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3. SITUAÇÃO JURÍDICA DOS APÁTRIDAS NO BRASIL

3.2. O marco normativo interno relativo aos apátridas

3.2.1. Constituição Federal

Com relação às normas constitucionais, podemos dividir a nossa atenção em dois momentos. Num primeiro instante, cuidaremos dos dispositivos relacionados à concessão da nacionalidade brasileira originária e derivada e suas implicações na formação ou erradicação da apatridia. No outro ato, cuidaremos dos dispositivos que tratam da aplicação do princípio da igualdade para nacionais e estrangeiros presentes em território pátrio.

No que tange à atribuição da nacionalidade brasileira nata, a Constituição prescreve, em seu art. 12, um sistema misto155. O inciso I transmite a nacionalidade

automática do Estado tanto para os que nascerem em seu território (jus soli) quanto para os que nascerem no estrangeiro cujos pais estejam a serviço da República

154 Apesar da técnica legislativa formal do Brasil na matéria ser lacunosa quanto à garantia de direitos, percebemos que o ramo executivo do Estado é proativo quanto à tentativa de construir soluções para a recepção de indivíduos em situação de migração forçada por razões de desastres climáticos ou em decorrência de situações humanitárias. Como exemplo, podemos citar: i) a Resolução Normativa CNIg n.º 97/2012, posteriormente alterada pela de n.º 102/2013, que concede, sem limite de número, vistos a haitianos deslocados forçadamente para o país em razão do terremoto ocorrido no Haiti em 2010; e ii) a Resolução Normativa CONARE n.º 17/2013, que outorga vistos aos refugiados sírios que buscarem o auxílio do Brasil em decorrência do conflito armado existente na Síria desde meados de 2011. 155 Art. 12. São brasileiros: I - natos: a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira; II - naturalizados: II - naturalizados: a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.

Federativa do Brasil ou, não sendo este o caso, sejam registrados em repartição brasileira competente, subsistindo ainda a opção de o próprio tutelado vir morar no país e, depois de atingida a maioridade, requerer a formalização do seu vínculo (jus

sanguinis).

Com relação às pessoas nascidas no Brasil, automaticamente recebem elas o status de nacionais156. A comprovação dessa condição é feita principalmente pela

certidão de nascimento, documento cuja emissão é gratuita157 e de obtenção cada vez

mais facilitada com o passar dos anos. Informações da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República ancoradas em relatório do IBGE apontam a crescente decaída das taxas de sub-registro de nascimentos no país158.

Salientamos que, por cerca de treze anos, os efeitos da Emenda Constitucional de Revisão n.º 03/1994, a qual foi responsável por modificar a redação da alínea c do inciso elucidado, geraram risco de formação de apátridas filhos de brasileiros nascidos no exterior cujos pais não estivessem a serviço do Estado patrial159. Isso em razão de o texto revisado exigir, para a atribuição da nacionalidade

nata aos brasileiros nesta situação, que viessem eles a residir no país. Ora, e como ficaria o caso daqueles que, tendo nascido em local que adote exclusivamente o critério jus sanguinis, nunca quiserem ou puderem vir aqui morar?

Após perceber a prejudicialidade que poderia causar a manutenção de disposição desta natureza e receber críticas internacionais sobre a sua política de nacionalidade, o legislador constitucional reformou mais uma vez a redação da norma, desta feita por meio da Emenda Constitucional n.º 54/2007, e excluiu a necessidade de vir morar no Brasil o filho de brasileiros nascido no exterior cujos pais não estejam a serviço do Estado para ter reconhecida a sua nacionalidade nata160.

156 Há discussão sobre esse assunto em razão do teor do art. 2º da Lei n.º 818/1949, recepcionada pela Constituição Federal. Segundo o seu texto, se um dos pais da criança for estrangeiro a serviço do seu Estado, a nacionalidade brasileira é opcional. A norma deixa subentendido que, se ambos os pais ostentarem esta condição, o infante não receberá a nacionalidade brasileira. Apesar disso, consideramos que se sobrepõe a tal concepção a força normativa da Constituição Federal de 1988, que, além de ser mais recente, garante maior proteção na matéria da atribuição da nacionalidade. 157 Cf. teor do art. 30 da Lei n.º 6.015/73, alterado pela Lei n.º 9.534/97: “Não serão cobrados emolumentos pelo registro civil de nascimento e pelo assento de óbito, bem como pela primeira certidão respectiva”.

158 BRASIL. SDH. Brasil avança na erradicação do sub-registro civil de nascimento, segundo

IBGE. Disponível em <http://www.sdh.gov.br/noticias/2014/dezembro/brasil-avanca-na-erradicacao-

do-sub-registro-civil-de-nascimento-segundo-ibge>. Acesso em: 28 jan. 2016.

159 A redação do dispositivo, com a modificação da emenda revisora, era a seguinte: “os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira”.

No que diz respeito à naturalização, os dispositivos constitucionais não são tão eficazes para a erradicação da apatridia. O inciso II do art. 12 traz duas hipóteses161. A primeira destinada àqueles que já possuem nacionalidade de origem

e são oriundos de países que comungam da língua portuguesa. É-lhes requerida a residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral162. Os apátridas não estão

contemplados nesse caso, haja vista que, se possuíssem vínculo anterior, obviamente não seriam sem pátria.

