Por isso, os Representantes argumentam que no presente caso ficou provado que os fatos se inserem em um contexto e uma prática violatória de exploração humana, que os mesmos seguem o mesmo

modus operandi provado nesta prática e que, ele deverá ser considerado pelo Tribunal em primeiro

lugar na hora de valorar a prova relativa às afetações coletivas e, depois, para determinar o alcance da responsabilidade internacional do Estado.

b) Sobre as omissões do Estado

Segundo, no presente caso a Corte deverá considerar que a impossibilidade de alegar provas adicionais obedece, em grande parte, às omissões e negligências das autoridades do Estado. A respeito, a Corte tem destacado em repetida jurisprudência que os Estados não podem se amparar

311 Corte IDH. Caso de Personas Dominicanas y Haitianas Expulsadas de la República Dominicana. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 28 de agosto de 2014. Série C No. 282, pars. 400 e 401.

312 Idem, pars. 167 a 171 e 382 a 384.

313 Declaração pericial de Ana Carolina Román, 18 de fevereiro de 2016. 314 Declaração pericial de Cesár Rodríguez Garavito, 18 de fevereiro de 2016.

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em sua própria negligência e inefetividade de investigação e situação de impunidade em que permanecem os fatos para subtrair-se de sua responsabilidade315.

No caso concreto, ficou provado que as organizações Representantes se viram incapacitadas em muitas ocasiões de obter prova que haveria sido fundamental nos processos penais posteriores, por razões de segurança. Como sustentou a Sra. Ana de Souza na audiência pública, a Comissão Pastoral da Terra não pôde se apresentar na Fazenda Brasil Verde à época dos fatos por motivos de segurança316. O Padre Ricardo Rezende, testemunha do caso, também explicou as tensões entre o objetivo da Comissão Pastoral da Terra de reunir prova com os riscos associados em acompanhar as vítimas:

Além de preservar para o futuro a memória dessa gente na história de suas lutas, queríamos ter provas para denunciar os crimes e nos preparar a possíveis ações das empresas denunciadas, inclusive judicialmente. Estávamos sobre um barril de pólvora, tamanha a tensão. Enfrentávamos empresas poderosas, isolados física e politicamente, sem uma sociedade civil organizada, sem o apoio e a fiscalização da imprensa e sem dinheiro. Muitos agentes da Pastoral recebiam ameaças de morte317.

O Padre Rezende passa a narrar a primeira ameaça de morte que recebeu por lutar contra o trabalho escravo, em que o fazendeiro contratou homens para assassinar o Padre Camio, “e um policial militar [lhe] avisou que [ele] seria morto”318. Ademais, a Sra. De Souza mencionou na audiência pública que as fazendas da família proprietária em Sapucaia eram grandes e distantes dos povoados mais próximos319.

Sem prejuízo da impossibilidade dos Representantes de obter prova adicional, tal tarefa era obrigação do Estado e não dos Representantes. Ficou provado, e se desenvolve mais adiante neste escrito, que o Estado conhecia a existência de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde, diante do qual não realizou as tarefas de investigação e fiscalização de maneira adequada, o que haveria garantido a produção e custódia de prova vital para os processos posteriores.

Ao mesmo tempo, os Representantes reconhecem que parte da prova que têm no presente caso se deriva das diligências de atores estatais à Fazenda Brasil Verde. Neste sentido, importante destacar que em algumas diligências foram coletadas provas importantes para a determinação de responsabilidades e caracterização da conduta delitiva. Contudo, na maioria das vezes, as fiscalizações falharam no dever de produção de prova, não coletando provas fundamentais para a responsabilização penal, trabalhista e civil de todos os envolvidos nas graves violações de direitos humanos constatadas na Fazenda Brasil Verde, como será demonstrado na sequência.

315 Corte IDH. Caso J. vs. Perú. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 27 de novembro de 2013, par. 356; Caso Kawas Fernández vs. Honduras. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 3 de abril de 2009. Série C No. 196, par. 97, e Caso Rosendo Cantú e otras vs. México, par. 104.

316 Testemunho de Ana de Souza Pinto, 18 de fevereiro de 2016.

317 Declaração de Ricardo Rezende, anexo 1.a. da comunicação dos representantes de 08 de fevereiro de 2016, p 5-6. 318 Declaração de Ricardo Rezende, anexo 1.a. da comunicação dos representantes de 08 de fevereiro de 2016, p 6. 319 Testemunho de Ana de Souza Pinto, 18 de fevereiro de 2016.

