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1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS INFANTO-JUVENIS

1.1.4 Construção da Doutrina da Proteção Integral

A Doutrina da Proteção Integral inaugura uma nova maneira de tratar crianças e adolescentes, rompendo definitivamente com uma tradição quase secular de violação de seus direitos, já que eram tratados, em regra, como “incapazes”, “desvalidos”, “carentes”, enfim, como meros objetos de direito. Com efeito, a Doutrina da Proteção Integral foi construída na esteira das convenções internacionais sobre direitos humanos, especificamente sobre os direitos das crianças. O insigne jurista João Batista Saraiva salienta que, além da Convenção Internacional da ONU sobre os Direitos das Crianças realizada no dia 20 de novembro de 1989, em nova York, a Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança foi construída com base na consolidação de várias convenções internacionais, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade e as Diretrizes de Riad. Vejamos o pensamento de Saraiva:

Apesar de não ser cronologicamente o primeiro texto, a Convenção da ONU sobre Direitos da Criança contribuiu decisivamente para consolidar um corpo

de legislação internacional denominado Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança.

Conforme Emílio Garcia Mendez, sob esta denominação, estar-se-á referindo a Convenção das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (2013, p. 63).

O jurista argentino Emílio Garcia Mendez (1998, p. 65), uma das maiores autoridades internacionais sobre o assunto, assim prelecionou:

Com el término de la “doctrina de la protección integral de los derechos de la infancia” se hace referencia a un conjunto de instrumentos jurídicos de carácter internacional que expresan un salto cualitativo fundamental em la consideración social de la infancia . Reconociendo como antecedentes directo la Declaración Universal de los Derechos Del Niño, esta doctrina aparece representada por cuatro instrumentos básicos:

a) La Convención Internacional sobre los Derechos del Niño.

b) Las Reglas Mínimas de las Naciones Unidas para la Administración de La Justicia Juvenil. (reglas de Beijing).

c) Las Reglas Mínimas de Las Naciones Unidas para la Protección de losjovenes privados de libertad.

d) Las Diretrizes de Las Naciones Unidas para la Prevención de la Delincuencia Juvenil (Diretrices de Riad).

Como se depreende, essa mudança de paradigma implica na construção de um processo gradual de lutas pelo reconhecimento de direitos humanos de crianças e adolescentes, através de movimentos sociais e convenções internacionais, voltado precipuamente para a transformação “del menor como objeto de la compasión-

represión, a la infancia-adolescencia como sujeto pleno de derechos” (MENDEZ,

1998, p. 65). Daí a importância crucial da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, realizado pela ONU no dia 20 de novembro de 1989, em Nova York, em face de sua dimensão jurídica, com o estabelecimento do princípio da legalidade, criando diversos mecanismos de combate à arbitrariedade do Estado, como o direito de ser julgado por uma autoridade judiciária competente, independente e imparcial, além do rápido acesso à assistência judiciária e de ter ciência prévia da acusação que lhe é imputada, devendo ser tratado como presumivelmente inocente enquanto não for comprovada a sua culpabilidade na forma estabelecida pela lei.

Evidentemente que os enunciados, postulados e princípios de diversos matizes emergiram das convenções internacionais sobre os direitos das crianças, após exaustivas discussões sobre a situação da infância e juventude no mundo. Pode-se afirmar que, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, proclamada no dia 12 de dezembro de 1948, quando reconheceu que a infância tem “direito a cuidados

e assistência especiais”, a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos de Crianças, de 1959, constitui o embrião do tratamento diferenciado que passaram a merecer as crianças, com a proclamação de vários direitos fundamentais, como o direito à alimentação, recreação e assistência médica adequada, conforme inscrito no princípio 4º da referida Declaração. Outros direitos, como o de receber prioritariamente proteção e socorro, bem como o de proibir o trabalho penoso ou prejudicial ao seu desenvolvimento físico, mental ou moral, estão contemplados na referida Declaração. Podemos citar o direito ao ensino fundamental público gratuito para crianças. (princípio 7º), o reconhecimento da família como primeiro núcleo responsável pela sua educação e o interesse superior da criança a presidir as decisões que a afetem. Todavia, tais direitos e princípios proclamados na referida Declaração de Direitos Humanos não passaram de “princípios de boas intenções ou prescrições de bons propósitos, pois suas disposições não obrigavam os estados signatários a cumpri-los. Como, geralmente, nada se perde, vários direitos e princípios acabaram sendo reconhecidos em outras convenções internacionais.