O segundo caso prescinde da existência de nacionalidade anterior, uma vez que a Constituição fala apenas em estrangeiros de qualquer nacionalidade, o que, numa leitura afinada com o direito internacional dos direitos humanos, inclui os apátridas. O problema reside na necessidade de residência no país por quinze anos. Uma pessoa privada de nacionalidade dificilmente consegue viver com dignidade num território estatal por tamanho lapso temporal, uma vez que, durante tal interregno, vários dos seus direitos seriam desrespeitados.

Essa leitura nos permite dizer que a Constituição Federal, conquanto seja vanguardista em impedir, por meio de um complexo normativo misto, a formação de apátridas nascidos no país ou filhos de nacionais, carece de equivalente proteção no que tange à integração dos apátridas. A incorporação das convenções de 1954 e 1961 ao nosso ordenamento jurídico não ensejou mudança de mentalidade no legislador reformista constitucional.

Em que pese a deficiência da Constituição Federal quanto à facilitação da naturalização dos apátridas, é ela enfática em objetivar o tratamento igualitário entre as pessoas a partir da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito; a promoção do bem comum dentre os objetivos fundamentais da República; a prevalência dos direitos humanos nas suas relações internacionais; e

para filhos de nacionais nascidos no estrangeiro. Anuario Mexicano de Derecho Internacional, vol.

IX, 2009, p. 484-488

161 Art. 12. São brasileiros: [...] II - naturalizados: a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.

162 O requisito da idoneidade moral é mencionado em mais três momentos na Constituição Federal, especificamente para a nomeação: i) de Ministros do Tribunal de Contas da União (art. 73, § 1º, II); ii) de Ministros do Tribunal Superior Eleitoral (art. 119, II); e iii) dos Juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais (art. 120, § 1º, III). Consideramos que este seja o conjunto de virtudes que recomendam o indivíduo à consideração pública, tais como honra, respeitabilidade, seriedade, dignidade e bons costumes. Estes atributos imprimem uma boa reputação ao seu titular.

a igualdade perante a lei para brasileiros e estrangeiros que estejam em solo pátrio163.

Por estas normas, afere-se que o núcleo duro dos direitos humanos fundamentais nela positivados não se restringe aos brasileiros, sendo extensível aos não nacionais164.

A Constituição brasileira faz parte do conjunto de textos caracterizados pelo seu caráter antropocêntrico e não patrimonialista que emergiu principalmente a partir do início do século XX. A marca destes diplomas é não mais se limitar a definir as funções do Estado e salvaguardar a propriedade da intervenção do poder público, mas condicioná-la à sua função social na medida em que somente atende esse requisito quando utilizada visando o bem comum e a dignidade da pessoa humana, na esteira das Constituições Mexicana de 1917 e Alemã de 1919.

Ao lado do princípio da dignidade da pessoa humana165, que traz em seu bojo

a proteção integral e conjugada de direitos como a integridade pessoal, a saúde, a honra subjetiva e objetiva, a educação, o trabalho e tantos outros, o texto constitucional enfatizou o primado da igualdade, seja dentro do grupo dos nacionais ou entre estes e os estrangeiros, apátridas ou não.

163 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana. [...] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...] IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. [...] Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] II - prevalência dos direitos humanos. [....] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 164 Com exceção dos direitos políticos, que ficaram reservados aos nacionais, na forma do art. 14, §§ 2º e 3º.

165 Há no país larga bibliografia versando sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, norma jurídica cujo conteúdo é de fácil percepção, mas árdua conceituação. Interessante tese de doutoramento escrita por Adriana Dias Vieira traz uma comparação acerca dos discursos acerca deste princípio nas jurisprudências das Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos, além do Supremo Tribunal Federal (VIEIRA, Adriana Dias. Os sentidos da noção de dignidade humana em disputa: consonâncias e dissonâncias discursivas no campo jurídico. 2015. 229f. Tese (Doutorado em

Direito) – Universidade de Florença, Florença, 2015). O atual Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor de Direito Constitucional Luís Roberto Barroso também possui estudo similar, mas levando precipuamente em consideração o trabalho de jurisprudência norte-americano (BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção

de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. 1ª ed. – Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012). Entre várias outras abordagens jurídicas e filosóficas, cf. SOARES, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: em busca do direito justo. – São Paulo:

Saraiva, 2010; NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana:

doutrina e jurisprudência. – 3ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2010; WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant. – São Paulo: Saraiva, 2013.

Canotilho166, citando Anschütz, deixa claro que a igualdade somente se aplica

quando a lei é aplicada sem se olhar a quem. E vai além o português ao definir que esse princípio tem como destinatário principalmente o legislador, que não tem autorização para elaborar marcos normativos responsáveis por tratar distintamente indivíduos cujas situações são similares. As distinções entre pessoas não podem ser produto do arbítrio e imprescindem de fundamento material válido. No caso brasileiro, a Constituição permite diferenciação legal apenas no que tange aos direitos políticos, nada mais.

Mas o intérprete também não pode, imbuído que é do seu senso comum teórico167, aplicar a lei arbitrariamente e estabelecer diferenciações em hipóteses não

permitidas constitucionalmente. Apenas discriminações pautadas na lei são válidas, e desde que essa lei passe pelo crivo da materialidade constitucional. Havendo conflitos em torno de direitos humanos, salvo os políticos, o estrangeiro não pode receber do Poder Judiciário resposta à sua pretensão dissonante da que receberia, em igualdade de condições, o nacional168.

Embora o texto constitucional traga em seu bojo toda essa carga principiológica de isonomia e dignidade da pessoa humana, sabemos que a concretização das políticas públicas pede mais que isso, pois as normas com as quais lidam diariamente os agentes do Estado são leis, decretos, regulamentos, resoluções, portarias, instruções normativas etc.