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3. Do projecto profissional à prática quotidiana: configuração do referencial de análise

3.1.3. Constrangimentos, desafios e expectativas

O interesse pela reflexão crítica e pela pesquisa colaborativa e participativa pode, em certa medida, como refere Jan Fook, ser visto como uma resposta ao dilema de como facilitar a mudança em face da incerteza, já que estas metodologias de pesquisa permitem que os pesquisadores se engajem numa interacção criativa no desenvolvimento do conhecimento (FOOK, 2003b: 127).

Desde logo, impõe-se uma questão difícil, também formulada por Jan Fook: a pesquisa serve as necessidades de quem (FOOK, 2003b: 129)? Tratando-se de uma metodologia de pesquisa co-participativa, em que as co-investigadoras, mediante a gravação de atendimentos, tornaram as suas práticas profissionais observáveis, quais as suas necessidades ao nível de conhecimento, que podem ser colmatadas a partir dos resultados da pesquisa?

Como já referido, o Projecto ACASS nasce da iniciativa de um outsider, relativamente ao território onde foi implementado, sendo o mesmo um ‘semi-outsider’ relativamente ao Serviço Social68, e floresce com o envolvimento do Núcleo Executivo do CLASS69, que nele reconhece uma boa estratégia, com vista à melhoria da qualidade dos serviços.

Tratando-se de um processo induzido a partir de fora, o investigador outsider contou, desde a primeira etapa, com o apoio do NE do CLASS que, desempenhando um papel de introdutor, mediador e facilitador, potenciou a capitalização de contactos e de relações, conducentes à abertura de terrenos (BINET & SOUSA, 2011: 71). Importa referir que, de entre os sete membros do NE do CLASS, apenas dois eram assistentes sociais – a autora desta tese e a representante da Segurança Social – sendo de relevar, ainda assim, o interesse generalizado, suscitado desde o primeiro momento.

68 Sociólogo e antropólogo, Michel Binet é docente, há vários anos, na licenciatura em Serviço Social, ministrada no ISSSL.

86 O bom acolhimento e entusiasmo suscitado pela proposta, no seio do NE do CLASS, foi de alguma forma contagiante, tendo-se registado um número bastante significativo de profissionais que manifestaram a sua intenção de aderir ao Projecto, como já referido.

No entanto, como atrás mencionado, esta observação de dentro e de perto das práticas dos profissionais nas suas interacções com os utentes, para além da adesão dos profissionais, carece, também, da autorização das instituições envolvidas e do consentimento informado dos utentes.

Assim, e no que diz respeito à autorização das instituições, registou-se uma quebra de cerca de 30% entre a manifestação de interesse inicial de profissionais participantes no Fórum de lançamento do Projecto e as autorizações institucionais recebidas, como já mencionado. Recordando Marilda Iamamoto, a inserção institucional do assistente social interfere no conteúdo, nas formas assumidas pelo seu trabalho e nos seus resultados, já que, ainda que dispondo de uma relativa autonomia técnico-profissional e ética na condução do seu trabalho, as organizações “estabelecem metas a atingir, detêm poder para normatizar as atribuições e competências específicas requeridas de seus funcionários, definem as relações de trabalho e as condições de sua realização” (IAMAMOTO, 2012: 46).

Já no que toca ao consentimento dos utentes, a situação foi bem diferente, com uma expressão residual de não-consentimentos.

Outra questão que importa mencionar, relaciona-se com o facto de se tratar de um projecto de investigação que, embora tenha recebido acolhimento institucional – primeiro do NE do CLASS e depois das instituições aderentes –, parte da iniciativa de um investigador singular70, sem financiamento. Esta situação não seria diferente de tantas outras pesquisas, nomeadamente em sede de preparação de teses de doutoramento, não fora a sua característica de pesquisa co-participativa e a necessidade de se estabelecerem relações de trabalho que vão para além de uma colaboração pontual, com todas as implicações que isso envolve. Embora tenham sido realizados vários encontros, nomeadamente durante a etapa relativa ao planeamento e preparação da inquirição, não foi possível estabelecer reuniões periódicas e uma maior aproximação entre insiders e outsiders.