As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude, realizada em Beijing, em 1985, sem dúvida alguma constitui um grande referencial na conquista dos direitos de crianças em todo o mundo. As suas premissas iniciais sustentam que “toda criança ou adolescente pode responder por uma infração de forma diferente do adulto”, baseadas num conjunto de normas aplicáveis especificamente a jovens infratores. No que pertine à responsabilidade penal, não recomenda a sua fixação em idade demasiadamente precoce, e assegura que qualquer decisão em relação a jovens infratores será sempre proporcional às circunstâncias do infrator e da infração. Também estabelece as garantias processuais, como o princípio da presunção da inocência, o direito de ser informado das acusações, o direito de não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais ou tutores, o direito de apelação ante uma autoridade superior, dentre outros direitos. As Regras Mínimas proíbem a publicação de qualquer informação que possa identificar o jovem infrator e estabelecem, ainda, que a apreensão de qualquer jovem deve ser imediatamente comunicada a seus pais ou responsável, devendo o juiz ou funcionário competente examinar a possibilidade de por o jovem em liberdade sem demora. O princípio da excepcionalidade e da brevidade da internação está prevista no art. 19.1, valendo ressaltar que as medidas socioeducativas de liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade e de reparação de danos, que na Convenção constam como

“multas, indenizações e restituições” também já eram previstas na referida Convenção Internacional.

Outra importante Convenção Internacional, voltada para os direitos das crianças, foi a das Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, todavia, as suas prescrições restringem-se aos jovens privados de liberdade. As Regras buscam estabelecer uma coexistência da privação da liberdade do jovem infrator com os direitos humanos, seja na questão do espaço adequado, privacidade, educação formal e profissionalização, recreação, atividade religiosa, assistência médica, contato com o mundo exterior, assistência jurídica, dentre outros direitos fundamentais, no sentido de combater os efeitos deletérios do cárcere e propiciar as condições necessárias para a inserção social do adolescente em conflito com a lei.

As diretrizes de Riad consolidam vários direitos reconhecidos em convenções internacionais anteriores, entretanto, pode-se afirmar que, além de proibir medidas severas ou degradantes de correção ou castigo, seja no lar, na escola ou em qualquer instituição, a medida mais importante está prevista no seu art. 54, que estabelece, em outros termos, que o jovem infrator não sofrerá tratamento mais gravoso do que aquele estabelecido para o adulto. No âmbito da prevenção geral, estabelece a participação da comunidade nos programas sociais, bem como a cooperação interdisciplinar entre os governos nacional, estaduais e municipais com a participação do setor privado, no atendimento às crianças, inclusive nas medidas coordenadas para prevenir a delinquência juvenil.

Finalmente, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ocorrida em Nova York em 1989, foi aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro, através do Decreto Legislativo n.º 28, de 14 de setembro de 1990, sendo ratificado pelo governo brasileiro em 24 de setembro de 1990, tendo entrado em vigor, no Brasil, pelo Decreto Presidencial de 21 de novembro de 1990. A referida Convenção, adotada integralmente pelo Brasil, reproduz vários direitos fundamentais previstos em outras convenções internacionais sobre direitos das crianças, coibindo a privação de liberdade ilegal ou arbitrária de crianças, bem como a tortura ou outros tratamentos desumanos ou degradantes, ratificando o princípio da excepcionalidade e da brevidade nas internações relativas a jovens em conflito com a lei. As suas disposições, entretanto, obrigaram o governo brasileiro a disciplinar a Doutrina da Proteção Integral inscrita nessas convenções internacionais na legislação infraconstitucional brasileira.