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Considerações sobre Drácula como personagem

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Capítulo II – A PERSONAGEM DRÁCULA

2. Considerações sobre Drácula como personagem

A seguir vamos observar a personagem Drácula um pouco mais detalhadamente, porém é importante ressaltar que não é nosso objetivo reproduzir tudo o que já foi publicado acerca do tema, mas sim apontar algumas reflexões que permitam compreender essa personagem com maior clareza.

Assim, inicialmente vamos nos deter nos ensaios reunidos no livro A Personagem de Ficção organizado por Antônio Candido e que também apresenta textos de Anatol Rosenfeld e Paulo Emilio Salles Gomes dentre outros. A partir dos conceitos teóricos ali comentados poderemos entender melhor Drácula como personagem literária.

A primeira questão a ser tematizada é a própria noção do que seria literatura. No texto inicial, Literatura e Personagem, Rosenfeld apresenta delimitações sobre o conceito de literatura.

Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que tradicionalmente se costuma chamar “belas letras” ou “beletrística”. Trata-se, evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras – obras científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha etc. Dentro deste vasto campo das letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu traço distintivo parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou imaginário. (ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.11-12)

Porém se valer somente do caráter ficcional não é suficiente para fazer esta delimitação. Rosenfeld aponta os Sermões do Padre Vieira, os escritos de Pascal e os diários de Kafka como exemplos de textos que não tem caráter ficcional ou imaginário,

mas que nenhum pesquisador da literatura hesitaria em inserir dentro deste campo. Assim:

Os critérios de valorização, principalmente estética, permitem- nos considerar uma série de obras de caráter não-ficcional como obras de arte literárias e eliminar, de outro lado, muitas obras de ficção que não atingem certo nível estético. O uso conjunto de ambos os critérios recortaria, dentro do próprio campo das belas letras, uma área de intersecção limitada àquelas obras que ao mesmo tempo tenham caráter ficcional e alcancem alto nível estético. (ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.12)

Ficando desta maneira evidente a posição do romance Dracula dentro do campo da literatura, já que combina ficção e valor estético. Rosenfeld, também assinala a personagem como elemento preponderante para a caracterização da ficção.

Como indicadora mais manifesta da ficção é por isso bem mais marcante a função da personagem na literatura narrativa (épica). Há numerosos romances que se iniciam com a descrição de um ambiente ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta, um diário, uma obra histórica. É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária. (ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.23)

Este poder da personagem em caracterizar o texto fictício reforça a justificativa para a disposição, no desenvolvimento do presente estudo, em tomar principalmente, dentre os elementos do romance, a personagem Drácula como objeto de estudo.

O texto de Antonio Candido, A Personagem do Romance, busca a “verdade” da personagem, que está contida na organização estrutural interna do romance e não na equivalência da personagem com a realidade.

Portanto, originada ou não da observação, baseada mais ou menos na realidade, a vida da personagem depende da economia do

livro, da sua situação em face dos demais elementos que o constituem: outras personagens, ambiente, duração temporal, idéias. Daí a caracterização depender de uma escolha e distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência. (CANDIDO et al, 2007, p.75)

Candido (2007, p.54) enfatiza a importância da personagem, “pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna”. Destacando-se dentre os outros elementos centrais do desenvolvimento romanesco, o enredo e as idéias, pois é na personagem que reside “a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos” (CANDIDO, 2007, p.54). Mas faz uma ressalva: “Isto nos leva ao erro, frequentemente repetido em crítica, de pensar que o essencial do romance é a personagem, - como se esta pudesse existir separada das outras realidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida” (CANDIDO, 2007, p.54). Aqui podemos observar que Drácula, em relação à capacidade da personagem de existir fora da realidade interna do romance, foge desta afirmação, pois transcende o romance. Esta personagem, devido às numerosas adaptações em diferentes meios de comunicação de massa, principalmente o cinema, se tornou “maior” que o romance, passando a existir fora de sua realidade interna, de seu enredo e das relações com as outras personagens presentes na obra de Stoker. Drácula pode ser visto em filmes que o deslocam totalmente do contexto espacial e temporal apresentado no romance, seja ambientando o Conde na década de 1970, em meio ao movimento hippie, como na película da Hammer, Dracula A.D. 1972 (também conhecido como Drácula no mundo da mini-saia, produção inglesa dirigida por Alan Gibson em 1972), seja levando-o para o oriente para se defrontar com lutadores de artes marciais, caso de The Legend of the

filmes de Hong Kong, Shaw Brothers, em 1974), ou então adicionando virtudes e sentimentos como amor e compaixão a seu caráter maléfico e assim retratá-lo aproximando-o da figura do anti-herói, como na versão dirigida por Coppola, Bram Stoker’s Dracula (EUA, 1991). A partir destes exemplos podemos pensar que ao distanciar a personagem da estrutura interna do romance esta estaria transformando-se e desvirtualizando-se, o que de fato ocorre, porém devemos notar que a personagem em questão mantém características básicas que permitem o pleno reconhecimento desta, ainda se mostra como vilão (na maioria das vezes como a epítome do mal), apesar do afastamento em relação ao texto original. Assim, a personagem Drácula passa a existir fora da lógica do romance e vai perpetuando sua existência através da cultura de massa que o reproduz e recria-o regularmente ao longo do tempo.

