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4. Os Estados perante a instabilidade e a desigual dade globais

4.1. Crescimento e repartição da riqueza

As vantagens associadas aos mercados de capitais são conhecidas: mobilizar a poupança para o investimento pro- dutivo, facilitar o comércio internacional e reduzir o risco e a incerteza na actividade económica. Em certa medida, a existência de mercados financeiros descompartimentados propiciou uma redução dos custos associados às transac- ções e uma mais ampla disseminação do investimento à escala mundial. Contudo, sempre cumprirá indagar quem beneficiou dessa redução de custos e qual o âmbito con- creto da “democratização” das oportunidades de investi- mento.

Quando o assunto é avaliar os ganhos da “globalização financeira”, a ortodoxia liberal não hesita em exacerbar as virtudes do fenómeno, salientando que a criação de um mercado mundial de capitais, garantidas a liberdade e atomicidade de agentes económicos, virá potenciar as virtualidades do sistema financeiro, permitindo uma melhor distribuição dos capitais, entre países e no interior um país, reduzindo, ao mesmo tempo, os custos do crédito. Na ver- dade, mal podemos imaginar um mundo onde não se pudessem realizar movimentos internacionais de capitais. Pode ainda dizer-se que nem sempre o endividamento sig- nifica apetência para a crise: aliás, muitas vezes, o recurso

de compra dos rendimentos médios e baixos, teria auxiliado a travar as pressões salariais e, com isso, a aumentar o emprego.

aos capitais estrangeiros constitui a única forma de países com taxas de poupança reduzidas relançarem a sua econo- mia. Por exemplo, a Polónia contraíu, durante o período de 1998-1999, empréstimos externos na ordem dos 6% do PIB152, o que auxiliou consideravelmente o crescimento

deste país que hoje se apresenta como um dos mais sérios candidatos à adesão à União Europeia. Contudo, é alta- mente duvidoso que a “globalização” tenha provocado uma melhor afectação de recursos, quer ao nível interno de cada Estado, quer ao nível internacional.153

Ao nível da componente nacional das economias faze- mos notar três aspectos. Em primeiro lugar, a incerteza é hoje maior: o grau de volatibilidade cambial que tem acompanhado a expansão dos fluxos internacionais de capi- tais é de molde a provocar distorções nas estratégias de investimento que se reflectem, depois, em quebras na pro- dutividade. Em segundo lugar, a alta das taxas de juro154,

exigida pela abertura dos mercados, prejudica gravemente o crescimento económico interno. Desde a década de se- tenta que o crescimento económico nos países da OCDE tem vindo a desacelerar-se, arrastando consigo o aumento do desemprego. De um crescimento mundial na ordem dos 5%, em 1959-1964, passamos para uma taxa de 2,8%, em 1983-1994. Por outro lado, a instabilidade é também hoje maior: o coeficiente de variação da taxa de crescimento económico tem vindo a crescer desde a década de sessenta 155.

Finalmente, a “globalização financeira” trouxe consigo um

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152 OBSTFELD, [2], p. 3.

153 Contra, salientando que a globalização da economia (comércio

e finanças) não contende com objectivos de crescimento económico e maior equidade, pode ver-se FRANKEL.

154 Em termos de média anual, a taxa de juro real no conjunto

do G-7 passou de 1,1% em 1959-1964, para 5,4 em 1995 – FELIX

p. 184.

incremento substancial do número de crises financeiras: nos últimos vinte anos, cerca de 125 países conheceram graves dificuldades económicas internas em virtude de um colapso no sistema financeiro.156

Ao nível internacional, são várias as considerações, umas relacionadas com a situação vivida pelas zonas que beneficiaram da confiança dos investidores, outras atinentes às áreas do globo condenadas ao esquecimento.

Em relação às primeiras, é de notar não ser líquido que a “globalização” tenha podido transferir tecnologia e “know how” para os países em desenvolvimento157.

Além de que não nos parece que a aproximação ao Oci- dente em resultado da abertura dos mercados financeiros tenha envolvido melhorias na protecção dos direitos so- ciais e políticos nos referidos países. Depois, os movimen- tos de capitais que os atingem são, na sua maioria, tran- sacções financeiras desligadas da produção, como atrás tivémos oportunidade de realçar. Por último, a maior vul- nerabilidade das economias às crises cambiais tende a sacri- ficar os países devedores de modo particularmente severo.

Quanto às zonas que não constam dos “roteiros” do investimento privado internacional, a situação em nada evo- luiu, mesmo depois de décadas de mutações financeiras158.

Os capitais continuam a não chegar onde são mais precisos: países como os da África subsaariana permanecem conde- nados à sobrevivência abaixo de limiares mínimos de sub- sistência. As diferenças entre os indicadores económicos fun- damentais dos diversos países, marcadas por um forte con-

________________________ 156 “C

OUNCIL ON FOREIGN RELATIONS”, p. 57).

157 Vide supra, p. 33, nota 75.

158 Os investimentos privados internacionais privilegiaram, du-

rante a década de noventa, os países que revelavam taxas internas de poupança elevadas, como é o caso dos Estados asiáticos – PHLION

traste, tendem a agravar-se. Nas perspectivas do Banco Mundial de Dezembro de 1999 estimava-se um aumento do número de pessoas que, no continente africano, vivem com menos de 197 escudos por dia159. Esta exclusão

inumana não nasceu com o “mito do capital sem frontei- ras”, mas cresceu com ele, tornando-se cada vez mais into- lerável à medida que a civilização progride e se torna mani- festa a posse de meios para um exercício de solidariedade económica e social. Os países subdesenvolvidos ficam dependentes dos financiamentos públicos estaduais que, em regra, se revelam escassos e insuficientes, além de se associa- rem a planos de pagamento e restruturação extremamente penosos. De presente, seria puro farisaísmo afirmar que a globalização financeira pôde contribuir de modo eficaz para uma aplicação dos recursos disponíveis à escala mundial, favorecendo o crescimento no longo prazo160. Cumpre repen-

sar estratégias de desenvolvimento económico que passem por uma participação destes países nos mercados mundiais, para que a ideia de “património comum da Humanidade” que propôs estabelecer, no plano internacional, o que no plano interno, correspondeu ao “Welfare State”, finalmente, possa adquirir alguma efectividade161.

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159 A situação acabada de expôr não suscita grande espanto, pos-

to ser um facto notório o de que às empresas multinacionais e aos investidores financeiros não interessa a “ajuda ao desenvolvimento” que não tenha por efeito uma maximização de lucros. Mas será já, por- ventura, suficiente para pôr em causa a imagem mírifica dos mercados financeiros globalizados.

160 PHLION, [1], p. 108. 161 CASSESE, p. 349.