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1.7 MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM ESPÉCIE

1.7.4 Liberdade assistida

A medida socioeducativa da liberdade assistida está prevista nos arts. 118 e 119 do ECA e constitui, sem dúvida, a principal medida de cunho eminentemente pedagógico, pois, sem que o adolescente em conflito com a lei perca a sua liberdade, submete-o à construção de um verdadeiro projeto de vida permeado pela liberdade, voluntariedade, senso de responsabilidade e controle do poder público. A medida se reveste, normalmente, de caráter compulsório, pois o juiz, no âmbito do processo de conhecimento, aplica a medida que lhe parecer mais adequada para aquele caso

concreto, de conformidade com as provas e demais dados constantes dos autos – relatório de equipe interdisciplinar, depoimentos, documentos etc. –, levando em consideração a gravidade do fato, as circunstâncias, as aptidões ou as condições pessoais do adolescente, bem como a condição de cumpri-la, podendo, todavia, este, através de seu representante legal, recorrer da decisão. É de se ver, entretanto, que a medida pode ser aplicada no âmbito da justiça consensualizada, quando vier acompanhada de uma remissão clausulada, nos termos previstos no Parágrafo Único do art. 126 da Lei n.º 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente –, que consiste numa transação socioeducativa mediante a qual o juiz poderá conceder, a pedido do Ministério Público, uma remissão acompanhada de alguma medida socioeducativa em meio aberto – Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços à Comunidade –, como forma de suspensão ou extinção do processo. Na verdade, seja através de sentença prolatada no âmbito do devido processo legal, seja consensualmente, a liberdade assistida, na sua executoriedade, exige a voluntariedade do adolescente e de seus familiares, no sentido de que se estabeleça um vínculo de confiança e de responsabilidade com o orientador pedagógico da medida.

Nesse sentido, após o estudo do caso pela equipe interdisciplinar da entidade responsável pela execução da medida, é imperativo que, conhecendo a história do adolescente, o orientador, com o auxílio indispensável dos técnicos, permita que o adolescente contribua para a formatação final do projeto, ouvindo suas necessidades, suas angústias, suas metas de vida, seus relacionamentos na família e na comunidade, enfim, seus anseios, ajustando, assim, o projeto da medida a ser executada de acordo com as condições pessoais do adolescente, objetivando, sempre, a superação de conflitos familiares e comunitários, de sorte a reunir as condições para o cumprimento eficaz da medida socioeducativa.

A liberdade assistida, pelo menos no seu aspecto estrutural, já era conhecida da legislação “menorista” e identificada como “liberdade vigiada” no Código Mello Matos, de 1927, todavia, já no Código de Menores de 1979, modificava a nomenclatura para “liberdade assistida”, todavia, sem perder as características essenciais de uma medida repressiva e expiatória, sem qualquer conteúdo pedagógico, pois alcançava o “menor

com desvio de conduta”, nos termos do disposto no Art. 2º, V e VI c/c o Art. 38 do

Código de Menores, que era “vigiado” e fiscalizado, nos mesmos moldes do que acontece com o imputável em relação ao sursis, sem que houvesse um programa de atendimento ou uma entidade responsável por promover ou orientar, socialmente, o

adolescente, no sentido de afastá-lo do mundo da criminalidade, oportunizando-lhe ou criando condições para que se torne um cidadão.

O objetivo era só vigiar, fiscalizar, reprimir, restringir, transportando o conteúdo do Direito Penal para a justiça diferenciada da infância e juventude, sem levar em conta a condição do adolescente de pessoa em desenvolvimento. A orientadora judiciária do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Ana Maria Gonçalves Freitas, percebendo essa diferença entre a liberdade vigiada do “direito do menor” e a liberdade assistida do ECA, explicita:

Esta discrepância foi bem flagrada no 1º Seminário Latino-americano da Capacitação e Investigação sobre os Direitos do Menor e da Criança frente ao Sistema de Administração da Justiça Juvenil (San José, Costa Rica, 1987), em cujas conclusões (entre outras) ficou assentado: 'cabe fazer a diferença de objetivos entre a liberdade vigiada (controle sobre a conduta do menor) e a liberdade assistida. (criação de condições para reforçar vínculos entre o menor, seu grupo de convivência e sua comunidade) [...] conveniente a aplicação, sempre que possível, última' (2005, p. 405, grifo da autora).

Na verdade, a liberdade assistida, no formato concebido pelo ECA, foi inspirada nas regras de Beijing – Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, cuja resolução foi aprovada na cidade de Beijing, China, no dia 18 de maio de 1984, e previa a liberdade assistida como uma medida alternativa à institucionalização do adolescente em conflito com a lei. Estabelece o Art. 18.1, b da referida resolução:

Art.18 – Pluralidade de Medidas Aplicáveis

18.1 – Uma ampla variedade de medidas deve estar à disposição da autoridade competente, permitindo a flexibilidade e evitando ao máximo a institucionalização. Tais medidas, que podem algumas vezes ser aplicadas simultaneamente, incluem:

a) determinação de assistência, orientação e supervisão; b) liberdade assistida.

