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Os desafios da transcrição de atendimentos sociais – algumas notas

3. Do projecto profissional à prática quotidiana: configuração do referencial de análise

3.1.5. Os desafios da transcrição de atendimentos sociais – algumas notas

Estudar situações de interacção entre assistentes sociais e os destinatários da sua acção, a partir de dados naturalísticos, ou seja, dados que advêm de situações concretas que teriam tido lugar independentemente de qualquer pesquisa, mas que, pelo facto de terem sido gravados com esse propósito, ficaram sujeitos a tornar-se ‘dados de pesquisa’, constituiu um imenso desafio à reflexão sobre os fenómenos constatados, de que esta dissertação procura dar conta.

Como acima descrito, começou-se este processo por audições sucessivas dos eventos gravados, acompanhadas por uma estratégia de registo sistemático, traduzida primeiro pela elaboração de um índice sinalético que evoluiu depois para um relatório tópico. Foi a partir daqui que foi possível organizar o trabalho e dar início ao processo de transcrição de dados.

Para esta fase da pesquisa considerou-se, como já referido, que a Análise

Conversacional seria o recurso metodológico capaz de melhor descrever e ajudar a

compreender as interacções registadas.

Não sendo a Análise Conversacional, em si, o objecto de estudo desta pesquisa, impõem-se, no entanto, algumas notas que ajudem o leitor, porventura leigo, a familiarizar-se com esta metodologia.

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conversação – também enquanto transcritores-analistas, dimensão integrante e indispensável

desse papel –, e que, no caso desta pesquisa, consiste em três tipos de documentos derivados uns dos outros: i) os ficheiros áudio das gravações (em formato digital wave sound), documentos primários, mais próximos dos eventos interaccionais originais; ii) os ficheiros correspondentes a cada um dos ficheiros áudio, criados no anotador multimédia ELAN76 (formato eaf), que permite registar a transcrição sincrónica com os dados gravados, relativamente a cada interactante, em trilhas distintas; e iii) a edição em formato word da transcrição, integral ou parcial, dos eventos gravados, sob a forma de trechos.

Na figura abaixo, pode ver-se, mediante uma captura de ecrã, o ambiente do transcritor, proporcionado pelo anotador multimédia ELAN. A possibilidade de organizar a transcrição de forma sincrónica com o registo áudio e em trilhas distintas, quer da fala dos actores envolvidos na interacção – neste caso, assistente social e utente –, quer de outro tipo de notas pertinentes – como pausas e observações –, viabiliza uma transcrição minuciosa dos fenómenos ocorridos.

Figura 3.1. – Anotador multimédia ELAN: captura de ecrã

76 Do Max Planck Institute for Psycholinguistics, The Language Archive, Nijmegen, The Netherlands, disponível em: http://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/

96 A segunda nota pretende sublinhar que a transcrição não é uma actividade rotineira. O investigador, enquanto transcritor-analista, depara-se, frequentemente, com trechos de gravação passíveis de várias transcrições. Como alerta Cortes Gago, a transcrição depende da audição humana, por natureza imperfeita, pelo que não pode considerar-se como “um produto final, acabado, perfeito”. Por outro lado, o efeito do tempo também poderá contribuir para a adição de “mais camadas de entendimento dos fenómenos, tornando mais ‘espessa’ nossa descrição deles” (GAGO, 2002: 91). Reitera-se a importância das audições

sucessivas que, sendo uma tarefa exaustiva, embora, permite uma compreensão mais profunda dos dados sob escrutínio o que, numa audição mais corrida, não seria conseguido.

A terceira nota refere-se à edição e apresentação dos trechos de transcrição. A edição em formato word, acima mencionada, constitui em si própria, uma outra tarefa igualmente minuciosa. Ela precisa de ser cuidadosamente verificada e editada passo a passo, desde logo, porque os recursos gráficos do anotador ELAN são limitados, não dispondo de símbolos necessários e conformes às Convenções de Transcrição – ver quinta nota, abaixo.

Quanto à apresentação, o recurso a uma tabela de três colunas, permite a identificação dos falantes com a transcrição das respectivas falas. As linhas da tabela correspondem, assim, à organização em turnos da fala-em-interação, separados, por vezes, por pausas interturnos. A numeração de cada linha facilita a referência e localização dos fenómenos analisados. A escolha do tipo de letra também não é indiferente ao transcritor. Busca-se uma monospaced font, em que as diferentes letras, bem como espaçamentos e símbolos, ocupem o mesmo espaço gráfico, com vista à precisão dos alinhamentos, aspecto fundamental para a representação de fenómenos de sobreposição.

A quarta nota respeita a um princípio básico da Análise Conversacional, segundo o qual se procura transcrever a fala de cada interactante de forma tão fiel e próxima quanto possível, não só do que foi dito, mas de como foi dito. Por isso: i) se mantêm as repetições, as palavras inacabadas – “mas se não deixar va (.) vai (.) vai ter que se gravar na mesma

não é?” (AS1.A12); ii) se registam as pausas e as pausas cheias – “eh::” –, procurando

depois perceber o(s) seu(s) sentido(s), bem como os alongamentos de sons – “eu não me::

importo nada” (AS2.A18); iii) se mantêm eventuais erros de concordância gramatical; etc..

