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4 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: CONCEITOS, SENTIDOS E

4.2 ESPECIFICIDADES DA RELAÇÃO ENTRE ALFABETIZAÇÃO E

No Brasil, a defesa de um processo alfabetizador que se dê associado ao letramento é geralmente atribuída a Soares (2009, 2016). A autora emprega a expressão “alfabetizar letrando”, o que, segundo ela mesma esclarece, corresponde a “ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se torne, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado” (SOARES, 2009, p. 47. Destaques adicionados.). Dizer que a alfabetização deve acontecer em contexto de letramento significa “a participação em eventos variados de leitura e de escrita, e o consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes

positivas em relação a essas práticas” (SOARES, 2017, p. 47). Ou seja, desenvolvem-se atividades que trabalham com as especificidades de alfabetização, mas também se propiciam vivências de práticas genuínas de leitura e escrita. Essa perspectiva fica evidente também no excerto a seguir, quando a autora é mais específica ao afirmar que se trata da integração e do desenvolvimento simultâneo de habilidades.

A integração das facetas permite que, ao mesmo tempo que vai aprendendo a codificar e decodificar, a criança vá também aprendendo a compreender e interpretar textos, de início lidos pelo(a) alfabetizador(a), aos poucos lidos

por ela mesma, e a produzir textos, de início em escrita inventada, aos poucos em frases, em pequenos textos de diferentes gêneros, ditados para o/a alfabetizador(a), que atua como escriba, ou escritos por ela mesma. Em outras palavras, a criança se insere no mundo da escrita tal como ele é: aprende a ler palavras com base em textos reais que lhe foram lidos, que compreenderam e interpretaram – palavras destacadas desses textos, portanto, contextualizadas, não palavras artificialmente agrupadas em pseudotextos, não mais que pretextos para servir à aprendizagem de relações grafema-fonema; e aprende a escrever palavras produzindo

palavras e textos reais – não palavras isoladas, descontextualizadas, ou frases artificiais apenas para prática das relações fonema-grafema; e ao mesmo tempo vai ainda aprendendo a identificar os usos sociais e culturais

da leitura e da escrita, vivenciando diferentes eventos de letramento e conhecendo vários tipos e gêneros textuais, vários suportes de escrita:

alfabetizar letrando. [...] Dessa forma, contextualiza-se o processo de

alfabetização – a aprendizagem da faceta linguística – associando-lhe o

letramento – o desenvolvimento simultâneo das facetas interativa e sociocultural. (SOARES, 2016, p. 350-351. Destaques adicionados.)

Por sua vez, os cadernos do PNAIC, para representarem a relação que deve ser estabelecida entre alfabetização e letramento, empregam duas expressões: “alfabetizar letrando” (que aparece em 9 dos cadernos formativos que analisamos, totalizando 19 vezes em que foi utilizada pelos autores: Ano 1, unidades 1, 3, 5 e 6; Ano 2, Unidade 1; Ano 3, unidades 3, 5, 7 e 8) e “alfabetizar” ou “alfabetização na perspectiva do letramento” (utilizada com mais frequência, sendo empregada 43 vezes, em quase todos os cadernos formativos, exceto nas unidades 4 e 8 do Ano 1 e nas unidades 4 dos anos 2 e 3). Nos excertos do Exemplo 1, ilustramos essas ocorrências:

Exemplo 1

(a) Os quadros em que são descritos os direitos de aprendizagem evidenciam que há, nos dias atuais, diferentes demandas de ensino, em que diversas dimensões da alfabetização são explicitadas: dimensões relativas ao eixo da análise linguística, contemplando o domínio do Sistema de Escrita Alfabética; dimensões relativas à inserção das crianças nas práticas sociais em que a escrita faz-se presente; dimensões relativas à ampliação dos usos da oralidade. Todas

essas dimensões, de forma articulada, representam, na realidade, a defesa de uma alfabetização

na perspectiva do letramento, ou seja, um processo em que, ao mesmo tempo, as crianças possam aprender como é o funcionamento do sistema de escrita (relacionar unidades gráficas, as letras individualmente ou os dígrafos, às unidades sonoras, os fonemas), de modo articulado e simultâneo às aprendizagens relativas aos usos sociais da escrita e da oralidade. (Ano 3,

Unidade 1, p. 15-16. Destaques adicionados.)

