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Passados 21 anos de uma ditadura militar agressiva e opressiva, o povo brasileiro finalmente se viu livre daquele regime. Da monarquia imperial ao presidencialismo e democracia, as constituições brasileiras trilharam um longo e tortuoso caminho até consolidar aquela conhecida com

As heranças de uma recente ditadura nacional, juntamente da Guerra Fria de alcance mundial, exerceram uma forte influência para se evitar os perigos do autoritarismo e garantir o bem estar social aos cidadãos, por meio de uma democracia fortalecida. A Carta de 1988, então, consolidou mecanismos de participação popular em decisões importantes para o país e o princípio da publicidade.

Além das lições advindas de períodos autoritários, houve outras peculiaridades na construção da nova constituição:

Em primeiro lugar, foi, de modo extraordinário, alargado o corpo eleitoral no país: 69 milhões de votantes se habilitaram ao pleito de novembro de 1986. [...] A primeira eleição presidencial verdadeiramente disputada entre nós, em 1910, a que se travou entre as candidaturas de Hermes da Fonseca e Rui Barbosa, contou com apenas 700.000 eleitores, 3% da população, e somente na escolha dos constituintes de 1946 é que, pela primeira vez, os eleitores representaram mais de 10% do contingente populacional.

Em segundo lugar, há que se destacar o papel dos meios de comunicação da televisão, do rádio e dos jornais , tornando possível a mais vasta divulgação e a discussão mais ampla dos eventos ligados à preparação do texto constitucional. (TÁCITO, 2012, p. 6).

Estes fatores influenciaram num alargamento da participação popular na construção do que viria a ser a democracia contemporânea brasileira. Se àquela época as tecnologias de comunicação exerciam um papel importante para divulgar e discutir pautas públicas, é indiscutível a importância delas hoje, 32 anos e inúmeros avanços tecnológicos depois.

À busca pela garantia da liberdade e dos direitos individuais que anteriormente foi a saída contra os abusos do poder do soberano, destacadamente no período após a Revolução Francesa foram acrescentados novos direitos do cidadão, na tentativa de conter alguns excessos da tendência liberal e privada. Por conseguinte, foram consolidados na constituição direitos econômicos e sociais como: direito ao trabalho, à saúde, à habitação, à assistência social, dentre outras garantias e direitos da coletividade.

A Constituição brasileira de 1988 mantém e amplia a diretriz das Constituições anteriores, relativa aos direitos fundamentais, objeto de título próprio, que se desdobra em capítulos dedicados sucessivamente aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, aos Direitos Sociais e aos Direitos Políticos. [...] Refletindo a reação contra a anterior experiência autoritária de

governo, a Assembleia Constituinte traduz, em normas programáticas, o anseio de atendimento a aspirações populares de liberdade e de justiça social, segundo o movimento pendular próprio das fases de restauração democrática. (TÁCITO, 2012, p. 21).

A ditadura militar relativizou direitos individuais que, a partir da Constituição de 1988, voltaram a ser garantidos, especialmente a inviolabilidade da vida privada e intimidade, proteção à honra e à imagem e direito à indenização moral e material em casos de violação.

O anseio do país por recuperar seus direitos individuais e redemocratizar a nação comprovou-

ruas do Rio de Janeiro. Segundo pesquisa do Ibope, 85% do povo brasileiro compartilhava da intenção de redemocratizar o país.

Apesar da vontade do povo, os militares optaram pela abertura lenta e gradual, convocando eleições indiretas em 1985. No pleito em questão Tancredo Neves derrotou o candidato apoiado pelos militares, Paulo Maluf. O presidente eleito deixou clara a sua intenção de, como primeira tarefa do governo, promover a organização do estado por meio de um debate constitucional.

No entanto, um dia antes de sua posse oficial, Tancredo foi submetido a uma cirurgia e faleceu em 21 de abril de 1985, abrindo a vaga para o vice-presidente, José Sarney, cujo partido contava com dissidentes do governo militar. Dados os acontecimentos, foi transferida para Sarney a obrigação de convocar a Constituinte.

3.7.1 A Assembleia Nacional Constituinte

Em fevereiro de 1987 iniciou-se a Assembleia Nacional Constituinte ANC, em sessão presidida por Moreira Alves, ministro indicado por militares para o Supremo Tribunal Federal STF. A indicação gerou discussão, motivada principalmente pela frente progressista, que questionava as intenções de um indicado militar para a atividade constituinte. Conta-se que José Genoino, deputado federal do Partido dos Trabalhadores, insurgiu-se aos gritos na abertura da sessão presidida por Moreira Alves, questionando a sua legitimidade para conduzir os trabalhos, sendo ele indicado dos militares.

Seguindo seus trabalhos, a ANC formou-se com 559 constituintes, divididos em 13 partidos. Através de votações foram decididas a sua presidência, vencida por Ulisses Guimarães, e a possibilidade de integração à assembleia dos senadores eleitos em 1982, outro fato gerador de discussão. Apontava-se que estes senadores não tinham sido eleitos visando a participação na Constituinte e temia-se a visão alinhada ao regime militar que eles poderiam trazer.

Na sequência, fez-se necessário estabelecer o Regimento Interno que organizaria os trabalhos da Constituinte, inclusive as formas de participação popular e das organizações civis no processo.