Retomando o texto de Candido notemos que o autor enfatiza o processo de mudança do romance moderno na direção da complexidade da personagem dividindo-a em dois pólos.

1) como seres íntegros e facilmente delimitáveis, marcados duma vez por todas com certos traços que os caracterizam; 2) como seres complicados, que não se esgotam nos traços característicos, mas têm certos poços profundos, de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério. (CANDIDO et al, 2007, p.60)

Esta divisão quanto à caracterização já estava presente no século XVIII, definida como “personagens de costumes” e “personagens de natureza”. Esta distinção aparece nos dias de hoje sob a denominação de “personagens planas” e “personagens esféricas”. A personagem Drácula, inicialmente, creio que esteja inserido no campo das “personagens planas”, pois sempre se manifesta através de seus traços mais característicos que evocam a representação máxima do mal. Por outro lado as várias adaptações que a personagem sofreu acrescentaram novos traços característicos, como

por exemplo, a busca pela reencarnação de sua amada, enriquecendo sua mitologia e aumentando sua complexidade. Assim a personagem Drácula que “vive” independentemente do romance seria mais complexa que seu equivalente que reside no texto original, porém, mesmo assim, ainda não teria uma multiplicidade de traços capazes de nos surpreender e assim ser classificada como autêntica “personagem esférica”.

Abordando outro tópico de análise do texto literário: o da proximidade ou fidelidade ao real, Candido (2007, p.70) estabelece sete categorias de personagens que oscilam “entre dois pólos ideais: ou é uma transposição fiel de modelos, ou é uma invenção totalmente imaginária”. A primeira categoria é de personagens transpostas com alguma fidelidade de modelos apresentados ao autor por experiência direta, seja interior ou exterior. No caso da experiência interior a personagem acaba por incorporar a vivência e sentimentos do romancista. Já no caso da experiência exterior a personagem deve incorporar traços de pessoas com as quais o escritor teve contato direto. A categoria seguinte inclui as personagens baseadas de modelos anteriores, reconstituídos indiretamente pelo escritor, ou por pesquisa documental ou mesmo por testemunhos. A terceira categoria abarca as personagens que tomam como referência um modelo real, mas que serve apenas como ponto de partida para a imaginação do autor, que acaba por desfigurá-lo. Porém ainda é possível identificar o modelo inicial. Drácula se encaixa na quarta categoria:

Personagens construídas em torno de um modelo, direta ou indiretamente conhecido, mas que apenas é um pretexto básico, um estimulante para o trabalho de caracterização, que explora ao máximo as suas virtualidades por meio da fantasia, quando não as inventa de maneira que os traços da personagem resultante não poderiam, logicamente, convir ao modelo. (CANDIDO et al, 2007, p.72)

A categoria seguinte apresenta personagens que utilizam um modelo real dominante, somado a outros modelos secundários na sua construção, todavia o eixo central formado pelo modelo dominante é plenamente reconhecível. A sexta classificação é uma junção de fragmentos de diversos modelos vivos, sem predominância de uns sobre outros, formando uma personalidade nova. A sétima e última categoria trata das personagens “cujas raízes desaparecem de tal modo na personalidade fictícia resultante, que, ou não tem qualquer modelo consciente, ou os elementos eventualmente tomados à realidade não podem ser traçados pelo próprio autor” (CANDIDO, 2007, p. 73).

Stoker teve acesso a documentos e relatos que o municiaram com matéria prima não apenas para a criação de sua personagem principal, mas também para a localização da primeira parte do romance na Transilvânia, região em que nunca esteve. Partindo de informações sobre o Drácula histórico, Vlad Tepes, o escritor desenvolveu, criou e acentuou características do modelo real para obter o Drácula fictício, explorando os traços de sadismo e crueldade do príncipe da Wallachia até transfigurá-lo num vampiro, predador natural (neste caso, sobrenatural seria mais apropriado) do ser humano. Nas comemorações do centenário da publicação do romance de Stoker foram disponibilizados para consulta os diários e os textos originais contendo as anotações do autor. Nestes documentos fica claro que Stoker já tinha consistentemente construído sua personagem, emprestando do cruel príncipe seu nome e sua trajetória pra construir seu passado e localizar sua narrativa (MELTOM, 2003, p.226). Entretanto este não é o único modelo que pode ser identificado na gênese de Drácula. Vale lembrar que Stoker “tinha lido Carmilla, de Sheridan Le Fanu, publicado pela primeira vez em 1872, alguns anos antes” (MELTON, 1994, p.754), e que outros dois vampiros literários antecedem Drácula, Sir Francis Varney, personagem título de Varney the Vampyre, escrito por James Malcolm Rymer, e Lord Ruthven, criação de John Polidori para o

