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3. SITUAÇÃO JURÍDICA DOS APÁTRIDAS NO BRASIL

3.3. A realidade das políticas públicas estendidas aos apátridas

3.3.1. Documentação

O acesso à documentação é um direito humano por se constituir, como já delineado neste trabalho, em condição medular para o acesso aos serviços públicos oferecidos pelo Estado. Como veremos nos próximos itens, as legislações referentes aos temas da saúde, educação, habitação, garantia de renda mínima etc. requerem sempre do postulante a apresentação de documentos válidos emitidos por algum governo, seja nacional ou estrangeiro.

Com relação aos indivíduos nascidos no Brasil, há atualmente poucos problemas quanto à documentação em função das campanhas promovidas pelos governos federal, estaduais e municipais no que tange à concessão facilitada de certidões de nascimento, as quais fazem prova da nacionalidade brasileira. Em geral, dificilmente alguém nascido no país será considerado apátrida. O problema do acesso aos documentos revela-se para os sem pátria que aqui ingressam sem portar documentação de origem, pois os mecanismos regulamentares são falhos.

Com relação ao documento de identidade para estrangeiro previsto no art. 33 da Lei n.º 6.815/80213 e no art. 60 do Decreto n.º 86.715/81214, a sua concessão para

os apátridas é dificultada pela exigência de que o pleiteante tenha ingressado regularmente no Brasil, ou seja, por meio da apresentação de documento de viagem e obtenção de visto (quando necessário). A sua expedição é limitada aos não nacionais que estejam regularmente em solo nacional, excluindo os sem pátria.

213 Art. 33. Ao estrangeiro registrado será fornecido documento de identidade. Parágrafo único. A emissão de documento de identidade, salvo nos casos de asilado ou de titular de visto de cortesia, oficial ou diplomático, está sujeita ao pagamento da taxa prevista na Tabela de que trata o artigo 130. 214 Art. 60. Ao estrangeiro registrado, inclusive ao menor em idade escolar, será fornecido documento de identidade. Parágrafo único - Ocorrendo as hipóteses dos artigos 18, 37 § 2º e 97 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, deverá o documento de identidade delas fazer menção.

O site da Polícia Federal215, na seção de orientações gerais sobre registro e

emissão/renovação de cédulas de identidade para estrangeiro, deixa clara a necessidade de apresentação tanto do documento de viagem válido quanto do visto consular ou, no caso de a permanência ter sido obtida no Brasil, da página do Diário Oficial da União em que foi publicado o respectivo deferimento. Some-se a isso a exigência de pagamento de taxa no valor de R$ 204,77 (duzentos e quatro reais e setenta e sete centavos) em valor atual, o que configura, em muitos casos, o golpe de misericórdia para a impossibilidade de obtenção do documento identificatório.

A maioria das pessoas em situação de apatridia vive em estado de miserabilidade e são auxiliadas por pastorais, as quais fazem-se presentes nas grandes cidades brasileiras216. Ou seja, sobrevivem da caridade das instituições

religiosas. Requerer de tais pessoas o pagamento de taxas para emissão de documentos é negar-lhes acesso a uma prerrogativa elementar da cidadania.

Situação peculiar envolvendo o reconhecimento da condição de apátrida de indivíduo de origem africana e a obrigação do Estado brasileiro de conceder-lhe os benefícios da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e emitir a sua documentação de identificação civil foi vista no Rio Grande do Norte. O Sr. Andrimana Buyoya Habizimana, natural do Burundi, fugiu do seu país para o Brasil por razões de conflitos étnicos tribais típicos do continente africano, além do óbito dos seus parentes. Viajando em navio cargueiro originário da África do Sul, aqui chegou e voou diretamente para Lisboa, de onde foi devolvido pela utilização de documentos falsos. Após regressar, foi condenado a cumpriu a sua pena.

