• Nenhum resultado encontrado

O presente trabalho constitui uma pesquisa documental, procedimento este delineado a partir dos objetivos propostos para esta investigação. Conforme esclarece Gil (2002), nem sempre é clara a distinção entre pesquisa bibliográfica e

pesquisa documental, já que as fontes bibliográficas “nada mais são do que documentos impressos” (GIL, 2002, p. 46); também, porque muitas fontes documentais em algumas pesquisas são consideradas fontes bibliográficas noutras (jornais e revistas, por exemplo). Nesse sentido, segundo o autor, “é possível até mesmo tratar a pesquisa bibliográfica como um tipo de pesquisa documental, que se vale especialmente de material impresso fundamentalmente para fins de leitura.” (GIL, 2002, p. 46). O diferencial, então, segundo compreendemos, está na finalidade desta leitura.

Nossa fonte principal de documentos foram os cadernos de formação do PNAIC com enfoque em Linguagens, estudados no primeiro ano da realização do programa, em 2013. Nesta investigação, nós os assumimos como porta-vozes da política oficial e da produção científica na área e, ainda, como a “porta de entrada” na rede de relações do PNAIC. Eles são constituídos, além de outros conteúdos, de discussões teóricas e de relatos práticos a partir dos quais são desenvolvidas análises de natureza pedagógica. Esse material é, pois, fruto de levantamento bibliográfico e dialoga com observações realizadas pelos autores em contextos investigativos. Aos cursistas servem, assim, como um conjugado teórico-prático que lhes permite conhecer e aprofundar saberes e fazeres. Logo, assemelham-se a material bibliográfico e de teor científico.

Contudo, no contexto desta tese, nosso interesse ao procedermos à leitura analítica do material formativo do programa se difere do objetivo primeiro que motivou sua produção: não fazemos uma leitura para conhecermos as diferentes contribuições dos autores sobre o tema pesquisado, alfabetização e letramento; não nos colocamos à frente deste material tomando-o como aporte teórico-científico para nossa pesquisa. Os cadernos servem-nos como documentos ou fonte documental porque, no contexto desta investigação, são explorados como objetos de investigação e de discussão ao serem alvo de tratamento analítico. Ainda, em conformidade com os postulados de Cellard (2012), podemos tomar esses cadernos como testemunhas da ação formativa do programa, sendo por nós recontextualizados histórica e socioculturalmente quanto à sua produção, permitindo-nos realizar algumas reconstruções.

Também, esta pesquisa se alinha ao paradigma qualitativo-interpretativista. Seu propósito contempla aspectos humanos e não-humanos, questões políticas, diversidades sociais, econômicas e culturais, ou seja, fenômenos que requerem

interpretação, muito além dos dados quantificadores. Sua base, portanto, reside no entendimento de que, ao interpretar uma realidade social, o homem pode construir vários significados para ela, de modo que não há apenas uma realidade, mas várias (MOITA LOPES, 1994). Essa forma de investigação vai ao encontro de nossa proposta, uma vez que esta busca dar conta de uma pluralidade de vozes derivadas de diferentes domínios (educacionais, políticos, sociais, históricos), fazendo-o por meio da interpretação de significados que divisamos no material formativo específico do PNAIC.

Compreendemos os objetos investigados dentro do contexto complexo em que se inserem e ocorrem, conforme argumenta Morin (2001, p. 40), para quem “o conhecimento das informações ou dados isolados é insuficiente. É preciso informações e dados no seu contexto para que tomem sentido”. Por isso, a partir da leitura do material formativo e de bibliografias dedicadas ao aprofundamento conceitual-metodológico de alfabetização e letramento, buscamos fazer o levantamento da conjuntura socioeconômica, histórica e política dentro da qual se propôs o referido programa e em que foram elaborados os cadernos de estudo. Não foi despropositadamente que, ao longo deste trabalho, discorremos sobre o cenário histórico e político de produção do material analisado e de realização das formações do programa. Além disso, perpassamos pelo universo profissional dos autores desses documentos, para que conhecêssemos as estruturas institucionais e conceituais em que estão alicerçadas as formações do PNAIC. Cellard (2012) aponta como primordial avaliar o universo sócioeconômico, cultural e político que envolve a produção e a recepção dos documentos, ainda que estes tenham sido escritos em um passado recente. Foi a partir desse contexto que buscamos compreender particularidades, analisar os conceitos apresentados pelos autores dos cadernos, seus argumentos e suas opções metodológicas.