O sistema de aplicação de medidas socioeducativas do ECA é diferenciado do sistema adotado pelo Código Penal, pois não estabeleceu, para cada infração, um tipo penal, uma sanção correspondente, transferindo, o legislador, para o juiz, considerável carga de discricionariedade, no sentido de encontrar “a medida adequada” para determinado caso concreto, sem estabelecer parâmetros objetivos para tanto. O sistema do ECA é fluido, flexível e pode comportar a aplicação de medidas desproporcionais e injustas, capazes de comprometer a própria segurança jurídica, principalmente quando o

magistrado encarna o perfil do juiz positivista-legalista do direito penal. A professora e mestre da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo, Martha de Toledo Machado, em sua excelente obra “A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos”, após esquadrinhar alguns sistemas de sancionamento, preleciona que o ECA adotou o sistema do tipo A-2 que ela explicita, minuciosamente, ao asseverar que:

[...] ao julgador é transferido um juízo de reprovabilidade de cada conduta individual que contempla não apenas a chamada reprovabilidade subjetiva diante do fato, mas também boa parte da reprovabilidade objetiva da conduta típica, porque esta não vem previamente fixada na lei nos rígidos patamares que incidem para os adultos e sim por critérios bem mais fluidos juridicamente (2003, p. 123).

Após explicitar o sistema adotado pelo ECA, exterioriza a sua preocupação com os valores “segurança jurídica” e “justiça”, ao arrematar:

O ordenamento está delegando ao juiz um amplo espaço de discricionariedade quanto à reprovabilidade de cada conduta típica penalmente, que necessariamente leva a um grau maior de insegurança jurídica: ficam mais fluidas as limitações no poder punitivo do Estado, eis que não há delimitação rígida da sanção previamente fixada em lei; arrisca-se maior grau de iniqüidade entre os cidadãos-adolescentes, na medida em que a pulverização da função jurisdicional exercida sob critérios mais fluidos favorece tratamento desigual a indivíduos que se encontram em situações semelhantes (MACHADO, 2003, p. 349).

Destarte, quando se lê o caput do Art. 118 do ECA, vê-se que o juiz, ao sentenciar o adolescente em conflito com a lei, poderá aplicar a liberdade assistida em qualquer ato infracional, mesmo naqueles de grande potencial ofensivo, como homicídio, roubos, estupro, dentre outros, desde que, consideradas as demais circunstâncias e a condição pessoal do adolescente, seja a medida mais apropriada para aquele caso, pois não há, como se vê, qualquer vedação legal. O objetivo da sanção educativa não é, simplesmente, a expiação, embora não se negue a carga retributiva da medida. Nem sempre a gravidade do ato infracional cometido impõe a aplicação da medida excepcional do internamento ou da semiliberdade, pois o fato pode ter sido isolado na vida do jovem, o qual pode reunir condições de cumprir a medida em meio aberto. Essa medida se nos afigura como a mais importante do ECA, pois, além da forte carga pedagógica que a acompanha, mantém o adolescente no seu status natural – liberdade – convivendo, normalmente, com a sua família e o seu meio social, o que

contribui, decisivamente, para sua reeducação, como sustenta a professora Martha Machado:

[...] a interação do adolescente com o meio social na sua condição de normalidade do relacionamento humano. (o que não se dá no cárcere) também potencializa a possibilidade de o adolescente modificar seu comportamento anterior, para ajustá-lo às regras do convívio social (2003, p. 157).

A aplicação da medida socioeducativa da liberdade assistida passa, necessariamente, pela existência de uma entidade, responsável pela sua execução, que possua uma estrutura física e humana capaz de promover, socialmente, o adolescente e sua família, fortalecendo os laços de afetividade, orientando-o e inserindo-o em programas de auxílio, como bolsa-escola, dentre outros, bem como auxiliando a família do jovem, incluindo-a em programa de auxílio, como programa de emprego e renda, casas populares etc., supervisionando a frequência e o aproveitamento escolar do adolescente, inclusive matriculando-o na rede pública de ensino.

Torna-se imperioso que a entidade faça um trabalho de conscientização e de parceria com as Secretarias de Educação e de Saúde do município e com outros órgãos, no sentido de assegurar o atendimento prioritário do adolescente em conflito com a lei, como preceitua o dispositivo constitucional. Entende-se que a questão envolvendo adolescente em conflito com a lei transcende a questão meramente jurídica, pois a solução do problema é de ordem multidisciplinar, exigindo a concorrência de outras áreas do conhecimento humano, como psicologia, antropologia, assistência social, psiquiatria, pedagogia. Enfim, o juiz deve se valer de subsídios fornecidos por uma equipe interdisciplinar coordenada por uma pessoa capacitada que elabore um verdadeiro projeto de vida para o adolescente, tratando-o de forma integral, no sentido de encontrar a “medida adequada”, limitando, assim, um pouco, o poder discricionário do juiz, muito embora esse, como se sabe, não deva ficar adstrito aos relatórios remetidos, periodicamente, pela entidade. Para não descer para a zona do arbítrio, entende-se que deve motivar decisão que contrarie os relatórios da entidade responsável pela execução da medida socioeducativa da liberdade assistida.

