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3. Do projecto profissional à prática quotidiana: configuração do referencial de análise

3.2. A narrativa das Assistentes Sociais

Tendo em conta os objectivos desta pesquisa, tornava-se necessário conhecer como os sujeitos profissionais constroem e reconstroem a identidade profissional, nas suas circunstâncias, e como se posicionam relativamente ao PESS.

Para isso, entendeu-se levar a cabo um processo de inquirição junto do universo das assistentes sociais co-investigadoras do Projecto ACASS, com recurso a entrevistas individuais.

Este processo de inquirição baseou-se na noção de que a entrevista semi-estruturada seria a opção mais adequada, graças à “produção de saber em situação” e à “co-construção graças à interacção vivida” (SAVOIE-ZAJC, 2003: 285) que esta técnica proporciona.

Por outro lado, importa assinalar que, dadas as funções exercidas pela autora desta tese, no território, durante largos anos, existia uma base de sociabilidade com a generalidade destas profissionais, pelo que, face a este histórico relacional, a entrevista semi-estruturada, ou semi-dirigida, como também é conhecida, se afigurava, pelas suas características, como a técnica mais natural. Assim, e embora a entrevista não seja uma conversa espontânea, mas antes uma oportunidade criada intencionalmente para falar acerca de algo do interesse da investigadora, pretendeu-se favorecer um diálogo fluido, ainda que orientado por um conjunto de perguntas-guia:

A entrevista semi-dirigida consiste numa interacção verbal animada de forma flexível pelo investigador. Este deixar-se-á guiar pelo fluxo da entrevista com o objectivo de abordar, de um modo que se assemelha a uma conversa, os termos gerais sobre os quais deseja ouvir o

102 respondente, permitindo assim extrair uma compreensão rica do fenómeno em estudo (SAVOIE-ZAJC, 2003: 282).

Procurou-se, em suma, e na linha do que defende Jan Fook, suscitar descrições tão concretas quanto possível, minimizando a percepção de que a prática profissional estava a ser avaliada no quadro de discursos teóricos formais. Nas palavras da autora, “if I want to elicit practice in its ‘rawest’ possible terms, I tend to ask for descriptions that are as concrete as possible. This is a useful principle for accessing frontline practice experience, because it minimizes the perception that the worker’s practice is being evaluated against formal theoretical discourses” (FOOK, 2002: 88).

Foi dado, igualmente, relevo à função emancipatória da entrevista. De acordo com Steinar Kavle (1996), as questões abordadas com o respondente desencadeiam uma reflexão e podem tornar-se “catalisadoras de tomadas de consciência e de transformação da parte das pessoas envolvidas: o investigador, tal como o respondente”. Ora a oportunidade de contribuir para um tal processo enquadrava-se nos objectivos do Projecto ACASS, reforçando a pertinência social desta pesquisa.

Foi, assim, assumido, pela investigadora, o espaço da entrevista como um momento privilegiado para dar algum retorno às co-investigadoras sobre as pesquisas concluídas e em curso, resgatando os pressupostos da investigação I/O.

Pese embora o estatuto relevante da não-directividade neste tipo de entrevista, ela não dispensa uma preparação cuidada, nomeadamente no que diz respeito à elaboração de um guião, cujo papel é o de servir de orientação na dinâmica de conversação que a caracteriza, e no qual o investigador identifica os temas, os subtemas e as questões-chave, a fim de recolher dados pertinentes para a investigação. O estabelecimento dos temas e dos subtemas assentam numa estrutura teórica (SAVOIE-ZAJC, 2003: 289).

Posto isto, impunha-se, então, equacionar quais as dimensões a privilegiar no guião da entrevista. Desde logo, foram identificados, dois eixos estruturantes: um primeiro, respeitante à caracterização e orientações sociais78, e um segundo, respeitante à relação com o Projecto Ético-político do Serviço Social. A par, atenta a natureza da investigação I/O, enquanto metodologia co-participativa, fazia todo o sentido aproveitar esta oportunidade

103 para indagar as co-investigadoras sobre o significado, para si, da participação no Projecto, bem como acerca das suas expectativas de retorno relativamente ao mesmo.

Assim, o guião da entrevista organizou-se em torno de três eixos: i) caracterização e

orientações sociais; ii) relação com o Projecto Ético-político do Serviço Social; e iii)

significado e expectativas quanto à participação no Projecto ACASS.

No que diz respeito ao primeiro eixo, a tarefa estava facilitada, na medida em que existiam já indicadores directos relativamente a cada uma das respectivas dimensões analíticas (CASANOVA, 2004). O mesmo não podia dizer-se do segundo eixo de análise.