Especialmente, consideramos se tratar de um programa oficial de formação docente, em que os autores falam em nome de um grupo social, manifestando razões e interesses deste. Não seria, então, possível ignorar a forte presença política nos documentos; também não, as relações existentes entre os autores desse material e os escritos por eles elaborados, uma vez que estes somam suas próprias construções teóricas, interpretações bibliográficas e percepções também pessoais.

Leituras, releituras e fichamentos da bibliografia e dos cadernos formativos tiveram papel central em todo o processo investigativo. Quanto a estes, a ordem de leitura obedeceu à própria sequência de organização do material: primeiramente, os cadernos gerais (2 fascículos), que apresentam uma visão mais global do programa e das propostas, seguidos do grupo de oito cadernos para cada ano da primeira etapa do ensino fundamental (ao todo, 24). A leitura analítica dos documentos permitiu-nos identificar aspectos situacionais relativos ao contexto político- educacional a que o programa se vincula, concepções teóricas e didático- metodológicas, valores e práticas historicamente reproduzidos ou ressignificados no contexto da formação.

Partimos do pressuposto de que, uma vez que vivemos em um mundo atravessado por relações de poder inerentes a quaisquer situações (cf. MOITA LOPES, 2009), era preciso, nessa perspectiva, divisar as vozes que marcam o material analisado. Nele, por exemplo, vemos a presença assinalada da academia, dos professores da escola básica e do próprio governo federal. Entender como esses atores se movimentam para que o PNAIC se configure como tal é o desafio de nosso estudo.

Além disso, considerando que tudo é necessariamente político (FREIRE; MACEDO, 2013; PENNYCOOK, 2001) ― até mesmo e principalmente a língua, que reflete e pode construir desigualdades ― e em se tratando da prática educativa, é preciso saber que política a constitui, a favor de quê e de quem, contra o quê e contra quem se realiza (FREIRE; MACEDO, 2013). Pennycook (2001) defende que a LA deve preocupar-se em como a sala de aula está relacionada a contextos mais abrangentes, de natureza social, cultural e política. Essa é, pois, a extensão do nosso propósito com esta investigação.

Essas questões nos importam, uma vez que a educação pode contribuir para a manutenção do cenário de distinções e desvalorização social e política. Ela pode dar a falsa ideia de que se promove cidadania a partir de um ensino total e unicamente moldado pelas práticas escolares e até aprisionado a elas. Reconhecemos a importância dessas práticas e, por isso, não é nosso propósito condená-las. No entanto, a exclusividade do LE não é suficiente e se mostra pouco produtiva quando se pensa numa educação crítica e que amplie a habilidade discursiva e as atuações sociais dos estudantes, pois neutraliza-lhes a participação ao reproduzir e estabelecer hierarquias. Os estudos de Paulo Freire já mostravam

isso. Aliás, pode-se até mesmo fazer crer que só é cidadão aquele que tem acesso ao ensino escolarizado, ou seja, à escrita, concepção que se contrapõe à valorização da ecologia de saberes9. A riqueza da variedade de conhecimentos e as possibilidades de criação e expressão a partir dela é que devem ganhar evidência nas situações didáticas.

Entendemos, assim, que há relações de tensão e de desigualdades na comunicação verbal nas salas de aulas, especificamente entre docentes e alunos e entre esses grupos e os interesses governamentais. Podem acontecer intervenções nos ambientes escolares que, ilusoriamente, propõem mudanças em prol da democracia na construção do conhecimento, mas, por fim, acabam contribuindo para a manutenção da hierarquia social, política e econômica. A consequência disso é que a escola, tradicional e notadamente, ainda faz sobressair o enfoque no letramento escolarizado, no sentido de Street (2014) de “pedagogização do letramento”, com as práticas pedagógicas limitadas e limitantes ao se restringirem a conteúdos sistêmicos, pré-definidos, muitas vezes, por um currículo geral e estagnado. Talvez esse tipo de abordagem dos objetos de ensino possa não causar desconforto àqueles alunos provenientes de grupos mais letrados, mas podem parecer estranhos e sem proveito para aqueles oriundos de ambientes que tenham menos familiaridade com a língua escrita. Esse cenário é fruto, então, de desigualdades que marcam o contexto socioeconômico externo à escola, mas que têm implicações diretas na linguagem verbal, o que reforça a relação desta com questões de poder.