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Somado ao contexto provado, o fato de que o Estado descumpriu sua obrigação de investigar e obter prova fundamental sobre os fatos acontecidos na Fazenda Brasil Verde deveria afetar o ônus da prova dos Representantes e do Estado no caso particular.

Por todo o anterior, solicitamos à Corte ter em conta estas considerações ao estabelecer o ônus da prova que corresponde às partes e analisar a prova remetida.

2. A suficiência da prova direta no caso particular

Sem prejuízo do anterior, os Representantes sustentam que apresentaram prova direta suficiente, de forma documental, testemunhal e pericial para provar as violações alegadas nesta seção.

Durante a audiência pública o representante do Estado questionou a existência de prova direta das formas contemporâneas de escravidão pelos fatos posteriores a 1998320. A respeito, tal e como ficou assentado na seção de fatos supra, os Representantes sustentam que a prova constante no processo internacional permite à Corte atestar os fatos e determinar as violações alegadas. Como se infere dessa seção, os Representantes apresentaram prova da fiscalização do ano 2000321, declarações de vítimas322 e das pessoas que lhes assistiram323, verificações físicas324 e os autos da Ação Civil Pública que resultou da fiscalização do ano 2000325.

Assim mesmo, durante a diligência in situ, foram produzidas importantes provas testemunhais a partir das declarações das vítimas do presente caso, que não só confirmaram os fatos e o contexto descrito acima, mas detalharam e agravaram as violações de natureza individual e coletiva sofridas diretamente pelas vítimas, especificamente relativa aos fatos vocorridos no ano de 2000.

De toda esta prova se infere a existência de formas de contemporâneas de escravidão na Fazenda Brasil Verde entre 1998 e 2002, da que se deriva as violações alegadas no processo internacional. A prova inclui informação detalhada individualizada bem como a respeito de situaçãoes que afetaram o coletivo de trabalhadores, como por exemplo, a situação de corção, vigilância, as condições de trabalho e o sistema de barracão.

320 Alegações finais orais apresentadas pelo Representante do Estado Sr. Boni Moraes Soares, audiência pública, dia 19 de fevereiro de 2016.

321 Ministério do Trabalho e Emprego. Delegacia Regional do Trabalho do Estado do Pará. Relatório de Viagem, de 31 de março de 2000, subscrito pelos Auditores Fiscais do Trabalho João Elias da Silva Nascimento, Francisco Henrique da Silva Abreu, e Charles Ribeiro de CastrAnexo 12 do EPAP.

322 Depoimento de Antonio Fernandes da Costa, Anexo 106 do EPAP; , Depoimento de Francisco de Assis Felix, Anexo 107 do EPAP, ver también Reportagem da Rede Globo de Televisão, exibida no Jornal Nacional, Anexo 105 do EPAP, Reportagem da Rede Globo de Televisão, exibida no Jornal Nacional.

323 Testemunho de Ana de Souza Pinto, 18 de fevereiro de 2016. Declaração por affidávit de Ricardo Rezende, anexo 1.a. da comunicação dos Representantes de 08 de fevereiro de 2016.

324 Ministério do Trabalho e Emprego. Delegacia Regional do Trabalho do Estado do Pará. Relatório de Viagem, de 31 de março de 2000, Anexo 12 do EPAP, Ministério do Trabalho e Emprego. Delegacia Regional do Trabalho do Estado do Pará. Relatório de Viagem, de 31 de março de 2000, subscrito pelos Auditores Fiscais do Trabalho João Elias da Silva Nascimento, Francisco Henrique da Silva Abreu, e Charles Ribeiro de Castro.

325 Ação Civil Pública (ACP 107/2000 (VT-CA-619/2000)), Anexo 11 do EPAP, Ministério Público do Trabalho. Procuradoria Regional do Trabalho da 8ª Região. Ação Civil Pública contra João Luiz Quagliato – Fazenda Brasil Verde. ACP 107/2000 (VT-CA-619/2000).

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Por outro lado, embora as peritas Dodge e Araujo tenham feito referência a uma denúncia penal no que diz respeito à fiscalização do ano 2000326, os Representantes não tiveram acesso a este expediente, ainda que solicitado pela Corte, sob a alegação que os autos do processo teriam desaparecido – que por si é uma violação de direitos, como se abordará na sequência. Sustentamos que por se tratar de denúncia penal baseada no artigo 149 do Código Penal brasileiro, em uma época em que somente se produziam denúncias penais pelas situações mais graves327, a existência deste processo também permite certas inferências probatórias.

Portanto, os fatos particulares do caso, resumidos supra na seção de fatos, são suficientes para estabelecer as violações de direitos humanos que a seguir expomos.