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Tendo como núcleo a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes, nasce o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como um novo paradigma, conformando, num mesmo diploma, os denominados direitos civis e os direitos sociais do segmento infanto-juvenil, e não se limitando apenas à normatização de uma categoria ou classe, os menores, como vinha ocorrendo com os diplomas anteriores, mas criando o princípio da responsabilidade solidária do Estado, da sociedade e da família, na garantia e efetividade dos direitos fundamentais. A responsabilidade pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente não está mais centralizados na figura do juiz, que passa a ser mais um dos diversos atores, embora importantíssimo, diria até, imprescindível para a efetiva proteção dos direitos assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal. Segundo o escólio de Martha de Toledo Machado, a implementação de políticas públicas e a tutela jurisdicional consubstanciam dois mecanismos jurídicos para que se alcance a efetiva proteção desses direitos. Preleciona a ilustre jurista:

Na esfera da tutela jurisdicional, essa participação, embora não expressa e completamente pormenorizada, dá-se na medida em que a Constituição não apenas criou poderosos instrumentos de defesa judicial dos direitos fundamentais [...], como possibilitou a legitimação da sociedade civil organizada para a provocação da tutela jurisdicional em defesa dos direitos de crianças e adolescentes. (Na Constituição Federal, artigo 129, § 1º, concretizado pela Lei de Ação Civil Pública e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente).

Já na esfera das políticas públicas, a participação popular veio expressamente destacada pela remissão do parágrafo 7º do art. 227 ao art. 204 da CF: a) instituiu-se, como comando constitucional, a participação popular na formulação e no controle das ações, ou seja, no controle da execução das políticas públicas relacionadas com a proteção de crianças e adolescentes. (art. 204, II, da CF)b) Chamou-se as comunidades organizadas em entidades de classe, ou organizações não-governamentais se assim se preferir, a executar uma parcela das políticas públicas de atenção à infância e à adolescência. (art. 204, I, in fine, da CF).

Essa participação da comunidade organizada na defesa dos direitos de crianças e adolescentes reforça a noção de proteção integral deles e, penso, deriva também da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, pela faceta de maior vulnerabilidade que ela traz em si, mas, sobretudo, pela

faceta de força potencial de transformação da realidade para redução das desigualdades sociais, ligadas ao princípio fundante da dignidade humana e aos objetivos fundamentais da República referidos no artigo 3º da Constituição Federal (2003, p. 141).

Na verdade, o Estatuto da Criança e do Adolescente não veio para legitimar uma realidade de violação tradicional e sistemática de direitos, como sustentam os adeptos da filosofia substancialista, mas adveio como um novo paradigma de uma proposta revolucionária e transformadora da realidade, na linha progressista da educação freiriana, que concebe o ser humano como sujeito histórico, inacabado, ético, crítico e autônomo (FREIRE, 2003, p. 50), sendo, portanto, protagonista de seu próprio destino. Esse novo direito, de caráter ético, humanístico e transformador, exige, solidariamente, da família, da sociedade e do Estado que se efetivem os direitos de todas as crianças e adolescentes, independentemente de sua condição social, econômica, étnico/racial, enfim, de qualquer critério discriminatório ou preconceituoso, através de uma rede de atendimento e garantias de direitos que atue intersetorialmente. Roberto Diniz Saut compartilha desse entendimento, senão vejamos:

Nesse sentido é que se pode compreender o ECA no âmbito do modelo de Estado Democrático de Direito e de sua intencionalidade jurídico-político- social. Uma lei que incorpora oportunidade de viabilidade de uma práxis transformadora, de inserção social, de superação de exclusão social, ou seja, da exclusão dos direitos mais fundamentais do ser humano criança- adolescente.

O Estatuto, nesse âmbito, pode ser considerado uma lei-proposta, enquanto proporciona, consoante Maria Salete da Silva, o chamamento de todos ao 'esforço de romper com a Doutrina da Situação Irregular por ser uma lei- pedagógica no sentido do deságio' que lança Edson Sêda, um dos protagonistas da luta pela doutrina da proteção integral, quando se convence que os juristas devem ter a consciência de educadores construindo condições para as crianças e adolescentes poderem desabrochar à maioridade sadia (2008, p. 67, grifo do autor).