À vista desse contexto, lembramos que a abordagem política em LA, devido a seu teor necessariamente crítico e pontual, exige compromisso com uma investigação que seja ética, uma vez que, segundo Moita Lopes (2009), nem todos os significados são válidos e legítimos. Também, Fabrício (2006) vincula a indispensabilidade de uma postura ética estreitamente atrelada à LA como campo de saber:

9 A ecologia de saberes, um conceito de Boaventura de Souza Santos (cf. SANTOS; MENESES, 2010), refere-se ao reconhecimento da diversidade de saberes existentes ¾ especialmente os oriundos dentre os grupos oprimidos ¾, saberes estes que devem ser valorizados e que devem dialogar para que aconteça, de fato, a emancipação humana. Segundo o autor, é um processo coletivo, democrático de produção de conhecimento democrático (CARNEIRO; KREFTA; FOLGADO, 2014).

[...] afilio-me a uma LA que se constitui como prática problematizadora envolvida em contínuo questionamento das premissas que norteiam nosso modo de vida; que percebe questões de linguagem como questões políticas; que não tem pretensões a respostas definitivas e universais, por compreender que elas significam a imobilização do pensamento; que tem clara postura epistemológica, entendendo que a produção de conhecimento não é neutra, pois se encontra entretecida a um domínio de práticas sócio- historicamente situadas, podendo apenas ser aplicada ao contexto da situação sob investigação; que adota um modelo de teoria crítica entendida, segundo Marcondes (1998), como exame de suas próprias pressuposições e condições de possibilidade e ciente de sua própria relatividade, alcance e limites; que será aberta a reavaliações; e, principalmente, que se preocupa com os desdobramentos éticos do conhecimento produzido. Enfim, uma área de conhecimento que, suspeitando dos sentidos usuais, se coloca em movimento contínuo e auto-reflexivo de deriva de si, sem destino fixo. Aposta, assim, nos descaminhos e na desaprendizagem de qualquer tipo de proposição axiomática como um refinamento do processo de conhecer [...] – aquele que se realiza no trânsito por diferentes regimes de verdade e diferentes áreas disciplinares, desfamiliarizando os sentidos neles presentes e modificando a experiência da própria área de conhecimento na qual se insere. (FABRÍCIO, 2006, p. 60-61)

Logo, LA e ética devem se manter estreitamente vinculadas. É preciso sempre se considerarem os possíveis efeitos das pesquisas, especialmente quando assumem uma agenda política, transformadora, intervencionista (FABRÍCIO, 2006). O caminho percorrido pelo pesquisador irá atingir algum plano social, beneficiando ou prejudicando de alguma forma, o que deve ser cuidadosamente considerado.

Além disso, Celani (2005) argumenta que posturas e procedimentos não éticos — como fraude e má conduta intencional ou não — podem levar a danos e prejuízos, seja para os participantes da pesquisa (quando têm lesada a sua dignidade), para os investigantes (em suas interações com colegas, alunos e pesquisadores iniciantes), para a profissão ou, ainda, para a sociedade como um todo, que perde a confiança em pesquisadores. Para a autora, um processo investigativo deve se pautar em valores como confiança, responsabilidade, veracidade, qualidade, honestidade e respeitabilidade, além de não almejar riqueza e poder. Isso está para além de um manual de códigos de conduta (PENNYCOOK, 2001); Kleiman (2002) afirma tratar-se de uma questão de princípio da identidade do linguista aplicado, ao pretender contribuir criticamente para o debate social.