Em entrevista, o deputado José Genoino também recorda a participação da sociedade brasileira nos trabalhos da Constituinte:

O índio se pintava e ia falar no plenário. O banqueiro, a UDR [União Democrática Ruralista], a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo], as mulheres, os torturados, os quilombolas, tudo, que eu acho que é um processo interessante. (MACIEL, 2020).

Na mesma entrevista, a pesquisadora Caroline Bauer ressalta a importância desta participação dizendo:

Aquilo que estava latente aparece com força, que as pessoas tenham a sua campanha tenha sido derrotada, não significou uma derrota no sentido da rearticulação da população, dos movimentos sociais e das demandas em relação ao Estado que vem ser corroborado em todo esse processo de participação na Constituinte e depois com as eleições diretas para presidente em 1989. (MACIEL, 2020).

Comissões e subcomissões foram criadas para organizar o trabalho da ANC. A participação popular direta foi garantida na previsão de audiência pública e de iniciativa popular, esta última operacionalizava a apresentação de projetos de interesse social para integrar a constituição. Para serem aceitos os projetos deveriam contar com, no mínimo, 30 mil assinaturas e o apoio de 3 entidades. O convite para participar da discussão constitucional foi estendido ao país por meio das câmaras de vereadores, assembleias legislativas e tribunais, que tinham a opção de enviar sugestões.

Com o fim de concatenar o trabalho das comissões e subcomissões foi criada a Comissão de Sistematização. Na estrutura de funcionamento da ANC havia 8 comissões, as quais se dividiam em 3 subcomissões. Cada uma das últimas apresentava um texto que, mais tarde, se unia com os outros 2 para formar um

anteprojeto que seria, por fim, posto junto de todos os 8 anteprojetos e levado à Comissão de Sistematização para que fosse feito o exercício de compatibilidade entre as propostas e apresentada a versão final ao plenário da Constituinte para aprovação. Houve significativo conflito entre as propostas de anteprojeto, haja vista os interesses contrários defendidos por cada partido. Não raras vezes os partidos concentravam suas forças em uma comissão específica, alinhada com seu interesse. O resultado eram comissões majoritariamente formadas por um partido específico ou por um posicionamento semelhante que, quando comparado ao de outra comissão por sua vez encabeçada por outro partido, com outras pautas apresentava manifesta contradição, dificultando a tarefa de manter um texto constitucional coerente.

Nessa etapa, a participação dos constituintes e da população foi intensa, tendo sido concedidas 182 audiências públicas, encaminhadas 11.989 propostas e apresentadas 6.417 emendas aos anteprojetos. A sobrecarga de informações e de temas, a inexperiência de parte dos parlamentares e normas regimentais novas e imprecisas produziram algumas votações confusas. Por sua vez, o procedimento descentralizado e o menor número de parlamentares em cada comitê favoreceram a obtenção e a troca de informações, recompensaram os constituintes mais atuantes e propiciaram a elaboração de anteprojetos extensos e detalhistas. As primeiras grandes polêmicas e os contornos básicos da futura Constituição manifestaram-se nessa fase. (NOGUEIRA, 2009).

Dentre as incumbências da Comissão de Sistematização estava a de receber as propostas de emenda de iniciativa popular, abrindo espaço para uma audiência pública na qual os proponentes eram convidados a defender, perante a ANC, a viabilidade de sua emenda. Os participantes da comissão debatiam as propostas e após votação as encaminhavam para o plenário da Constituinte.

Conforme os trabalhos avançaram tornou-se perceptível que a Comissão de Sistematização acabou por ficar com o poder de alterar os projetos à constituição (aqueles originados nas comissões e enviados para a Comissão de Sistematização), de forma a preterir o trabalho dos demais constituintes. Além disso, esta comissão tinha adquirido uma posição política mais alinhada à esquerda, o que desagradou a então crescente organização de centro-direita. Orquestrou-se, assim, uma mudança regimental para diminuir o poder da Comissão de Sistematização. Inseriu-se a possibilidade de propor emendas coletivas e, caso estas obtivessem maioria absoluta de assinaturas de parlamentares, adquiriam prioridade de tramitação. Uma vez aprovada, a proposta só poderia ser alterada por maioria absoluta dos votos. Desta

forma criaram-se vantagens procedimentais para fazer frente ao poder da Comissão de Sistematização.

Por fim, após intensas discussões e conflitos de interesse entre os representantes dos partidos quanto ao rumo a ser tomado pela Constituição, foi aprovada e apresentada, em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil, cujo texto final continha 315 artigos.

Durante o processo de construção desta nova carta ficaram claros os embates entre aqueles que buscavam uma transição conservadora, cautelosa e sobretudo, representavam uma elite que desejava manter privilégios, e os que consideravam a ANC uma oportunidade para mudanças estruturais na organização do país, com forte participação da sociedade civil e dos movimentos populares. O resultado da Constituição de 88 acabou por refletir este embate.

Ulysses Guimarães, presidente da ANC, na solenidade de apresentação da Constituição de 1988, realizada no dia 5 de outubro, abordou o complexo quadro social brasileiro da seguinte forma:

Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora. A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. (MACIEL, 2020).

Em seu discurso, o presidente da ANC aprovou e destacou o papel participativo da população, concretizado em 122 emendas populares, com 12 milhões de assinaturas, e criticou duramente a ditadura.

A Assembleia Nacional Constituinte teve duração de 18 meses. O fato de ter sido um longo período de discussão representa o intenso debate político e social por ela incitado e o esforço empenhado para ouvir a população.