Por outro lado, a morosidade que implica uma transcrição detalhada do corpus, no

87 âmbito da análise da conversação, dificulta o retorno expedito dos dados, o que facilmente frustra as expectativas das co-investigadoras. A acrescer, a expectativa de retornos personalizados, numa lógica de supervisão, o que, não sendo exequível nas circunstâncias dadas, foi recorrentemente referenciado como ideal, o que obrigou, em várias ocasiões, a esclarecimentos e negociação acerca dos objectivos visados e alcançáveis no curto prazo.

De assinalar, ainda, que estas transcrições se, por um lado, são de um enorme detalhe e riqueza heurística, por outro, traduzem uma abordagem analítica muito especializada, que, pela sua elevada tecnicidade e jargão próprio, gera uma barreira à comunicação e à compreensão, dificultando a co-participação da equipa de insiders. De alguma forma, esta situação traduziu-se numa contradição interna, já que, a assimetria verificada desequilibrou a comunicação e, por conseguinte, empobreceu o processo colaborativo.

Este é um factor susceptível de travar a co-participação, não sinalizado por Bartunek e Louis (BINET & SOUSA, 2011: 80). Apesar das relações de respeito mútuo estabelecido entre insiders e outsiders, pode afirmar-se que houve momentos em que foi difícil jogar no

mesmo tabuleiro com os vários discursos científicos em presença. Essa dificuldade foi

particularmente patente no Workshop realizado em 2009, onde predominou o jargão da análise conversacional, o que levou a uma insuficiente compreensão e reflexão partilhada das situações sob escrutínio colectivo, e, por conseguinte, a um prejuízo da avaliação reflexiva, por parte das co-investigadoras, relativamente às suas práticas.

Esta situação levou a um certo amargo de boca paradoxal: de um lado, a crença, por parte da autora desta tese, nas virtudes das metodologias participativas e no alcance da aplicação da análise conversacional no domínio da investigação em Serviço Social, do outro, a frustração das próprias expectativas e a observação da frustração das expectativas da equipa de insiders que via condicionada a plena reapropriação dos resultados do seu trabalho.

Perante isto, o que fazer? Importa referir que a autora desta dissertação se encontrava numa fase de algum impasse relativamente à pesquisa que se tinha proposto desenvolver no âmbito da preparação da sua própria tese de doutoramento, já que, o projecto inicial, cujo núcleo duro assentava na formação em Serviço Social, com a implementação do acordo de Bolonha, deixou de lhe fazer sentido, pelo menos nos moldes em que se encontrava desenhado. Por outro lado, a partilha de objectivos comuns, nomeadamente como contribuir

88 para a construção de conhecimento em Serviço Social, orientado por valores assentes na defesa e promoção dos direitos humanos e do aprofundamento da cidadania, levaram ao estreitamento das relações de trabalho com Michel Binet e a uma ampliação progressiva do seu papel no Projecto, como já referido.

A conjugação destes factores levou à decisão partilhada de um maior envolvimento no Projecto, o que passou pela aquisição de conhecimentos específicos, nomeadamente através da frequência do I Curso Livre de Análise das Interações Verbais71.

É, ainda, de assinalar que a vida do corpus é longa: os dados recolhidos prestam-se a múltiplas análises e formam uma base empírica cujo valor científico pode prolongar-se por um tempo indefinido (BINET & SOUSA, 2011: 75) e dar lugar a diversas pesquisas.

Dito por outras palavras, encerrada uma primeira fase do projecto, entende-se que o mesmo não precisa de ter uma data marcada de antemão para ser dado como terminado e defende-se, mesmo, o lançamento de uma segunda fase que possa beneficiar da experiência adquirida e da reflexão produzida. Este aspecto levanta uma questão não tratada por Bartunek e Louis: como manter activa uma colaboração I/O fora de um cronograma preciso (BINET & SOUSA, 2011: 75)?

Releva-se que a experiência vivenciada permite apontar algumas pistas a ter em conta em futuros projectos que envolvam a aplicação da análise conversacional no domínio do Serviço Social, segundo uma metodologia de investigação co-participativa, nomeadamente no que diz respeito à preparação de trechos de transcrição e análise, para discussão com a equipa de insiders, em que se cruzem as lógicas da análise conversacional com as lógicas de pertinência para o agir quotidiano dos assistentes sociais, o que passa necessariamente pela inclusão do Serviço Social também na equipa de outsiders.

3.1.4. Roteiro(s) de análise: a riqueza do corpus e os limites de uma tarefa