Nesse intermédio, o Burundi, acionado pelo Brasil, não reconheceu a nacionalidade do Sr. Andrimana. A África do Sul tampouco quis recebê-lo de volta. O CONARE negou o reconhecimento da sua situação de refugiado. Criou-se então um limbo jurídico com relação ao seu status, o que o levou a postular do governo brasileiro o reconhecimento da sua situação de apatridia e os benefícios oriundos da Convenção de 1954, ratificada pelo país.

Com a negativa das autoridades executivas, acionou ele a Justiça Federal de primeiro grau no Rio Grande do Norte e obteve sucesso em sua demanda. Em

215 As informações comentadas estão disponíveis em <http://www.pf.gov.br/servicos/estrangeiro/emitir- cedula-de-identidade-de-estrangeiro>. Acesso em: 28 jan. 2016.

216 A maior parte destas pastorais está situada em São Paulo/SP, cidade do país onde se encontra o maior número de migrantes regulares e irregulares (refugiados, apátridas e deslocados).

julgamento de reexame necessário e apelação interposta pela União, foi confirmada a sentença de primeiro grau. O voto condutor do acórdão, de lavra do Juiz Convocado Bruno Leonardo Câmara Carrá, contém reflexão jusfilosófica sobre as obrigações do Brasil perante o direito internacional dos direitos humanos dificilmente encontrada nas resoluções das lides forenses217. Demonstrando o seu desejo de não cumprir as

disposições a que se obrigou, o Estado, através da Advocacia-Geral da União, apresentou recursos extraordinário e especial da decisão colegiada, o que impediu até então o trânsito em julgado da ação.

Enaltecemos a importância deste julgamento para demonstrar que, mesmo com as deficiências da normatização brasileira em termos de acesso à documentação por parte dos apátridas, é possível obrigar o Estado a assim proceder com base nos tratados ratificados pelo país. Caso o indivíduo não possa contratar advogado, poderá se valer dos serviços da Defensoria Pública da União, entidade que, ao concretizar o dever de acesso à justiça ditado constitucionalmente218, assiste judicialmente os

necessitados, sejam nacionais ou estrangeiros219.

Outro documento clássico citado pela legislação cuja emissão é permitida aos apátridas é o passaporte220. Essa previsão, no entanto, possui poucos efeitos práticos,

uma vez que não restam detalhados quais os condicionantes necessários à confecção de tal documento, fazendo com que a tarefa de regulamentação recaia nos ombros do setor policial, o qual conhecidamente não tem preparo técnico para lidar com a proteção dos direitos humanos das minorias.

A página da Polícia Federal na internet repete o texto legal e anuncia a possibilidade de emissão de passaporte para apátridas, mas não estabelece

217 Destaque para as passagens nas quais o relator menciona as passagens de obras jusfilosóficas discutidas no capítulo introdutório deste trabalho, além de dialogar com o recorte da jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos que trata da proteção dada aos apátridas. Cf. BRASIL, TRF 5ª Região, Apelação em Reexame Necessário n.º 13.349/RN, Relator(a): Juiz Federal Convocado

Bruno Leonardo Câmara Carrá, Terceira Turma, julgado em 29/09/2011, DJU de 17/11/2011.

218 CF/1988. Art. 5º [...] LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; [...] Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

219 Informação de assistência aos estrangeiros disponível em: <http://www.dpu.gov.br/assistencia- juridica-internacional>. Acesso em: 27 jan. 2016.

220 A previsão do passaporte para apátridas é encontrada no art. 55, I, a, da Lei n.º 6.815/80 e no art. 94, I, do Decreto n.º 86.715/81.

claramente quais os elementos que devem ser apresentados para tanto221. O

pagamento de taxa também é necessário.

Enfim, as mesmas razões que dificultam a obtenção da cédula de identidade de estrangeiro também embaraçam o alcance do passaporte pelos sem nacionalidade. Apesar de o Brasil ter um discurso externo enfático quanto à necessidade de facilitação do acesso à documentação pelos apátridas, a sua realidade normativa é inversa.