Partindo dos referenciais genéricos do Serviço Social acima expostos e do Modelo de

Estrutura Básica do Projecto Ético-político do Serviço Social concebido a partir desses

mesmos referenciais e apresentado no Capítulo 1, chegou-se ao seguinte quadro de Dimensões e Indicadores do PESS, a partir do qual se extraíram as perguntas-guia:

Quadro 3.5. – Dimensões e Indicadores da relação com o PESS

Dimensões Indicadores

Imagem ideal da profissão

1. Como os profissionais vêem a profissão 2. Como os profissionais se vêem na profissão

Valores que a legitimam

3. Valores do Serviço Social identificados / descritos 4. Valores privilegiados na prática quotidiana

5. Valores de difícil salvaguarda na prática quotidiana 6. Dilemas éticos identificados

7. Visão do Outro Função social e

objetivos 8. Conhecimento e percepção da definição de Serviço Social

Conhecimentos teóricos e saberes interventivos

9. Percepção e assumpção do direito/dever de actualização e aprofundamento permanente de conhecimentos

10. Vivência de corpo profissional na partilha de conhecimentos e de experiências

11. Percepção e assumpção do direito/dever de contribuir para a produção de conhecimento e a difusão de práticas profissionais

12. Apreciação da formação de base e relações com a academia

Normas e práticas

13. Percepção e posicionamento face às normas institucionais

14. Rejeição/naturalização do procedimentalismo/ finalismo metodológico 15. Percepção do nível de autonomia profissional

16. Perspectiva relativamente à dimensão propositiva do agir profissional

104 significado da participação no Projecto e com as expectativas de retorno, como já mencionado, optou-se por utilizar a técnica de elicitação, solicitando a cada entrevistada um comentário relativo a pequeno trecho de transcrição79, de atendimento realizado pela própria.

Na preparação das entrevistas, as co-investigadoras foram abordadas individualmente, por via telefónica, para explicitar o objectivo da entrevista e negociar o dia, hora e local, mais ajustados à realização da mesma.

No que diz respeito à condução da entrevista, não foram estabelecidos, por parte da investigadora, limites de tempo, deixando espaço às entrevistadas para que a reflexão fluísse segundo o seu próprio ritmo e interesse. A investigadora procurou manter um tom de neutralidade, com o objectivo de contaminar o menos possível as respostas. Tratando-se de uma questão relevante na técnica de entrevista, é ainda mais relevante se tido em conta o histórico de sociabilidade já mencionado e uma eventual aspiração de desejabilidade das respostas por parte das co-investigadoras. Ao mesmo tempo, procurou assegurar uma escuta sensível, com a intenção de reduzir os efeitos de violência simbólica, na acepção de Bourdieu, que podiam manifestar-se nalgumas questões mais delicadas.

Todas as entrevistadas autorizaram a gravação áudio. De assinalar não só a receptividade manifestada, bem como a adesão às questões colocadas e a disponibilidade para gastar o tempo necessário à partilha. As entrevistas registaram uma duração variável, sensivelmente entre uma hora e oito minutos e uma hora e cinquenta e cinco minutos, tendo resultado num corpus de cerca de 9 horas de gravações.

Relativamente à transcrição dos dados, optou-se por uma estratégia mista, resultante da própria experiência ao longo do processo. Assim, inicialmente, foram transcritas na íntegra as três primeiras entrevistas realizadas, o que se traduziu na transformação deste

corpus, em suporte de papel, num volume de 90 páginas. Para além da morosidade do

processo, a perda do tom das respostas veio a revelar esse resultado como menos interessante. Depois do trabalho desenvolvido em torno das gravações dos atendimentos, com a leitura cuidada de cada pausa, de cada hesitação, do tom emprestado a cada palavra, a cada sílaba, permitidas pela Análise Conversacional, a transcrição das entrevistas perdia expressividade, clarificadora do sentido atribuído às narrativas.

105 Como forma de minimizar essas perdas, e embora, por razões de economia, não tenha sido utilizada a Análise Conversacional e as suas convenções de transcrição no tratamento dos dados das entrevistas, optou-se por recorrer, uma vez mais, ao anotador multimédia

ELAN. Essa estratégia tornou possível a criação de uma trilha-marcador na gravação de cada

entrevista que, de forma expedita, permitisse a localização de cada pergunta e respectiva resposta, bem como a sinalização de conteúdos transmitidos fora da ordem prevista no guião da entrevista. Por sua vez, esta localização facilitada permitiu audições sucessivas, por sub- dimensões de análise, ou mesmo resposta a resposta, e sequenciais, ou seja, relativas a cada uma das entrevistadas. Mantendo-se o acesso sistemático ao corpus original, viabilizou-se uma compreensão mais profunda dos dados sob escrutínio, ao mesmo tempo que tornou viável, dado o número de entrevistadas, proceder à leitura comparada dos mesmos ao vivo. A par, procedeu-se à transcrição sincrónica com os dados gravados, dos trechos pertinentes, e à sua edição em formato word.

Este procedimento permitiu juntar o material verbal, ficando, assim, na posse de um resultado tão próximo quanto possível do ocorrido, salvaguardando, naturalmente, os limites da transcrição da linguagem oral à linguagem escrita e a omissão da comunicação não-verbal (SAVOIE-ZAJC, 2003: 297). Apesar de ter constituído um trabalho bastante exaustivo, isso permitiu uma análise mais fina e mais densa dos dados e a subsequente organização das narrativas pelas diversas dimensões que estruturam esta pesquisa.