No âmbito do ECA, criança passou a ser a pessoa de até doze anos incompletos, e adolescente aquela pessoa de doze até 18 anos incompletos, todos, não mais como meros objetos de direitos, mas como sujeitos de direitos e titulares dos direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao lazer, ao esporte, à alimentação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à profissionalização e à convivência familiar e comunitária. A implementação desses direitos fundamentais depende do trabalho articulado e sincronizado de toda uma rede horizontalizada de atores em exercício nas diversas áreas. O legislador instituiu um sistema de garantias de direitos, estabelecendo o devido processo legal para que um adolescente tenha o seu

direito restringido ou a sua liberdade privada, assegurando, em seus arts. 106 e 110, que nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, ou seja, exige-se estritamente a observância do princípio da legalidade ou do devido processo legal.

O legislador criou o Conselho Tutelar como órgão autônomo, não-jurisdicional, com atribuição de aplicar medidas protetivas às crianças que cometeram algum ato infracional ou que estejam em situação de risco pessoal ou social, sofrendo algum tipo de violência. Criou um sistema de resposta diferenciada – responsabilização, para os adolescentes que cometem atos infracionais, estabelecendo as medidas socioeducativas – advertência, reparação de danos, liberdade assistida, prestação de serviços comunitários, semiliberdade e internação, todas revestidas de um caráter retributivo, mas preponderantemente pedagógico, levando em consideração a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, consolidando ainda o caráter de brevidade e excepcionalidade das medidas socioeducativas de semiliberdade e internamento, cuja competência, para aplicá-las, será do juiz da infância e juventude, depois de observado o devido processo legal. O Ministério Público passou a ser uma instância importantíssima, única legitimada a ajuizar a ação socioeducativa e acompanhar todos os processos, sejam cíveis ou administrativos, onde haja interesses de crianças e adolescentes. É um dos legitimados para ajuizar ação civil pública relacionada a direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos de crianças e adolescentes.

O ECA, na verdade, é um microssistema, no qual são previstos vários procedimentos – cível, administrativo e criminal –, que visa, fundamentadamente, tutelar todos os direitos e interesses de crianças e adolescentes, independente de serem pessoas “carentes”, bem criadas, filha de famílias milionárias, infratoras, enfim, a norma é direcionada para seres humanos na peculiar condição de pessoas em desenvolvimento. O ECA é um sistema normativo de garantias de direitos de crianças e adolescentes, independentemente de sua situação ou classe social; enfim, é um ordenamento normativo direcionado a toda infância e juventude.

O ECA criou um órgão responsável pela formulação de políticas públicas relativas à infância e juventude, que é o Conselho dos Direitos da Criança e Adolescente (Conanda), na esfera da União, o Conselho Estadual na esfera dos estados membros, e na órbita municipal, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que tem como função precípua deliberar e formular políticas públicas

relativas à infância e juventude no município, sendo também o órgão onde todas as organizações governamentais e não-governamentais que trabalhem com crianças e adolescentes devem inscrever seus programas de atendimento socioeducativo.

O ECA estabeleceu as infrações administrativas cominando pena de multa a pessoas físicas ou jurídicas, prevendo, inclusive, em alguns casos, a interdição do estabelecimento, para a hipótese de prática reiterada de conduta que venha a violar normas de proteção à criança ou ao adolescente. Também estabeleceu várias figuras típicas para determinadas condutas graves praticadas contra criança e adolescente, cominando penas de multa e de privação de liberdade. O ECA disciplina o acolhimento institucional e familiar de crianças abandonadas ou vitimas de maus-tratos, objetivando a reintegração familiar ou a colocação em família substituta, seja através da guarda, tutela ou adoção.

Na verdade, como já enfatizado, o Estatuto da Criança e do Adolescente inaugura um novo paradigma, fundado no principio da proteção integral e da dignidade da pessoa humana, reconhecendo a qualidade de sujeitos de direitos de crianças e adolescentes, na sua condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento físico, intelectual, emocional, moral e espiritual, e que deve merecer um tratamento diferenciado do Estado, principalmente na preservação dos seus direitos fundamentais, como o direito à vida, saúde, educação, alimentação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, convivência familiar e comunitária, e, acima de tudo, liberdade, que devem ser tutelados como prioridade absoluta. Ademais, de conformidade com as diretrizes de Riad, o adolescente não pode e não deve receber tratamento mais rigoroso do que aquele dispensado ao adulto imputável. Nesse diapasão, o juiz da infância e juventude deve ser o guardião dessas garantias e direitos inseridos em nosso ordenamento jurídico pelas convenções internacionais, pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.