Uma questão incontornável nesta matéria e que tem sido objecto de alguma polémica, concerne à utilização da ortografia-padrão ou da grafia modificada. Cortes Gago

97 menciona que, nalgumas transcrições, se regista, inclusive, o uso do alfabeto fonético internacional. A propósito desta discussão, o autor reporta os problemas que advêm da utilização da grafia modificada, nomeadamente no que diz respeito ao impacto no leitor de transcrições com grafia modificada, referindo estudos em que profissionais não linguistas, de várias áreas, tendem a “rebaixar a classe social ou o nível de escolaridade das pessoas cujas falas foram transcritas em grafia modificada, construindo delas uma imagem negativa”. Outro efeito indesejado prende-se com a dificuldade de leitura, o que faz com que os dados, que deveriam ter um lugar central – de “coluna espinhal”, nas suas palavras –, sejam simplesmente ignorados (GAGO, 2002: 96-98).

A experiência da autora desta pesquisa vai no sentido de algumas das preocupações acima expressas, nomeadamente no que diz respeito às dificuldades de leitura por parte das

co-investigadoras. Esta dificuldade, gerada desde logo pelo uso das convenções de

transcrição, é acrescida na presença da grafia modificada. Uma outra questão prende-se com o risco de não se reverem na transcrição, como se verificou num exercício de elicitação realizado – “ ‘É só memo para perceber?’ Eu não falo assim… não quer dizer que eu não o

diga de vez em quando, mas por acaso tento ter algum cuidado com o português que utilizo. ‘Tá a ver?’ ‘É memo assim’. Quer dizer, eu não digo ‘é memo assim’. E se o disser é porque estou muito mal mesmo. ‘É mesmo assim’. Tento ter uma linguagem simples, clara mas não…” (AS5 – entrevista).

Na busca de consensos, como bem lembra Cortes Gago, no quadro da Análise

Conversacional, a perspectiva que deve prevalecer é a dos participantes e não a do analista,

perspectiva esta reforçada pelo método de investigação I/O, acima apresentado e que constitui opção metodológica do Projecto ACASS. Ou seja, a opção a tomar deve levar em conta, em primeiro lugar, a relevância para os participantes e só depois para o analista. O autor salienta mesmo que “a tentativa de se registar os detalhes de pronúncia, por mais coerente que seja com a nossa audição, poderá estar incorrendo no erro de tornar relevante e exótico, somente no mundo da grafia, o que não é absolutamente relevante e real para os participantes no aqui e agora do encontro” (GAGO, 2002: 98-99).

A quinta e última nota relaciona-se com as convenções de transcrição seguidas. Como já referido, a Análise Conversacional assenta em transcrições que procuram aproximar-se o mais possível da fala, tal como foi produzida, recorrendo, para o efeito, a

98 convenções específicas. Salienta-se que alguns dos símbolos utilizados por essas convenções são símbolos típicos da pontuação na linguagem escrita, assumindo, neste contexto, outros significados. No caso desta pesquisa, a opção recaiu nas Convenções de Transcrição

Jeffersonianas (JEFFERSON, 2004), adaptadas por Michel Binet (2013a) e adoptadas pelo GEACC-CLISSIS, que se anexam.

Chegados a este ponto, vale a pena referir que um dos aspectos particularmente sensíveis do trabalho de transcrição diz respeito à delimitação dos turnos de fala e aos sinais de retorno do ouvinte (back channels), que, em muitos casos, são produzidos em sobreposição, sem constituir uma tomada de turno. Estes sinais, emicamente relevantes para os interactantes, podem constituir-se como estímulos à narrativa, ou, pelo contrário, funcionarem como inibidores. No caso do corpus ACASS trata-se de uma matéria bastante sensível e particularmente relevante, se levados em conta os objectivos desta pesquisa.

Esta foi uma questão que começou por inquietar Michel Binet que, insatisfeito com os recursos disponíveis, procurou e testou soluções que “permitissem evidenciar melhor a actividade do falante secundário (extra-turno) e a sua interssincronização com a actividade do falante primário (intra-turno)” (BINET, 2013a: 212). A convenção cunhada pelo autor

consiste em replicar as linhas de transcrição de um turno, logo a seguir ao mesmo, respeitando o número de linhas e reproduzindo a sua numeração, acrescentada do símbolo (’) sinalizando, assim, que se trata da transcrição da actividade extraturno de um falante secundário, como se ilustra no trecho abaixo:

Trecho 3.1. – Transcrição parcial AS1.A12 [00.00.02-00.01.10]