Ainda, segundo Fabrício (2006), o pesquisador tem a responsabilidade de contribuir de modo a favorecer os grupos por ele pesquisados, não para a desvalorização deles. Principalmente porque, no geral, são grupos sem prestígio social; por isso, mais desprotegidos e vulneráveis. Moita Lopes (1996) também alerta para os efeitos de pesquisas sobre esses que insistentemente têm sido

colaboradores de investigações ou sobre os quais estas tratam: em vista das direções que têm sido assumidas por determinados trabalhos, devemos ser cuidadosos em nossa forma de abordagem, para que não colaboremos com a manutenção do controle social ou contribuamos com interesses de grupos dominantes. O autor considera:

Certamente, o pesquisador deve ter cuidado para que sua pesquisa não seja usada para tirar a voz e caçar o poder de quem está em situação de desigualdade. Fazer pesquisa, ie, produzir conhecimento, é uma forma de construção de significado prestigiada na sociedade e, portanto, impregnada das relações de poder inerentes à prática discursiva. Assim, os resultados de nosso trabalho podem ser usados para desempregar, condenar, criar incompetência, etc. (MOITA LOPES, 1996, p. 11)

Não obstante quaisquer diligências, ainda pode haver danos. Os dados e os resultados, por exemplo, são publicizados em trabalhos científicos e ficam disponíveis para acesso por quaisquer outros leitores. Uma vez colhidas as informações junto aos participantes, elas ficam vulneráveis a interpretações de terceiros ou a serem reutilizadas por outros pesquisadores para objetivos e enfoques que podem ser discordantes daqueles inicialmente propostos por quem as coletou. Esse é um cuidado que buscamos ter, uma vez que analisamos relatos de práticas pedagógicas consideradas exitosas pelos autores dos cadernos. Em muitas situações, assumimos posicionamento divergente destes, à vista das considerações que fazemos sobre os sentidos de alfabetizar letrando ou na perspectiva do letramento.

Por isso, reiteramos nosso compromisso político e ético de contribuir com melhorias na educação e com a formação plena das crianças, desde a fase de alfabetização. Reconhecemos o professor como ator fundamental nesse processo e que deve ser formado para discernir as relações de poder, de modo que também possa permitir a outros distingui-las. Nossa pesquisa pretende servir a esses interesses. Impossível, portanto, que seja objetiva a tal ponto de ser neutra. Contudo, conforme propõe Paiva (2005), munimo-nos do sentimento de responsabilidade e de solidariedade como guia de nossas ações investigativas, de modo a fazê-las éticas por meio da observação atenta das informações, buscando ser fiéis a elas e honestas ao relacioná-las. Frente à vulnerabilidade inerente às interpretações, procuramos assumir posicionamento crítico claro em relação aos procedimentos da pesquisa, ao fato pesquisado e aos resultados interpretados.

Por fim, esclarecemos não ser nossa pretensão depreciar práticas e esforços meritórios. Não se trata também de culpar alguém ou um grupo pelo quadro que retratamos. Importa-nos, sim, melhor compreendê-lo o mais abrangentemente possível, dentro dos limites desta pesquisa, para que o apresentemos como resultado da ação conjunta de muitos fatores que se movem na dinâmica de seu acontecimento, se associam e se embatem em suas relações.

Voltamos ainda a Gil (2002) para destacar que a pesquisa documental tem como vantagem a própria materialidade dos documentos. Mas, transgredindo quaisquer pretensões de interpretação positivista, não se trata de responderem definitivamente a um problema ou de serem garantia de objetividade. Eles permitem, sim, que se melhor visualize o problema pesquisado, que se demore e se aprofunde na análise das fontes, que se volte a elas por outros meios. Entretanto, tal como observa Martins (2004), em se tratando de pesquisa qualitativa, não há neutralidade. A objetividade é relativa, devido à influência do pesquisador; ela provém dos critérios empregados para investigação. Como analistas, buscamos investigar o conteúdo simbólico dos documentos, a partir de um ângulo de leitura, dentre vários outros possíveis. Também por esse motivo, os dados com que trabalhamos ao longo da tese, ao refletirem nossa interpretação, seguem em anexo (Anexo 1) como forma de mostrarmos nossas análises, de oferecermos nosso objeto de estudo a pesquisas

3 CONTEXTO DE PESQUISA

Neste capítulo, discorremos sobre o objeto de nossa pesquisa e o contexto em que se insere: o programa oficial de formação docente, PNAIC, e o material formativo que orientou os estudos dos cursistas no período de 2013. Apresentamos ainda um breve levantamento sobre os principais aspectos históricos e políticos que marcam a educação até a implantação do programa, uma vez que influenciam, de alguma forma, sua configuração e realização e ainda contribuem para o quadro atual da educação brasileira.