A coordenação pedagógica, com base em estudo de caso procedido pelos técnicos – pedagogos, psicólogos e assistentes sociais – deve remeter relatórios periódicos e circunstanciados –, mensais, bimestrais ou trimestrais, para o juiz, informando sobre a situação do adolescente, podendo sugerir a revogação, prorrogação

ou a substituição da medida por outra. Com efeito, quando se fala em estrutura física, isto faz supor a existência de oficinas de alfabetização, dança, informática, cursos profissionalizantes, como manicure, garçons, dentre outros – que possam manter o adolescente ocupado em algo produtivo e que lhe traga satisfação e aumente a sua autoestima, sem que prejudique sua frequência escolar ou, eventualmente, alguma atividade laboral.

Na Comarca de Itabuna, a Fundação Reconto foi pioneira na execução das medidas socioeducativas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade aplicadas pelo Poder Judiciário. A Fundação Reconto implementava as medidas socioeducativas em meio aberto em parceria com a Fundac. Há cerca de cinco anos que as medidas socioeducativas em meio aberto na Comarca de Itabuna estão sendo executadas pelo Creas/Medidas, órgão vinculado à Prefeitura Municipal de Itabuna, amoldando-se assim ao comando legal inserto no art. 5º, III da Lei n.º 12.594/2012, que estabeleceu a competência do Município para “criar e manter programas de atendimento para a execução das medidas socioeducativas em meio aberto”.

A lei estabelece que o prazo mínimo da liberdade assistida será de seis meses, admitindo-se a sua prorrogação, o que sugere a ideia inicial de que o prazo é indeterminado. Impõe-se, de logo, afastar essa assertiva, pois se a legislação penal brasileira não admite a prisão perpétua, a medida da liberdade assistida prevista no ECA, a fortiori, por se tratar de uma sanção socioeducativa aplicada a uma pessoa em desenvolvimento, não pode ter caráter perpétuo, indefinido.

O fato da medida socioeducativa – liberdade assistida, semiliberdade e internação – não comportar “prazo determinado”, não induz, necessariamente, a pensar que não possa ter uma duração máxima. Com efeito, consoante o disposto nos § 2º e 3º do Art. 121 do ECA, a medida socioeducativa do internamento não comporta prazo determinado, mas o período máximo de internamento não excederá o prazo de três anos. Ora, na medida mais grave, o prazo máximo não poderá ultrapassar três anos; por uma interpretação analógica, entende-se que a medida de liberdade assistida não poderá exceder três anos, devendo o adolescente ser avaliado, periodicamente, buscando aferir a possibilidade de se desligar do programa de atendimento, antes de completar o período máximo permitido, ou até que venha a completar 21 anos de idade, quando, então o desligamento é compulsório. A professora Martha de Toledo Machado partilha desse mesmo entendimento, como se pode depreender:

O Juiz deve simplesmente fixar qual sanção incide no caso concreto, escolhendo, por exemplo, entre a liberdade assistida, a semi-liberdade ou a internação. Mas a lei não impõe que ele concretize, delimite, na sentença, a duração da sanção escolhida. Ao contrário, a lei estabelece que esta sanção 'não comporta prazo determinado'. [...] o que a lei faz é impor o prazo máximo de duração de cada sanção cominada e impor a reavaliação da necessidade de manutenção da sanção periodicamente.

O prazo máximo cominado em lei é de três anos, em relação a todas essas três sanções. Em relação à internação e à semi-liberdade por norma expressa: artigo 121, § 3º, quanto à primeira, esse dispositivo combinado ao parágrafo 2º do artigo 120, quanto à segunda. Já em relação à liberdade assistida, por aplicação analógica do mesmo dispositivo, já que não há norma específica e a CF, por força da reserva legal, impede a existência de pena completamente indeterminada, para considerar o mínimo do conteúdo da reserva legal, e a sanção socioeducativa não deixa de contemplar, em boa medida, esse caráter de pena [...] (2003, p. 352-353, grifo da autora).

Dessa forma, embasado nessas razões e nas experiências bem sucedidas, principalmente nas Comarcas que adotaram esse modelo, como Itabuna, entendo que a liberdade assistida é, de fato, a principal medida pedagógica do ECA, quando aplicada, criteriosamente, por uma entidade onde atue equipe multidisciplinar, constituindo-se numa das grandes alternativas para direcionar o adolescente em conflito com a lei para o exercício pleno da cidadania, afastando-o, assim, definitivamente, dos caminhos tortuosos da criminalidade e das drogas.