001 002 003 004 005 006 007 008 009 010 011 012 013 014 015

AS Dona Jxxxxx antes de começarmos propriamente a: falar sobre o motivo que a trouxe até a[qui:] .h eu gostaria de pedir a sua autorização para poder gravar esta conversa que:: vamos ter .h porque {o serviço} está a participar no: num projecto que é desenvolvido pela universidade lusíada [.h ] que se baseia na análise da: da comunicação as interrupções que existem como é que comunicamos com o objectivo de se poder ↑melhorar (.) se a senhora quiser consultar o projecto tudo bem .h eh se não (.) se não autorizar (.) desliga-se [o grava]dor e não (.) não se grava a conversa .h mas quer o seu sim quer o seu não têm que ficar (.) gra[vados ] ((riso)) .hh a senhora agora é que sabe (.) ninguém vai fazer a duplicação disto [isto é] uma conversa que fica ((deglutição)) gravada que depois é

99 016 017 018 019 020 021

arquivada é apenas eh vai-se vai-se fazer apenas uma análise às interferências que exis[tem à] forma como comunicamos é só isso que: que se vai fazer (0.3) ninguém vai duplicar isto ninguém vai fazer informação (0.6) ºdistoº a senhora é que sabe (0.4) se deixa (.) ou se não deixa 001’ 002’ 003’ 004’ 005’ 006’ 007’ 008’ 009’ 010’ 011’ 012’ 013’ 014’ 015’ 016’ 017’ 018’ 019’ 020’ 021’ (Ut.) [ sim] [(mm) ] [(m m) ] [gravados] [ (mm) ] [ (mm)]

Ora se é certo que esta convenção tem o grande mérito de permitir observar detalhadamente a actividade do falante secundário, por outro, obriga a um movimento acima

e abaixo, com uma distância de linhas por vezes considerável, o que pode dificultar a leitura.

Também a presença de linhas brancas pode introduzir algum ‘ruído’ nesse processo.

Cabe aqui um parêntesis para dar conta de uma prática comum na comunidade de analistas conversacionais que se traduz na realização de sessões de análise em grupo (data

sessions) e que “são o quadro de um intenso trabalho que comprova bem o vigor e o

dinamismo que presidem ao estudo de cada transcrição” (BINET, 2013a: 203). Este espaço de análise e discussão revelou-se bastante profícuo para a autora desta pesquisa, também no que diz respeito ao levantamento de dúvidas, insatisfações e desenho de novas propostas que permitam uma leitura tão fina quanto possível, e ao mesmo tempo acessível, do que foi uma

100 determinada interacção verbal. Foi nesse quadro77 que surgiu a proposta de uma segunda

variante a esta convenção que assenta, fundamentalmente, em entrelinhar as contribuições

do falante secundário, em darker 50%, como a seguir se ilustra:

Trecho 3.2. – Transcrição parcial AS1.A12 [00.00.02-00.01.10]

001 002

AS Dona Jxxxxx antes de começarmos propriamente a: falar sobre o motivo que a trouxe até a[qui:]

002’ Ut. [ sim] 003 004 005 006 007 AS .h eu gostaria de pedir a sua autorização para poder gravar esta conversa que:: vamos ter .h porque {o serviço} está a participar no: num projecto que é desenvolvido pela universidade lusíada [.h ]

007’ Ut. [(mm)] 008 009 010 011 012 013 que se baseia na análise da: da comunicação as interrupções que existem como é que comunicamos com o objectivo de se poder ↑melhorar (.) se a senhora quiser consultar o projecto tudo bem .h eh se não (.) se não autorizar (.) desliga-se [o grava]dor

013’ Ut. [(mm) ]

014 015 016

e não (.) não se grava a conversa .h mas quer o seu sim quer o seu não têm que ficar (.) gra[vados ]

016’ Ut. [gravados] 016º AS ((risos)) 017 018 019 AS .hh a senhora agora é que sabe (.) ninguém vai fazer a duplicação disto [isto é]

019’ Ut. [(mm) ]

020 021 022 023

AS uma conversa que fica ((deglutição)) gravada que depois é arquivada é apenas eh vai-se vai-se fazer apenas uma análise às interferências que exis[tem à]

023’ Ut. [(mm) ] 024 025 026 027 028

forma como comunicamos (.) é só isso que: que se vai fazer (0.3) ninguém vai duplicar isto ninguém vai fazer informação (0.6) ºdistoº (.) a senhora é que sa:be (0.4) se deixa (.) ou se não deixa

Outra questão a que esta segunda variante da convenção de Michel Binet, relativa às

77 Data session realizada no GEACC-CLISSIS, que contou com a presença de Michel Binet e da autora desta pesquisa.

101 contribuições do falante secundário, procura dar resposta é à representação de sinais de

retorno em resposta a sinais de retorno – neste caso, o riso da assistente social, em que o

símbolo (º), a seguir ao número da linha, indica essa qualidade.

Após uma descrição sumária da investigação I/O, da apresentação do Projecto ACASS, de uma reflexão em torno dos constrangimentos, desafios e expectativas suscitados ao longo deste processo, de uma discussão sobre o(s) roteiro(s) de análise relativamente ao

corpus ACASS, e, ainda, de algumas notas sobre os desafios da transcrição de atendimentos

sociais, importa agora configurar o referencial de análise no tocante ao discurso dos profissionais. É o que se fará em seguida.