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4. Os Estados perante a instabilidade e a desigual dade globais

4.2 Constrangimentos e dilemas da política eco-

nómica

G. Soros caracteriza a nossa época como a de um “fundamentalismo de mercado” que procura “abolir os processos de tomadas de decisão colectivas e impôr a supre- macia dos valores do mercado sobre todos os valores sociais e políticos”162. Em mercados financeiros globalizados, os

movimentos de capitais e a evolução do preço dos activos constituem, simultaneamente, uma resposta e um constran- gimento às opções políticas dos governos. Esta constatação pode ser objecto de duas leituras: a de que, hoje, os merca- dos conseguem impôr uma disciplina aos governos, impe- dindo-os de incorrer nos excessos de outrora163, ou a de

que os Estados, perante o poder dos mercados, se acham perante graves dilemas de política económica que, em úl- timo termo, podem mesmo pôr em causa a governabilidade do país e a sobrevivência de um regime democrático.

O “mal-estar” que vem perturbando o normal exer- cício de funções públicas decompõe-se em três aspectos fundamentais, todos eles correlacionados: a dicotomia entre Estado e cidadãos; a demissão estadual do exercício de acti- vidades indispensáveis à satisfação das necessidade sociais; e os constrangimentos com que se debatem os poderes pú- blicos.

Juntos, a “fuga” para experiências de integração supra- nacional, a “agonia” das democracias e o renascer da velha doutrina liberal do “minimal state” concorrem para uma erosão dos poderes públicos164, para um apagamento das

________________________ 162 SOROS, p. 29.

163 Nesse sentido, KANE, p. 1.

164 Inscreve-se claramente nesta tendência de alheamento do

Estado relativamente à satisfação das necessidades sociais dos cidadãos, a “privatização da Segurança Social” e sua substituição por sistemas

“soberanias nacionais”165 e para uma crescente separação

entre o Estado e a “sociedade civil”.

As dificuldades com que se defrontam as autoridades públicas são cada vez maiores, num contexto de mobili- dade de capitais. Desde logo, a da escolha de um instru- mento de política económica entre a taxa de câmbio e a taxa de juro. Depois, o enfraquecimento dos instrumentos de controlo da liquidez numa economia financeira desinter- mediada e onde a indistinção entre agregados monetários e moeda e quase moeda é cada vez maior.

O próprio regime cambial a adoptar não deixa de ser um desafio. Perante os constrangimentos impostos pelo “tri- ângulo de incompatibilidade” de Mundell166, os Estados

devem hoje escolher uma de três vias possíveis: “autarcia financeira” (câmbios fixos e autonomia da política mone- tária), “união monetária” (mobilidade de capitais e câm- bios fixos) e câmbios flexíveis (mobilidade de capitais e autonomia da política monetária). A Europa escolheu a via da estabilidade cambial e liberalização dos fluxos de capi-

de reforma por capitalização, como o norte-americano. Esta lógica privatizadora não pode deixar de suscitar alguma preocupação, prin- cipalmente quando associada aos fenómenos de expansão ilimitada do poder financeiro dos “fundos de pensões” e demais investidores institucionais e à “gestão financeira” das empresas enquanto determi- nante da organização laboral e salarial. Os Estados contemporâneos desempenham um papel de meros garantes da criação e manutenção de um meio atractivo para os capitais estrangeiros (assim, MICHALET, p. 101 a 109). Malcom Waters considera a evolução actual no sentido de uma globalização política, propiciada pela ascensão da social demo- cracia liberal ao nível mundial e pelo enfraquecimento e descentrali- zação dos poderes do Estado (WATERS, p. 93-118).

165 Há mesmo quem não hesite em invocar uma “morte do

Estado-nação” e da emergência de “Estados-região” – nesse sentido, OHMAE, p. 79 a 100.

166 Sobre o modelo “Mundell-Flemming” vide DORNBUSH/

/FISHER, [2], p. 167 a 170.

tais, sacrificando a autonomia da política monetária e cam- bial167 e, em parte, da política orçamental168. A discussão

sobre a pertinência dessa escolha está longe de ser pacífica169.

As vozes críticas apontam duas objecções fundamentais ao modo como tem sido decidida a integração económica europeia: a insensibilidade face ao problema do desem- prego170 e a falta de meios ao dispôr dos Estados da Coe-

são para enfrentar um “choque assimétrico”171.