conto The Vampyre, publicado em 1819. Ambos podem ser apontados como influências na criação de Drácula, pois já se apresentavam ao público como aristocratas modernos e urbanizados em contraposição ao vampiro folclórico que vivia entre camponeses nas zonas rurais. Outro elemento, apontado por estudiosos, na gênese desta personagem é o ator britânico Sir Henry Irving, proprietário do Lyceum Theatre que era gerenciado por Stoker, o qual mantinha enorme admiração pelo ator e teria utilizado traços de sua personalidade para elaborar Drácula. Assim, somados aos modelos vivos somam-se os modelos ficcionais e imaginários na gênese desta personagem.

Paulo Emilio Salles Gomes, no texto A Personagem Cinematográfica, no livro organizado por Candido, parte das considerações em relação à personagem no romance e no teatro para chegar a uma exposição da personagem no cinema.

A personagem de romance afinal é feita exclusivamente de palavras escritas, e já vimos que mesmo nos casos minoritários e extremos em que a palavra falada no cinema tem papel preponderante na constituição de uma personagem, a cristalização definitiva desta fica condicionada a um contexto visual. (...) Essa circunstância retira do cinema, arte de presenças excessivas, a liberdade fluida com que o romance comunica suas personagens aos leitores. (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.111)

Desta maneira a definição física completa de Drácula apresentada pelo cinema distancia-se da descrição da personagem romanesca e penetra no imaginário coletivo, perdurando até hoje. Esta poderosa imagem “recriada” pelo cinema em Dracula (1931), com Bela Lugosi no papel principal, teve sua origem no teatro. O roteiro do filme não se trata de uma adaptação direta do romance, mas sim de uma adaptação da peça de teatro, esta sim, adaptada diretamente da novela de Stoker. Lugosi já interpretava o Conde nos palcos, assim a caracterização física da personagem já existia, mas é no cinema que ela se fragmenta e ganha maior poder de identificação com o público.

De um certo ângulo, a intimidade que adquirimos com a personagem é maior no cinema que no teatro. Neste último a relação se estabelece dentro de um distanciamento que não se altera fundamentalmente. Temos sempre as personagens da cabeça aos pés, diferentemente do que ocorre na realidade, onde vemos ora o conjunto do corpo, ora o busto, ora só a cabeça, a boca, os olhos, ou um olho só. Como no cinema. Num primeiro exame, as coisas se passariam na tela de forma menos convencional do que no palco, e decorreria daí a impregnância maior da personagem cinematográfica, o desencadeamento mais fácil do mecanismo de identificação. (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.111-112)

Ainda fazendo a comparação entre palco e tela “podemos admitir que no teatro o ator passa e o personagem permanece, ao passo que no cinema sucede exatamente o inverso” (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.114). Entretanto, pela longevidade de Drácula no cinema e a renovação de atores que o interpretaram, podemos descartar esta relação. “O que persiste não é propriamente o ator ou a atriz, mas essa personagem de ficção cujas raízes sociológicas são muito mais poderosas do que a pura emanação dramática” (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.115). Gomes, refletindo sobre a duração da personagem cinematográfica coloca que: “A perspectiva histórica nos permite assegurar que as personagens de origem literária e teatral são capazes de viver séculos e de integrar-se definitivamente numa dada cultura” (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.117). Porém, a popularidade e resistência da personagem, neste caso, se devem aos veículos de massa, principalmente ao cinema, como aponta Gomes.

A vitalidade da personagem literária, novelística ou teatral, reside no seu registro em letras, na modernidade constante de execução garantida por essas partituras tipográficas. A personagem registrada na película nos impõe até os ínfimos pormenores o gosto geral do tempo em que foi filmada. (GOMES, Paulo Emilio Salles. A personagem cinematográfica. In CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.117)

No caso de Drácula, este registro dos gostos e tendências referentes ao tempo da produção do filme se mantém, mas devido às numerosas versões cinematográficas realizadas ao longo do tempo, a personagem está sempre renovada dentro do contexto sócio-cultural refletido em cada uma delas, o que acaba por lhe imprimir um caráter de atualidade. Drácula se recusa a morrer, ou melhor, (já que nos referimos a um morto- vivo) desaparecer. Persiste sua existência cinematográfica há 78 anos, sempre rejuvenescendo e renovando-se, disposto, de acordo com sua natureza vampírica, a se manter assim ao longo da eternidade.

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