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167 Sobre a condução da política monetária pelo BCE vide SIL-

VA p. 47-64. Sobre a definição da política cambial da zona euro pelo

ECOFIN, idem, p. 65-68. A actual Lei Orgânica do Banco de Portu- gal (dl 337/90 de 30 de Outubro, alterado pelo dl 231/95 de 12 de Dezembro e lei 5/98 de 31 de Janeiro) dispõe o seguinte, no seu artigo 15: “No âmbito da sua participação no SEBC, compete ao Banco a orientação e fiscalização dos mercados monetários e cambi- al”. Trata-se, pois, de um mero poder de controlo, que não de con- dução da própria política monetária e cambial e, ainda assim, limi- tado na medida da participação na integração monetária europeia.

168 As restrições impostas pelos critérios de convergência de

Maastricht e, depois, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. Sobre os critérios de convergência vide SILVA, p. 31-43, sobre o Pacto de Estabilidade, idem p. 81-84. Para uma visão crítica dos constran- gimentos e das sanções prescritas pelo referido Pacto pode ver-se CADILHE, p. 18-27.

169 SILVA, p. 22-25 e 136-139 e PORTO, p. 414-430.

170 Octávio Teixeira (TEIXEIRA, p. 12-16) salienta que o baixo

nível de produtividade da economia portuguesa, conjugado com a perda dos instrumentos monetário e cambial, faz com que o neces- sário reforço da competitividade seja feito à custa do emprego.

171 O problema dos choques assimétricos tem sido muito discu-

tido, quer quanto à susceptibilidade da sua verificação no seio de um espaço económico integrado, quer quanto aos meios para lhes fazer face. Os mais críticos salientam que o actual orçamento da UE deveria possuir uma função de estabilização, dado inexistirem outros meca- nismos correctores susceptíveis de serem utilizados na “zona euro” (nomeadamente, ajustamentos nos preços e deslocação dos factores de produção, em especial, da mão-de-obra). Assim sendo, serão as eco- nomias nacionais a suportar os efeitos do choque à custa de desem-

Um outro desafio é, sem dúvida, o de garantir meios de financiamento estadual, numa altura em que a tendência internacional isenta de tributação as transacções financei- ras. O receio de avançar para uma “fiscalidade do capi- tal”172 e as dificuldades que suscita173 não devem ser con-

tornados à custa de uma injusta sobrecarga tributária dos rendimentos do trabalho, nem de uma compressão indis- criminada das despesas públicas. Ambas as alternativas com- prometem de modo inaceitável imperativos de Justiça social. Há que procurar meios de garantir uma coordena- ção internacional para que se recupere internamente um mínimo de equidade e de igualdade fiscal.174

prego e menor crescimento. Outros entendem que, no momento pre- sente e pelo motivo em causa, não se divisam razões suficientes para prosseguir por uma via de federalismo orçamental. Primeiro, porque a maior convergência entre economias a alcançar por via da coesão económica e social – e também por via das receitas orçamentais da União – deve ser de molde a evitar os referidos choques. Segundo, porque existem outros meios para enfrentar essa situação, como o fundo de estabilização finlandês ou a maior integração dos mercados financeiros europeus.

172 Desde logo, o medo de um “esvaziamento” financeiro do

país, num contexto de plena liberdade de movimentação de capitais. Depois, o receio de comprometer o financiamento da dívida pública. Esta circunstância conduz-nos a outra discussão que é a de saber se e em que medida a redução da dívida pública pode conferir aos gover- nos uma mais ampla margem de manobra frente à actual “ditadura de credores”, na expressão de J. P. Fitoussi (FITOUSSI, p. 50).

173 Pense-se no problema de “direito internacional privado finan-

ceiro” colocado por M. Teresa Faria (FARIA, p. 76): “Se uma socie- dade portuguesa realiza em Tóquio uma operação financeira de cober- tura de uma outra operação financeira contratada em Londres por uma sua sucursal nos Estados Unidos, suscita-se imediatamente a ques- tão sobre que país irá tributar e o quantum dessa tributação”.

174 M. Obstfeld considera que este dilema (suprimir áreas de

prestação pública em virtude da diminuição de receitas ou mantê-las à custa da tributação dos rendimentos laborais) poderá ser transitoria-

5. Propostas de defesa do sistema económico