(b) Embora saibamos que, hoje, letramento é um conceito complexo e multifacetado, ao pensarmos no processo de alfabetização e de ensino-aprendizagem da escrita na escola, concebemos letramento como o conjunto de práticas de leitura e produção de textos escritos que as pessoas realizam em nossa sociedade, nas diferentes situações cotidianas formais e informais. Nessas situações, os gêneros textuais são incrivelmente variados e cada um deles tem características próprias quanto à estrutura composicional, quanto aos recursos linguísticos que usa, bem como quanto às finalidades para que é usado e aos espaços onde circula. Como Magda Soares (1998) e outros estudiosos, consideramos perfeitamente possível e adequado alfabetizar letrando, isto é,

ensinar o SEA, permitindo que os aprendizes vivam práticas de leitura e de produção de textos, nas quais vão incorporando aqueles conhecimentos sobre a língua escrita. (Ano 1, Unidade 3, p.

7)

Tanto nas explanações de Soares (2009 e 2016) como no fragmento (a), aparecem termos-chaves que procuram precisar como deve ser a relação entre alfabetização e letramento na prática pedagógica, o que corresponderia à alfabetização na perspectiva do letramento, em contextos de letramento ou a alfabetizar letrando. Trata-se das afirmações de que essas práticas devem ser integradas, articuladas, simultâneas ou, ainda, que devem ser realizadas ao mesmo tempo. Contudo, não reputamos a todos esses termos significados sinonímicos e, por isso, colocamos em discussão os sentidos que acarretam.

Segundo o Dicionário Houaiss, integrado é um adjetivo que qualifica aquilo que se integrou, que foi incorporado. Integrar significa “incluir(-se) um elemento num conjunto, formando um todo coerente; incorporar(-se)” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1630). Já o Dicionário Aurélio, além disso, nota que as partes do todo se completam ou complementam (FERREIRA, 2004, p. 115-116). Assim, pressupor a integração das facetas relativas à aprendizagem da língua significa que elas devem incorporar- se no conjunto representado pelo processo de alfabetização, formando uma completude só alcançada devido à realização tanto de abordagens da língua enquanto sistema como também de abordagens dos usos sociais e culturais dessa língua. Ou seja, a escola deve se dedicar ao ensino-aprendizagem das relações fonografêmicas e, de igual modo, ao trabalho com textos de circulação social mediados pela escrita. Nessa perspectiva, trata-se de um trabalho continuado ao longo do período que se denomina, no geral, “de alfabetização”, em que sejam desenvolvidas ambas as dimensões. Nesse caso, não necessariamente aconteceriam a um mesmo tempo, no sentido de ambas serem abordadas numa

mesma atividade didática. Teríamos, assim, uma configuração tal como procuramos mostrar na Figura 11:

Figura 11 – Alfabetização e letramento como práticas integradas

Fonte: Elaborada pela autora.

Por sua vez, compreendemos que dizer que as dimensões são articuladas e que a aprendizagem também deve se dar de modo articulado vai além do que se espera como integrado no processo de alfabetização. Além de constituírem o todo, devem se estabelecer pontos de contato, de união, de junção entre os componentes desse conjunto (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 308), o que, nesse caso, acontecerá a partir dos textos em seus propósitos sociais, já que é neles que a língua se materializa e é para se construí-los que se alfabetiza. Ou seja, além da necessidade de formarem um conjunto no processo de alfabetização, as dimensões de alfabetizar e letrar devem se sobrepor em alguma medida, estando direta e materialmente relacionadas na ação pedagógica (Figura 12).

Figura 12 – Alfabetização e letramento como práticas articuladas

Fonte: Elaborada pela autora.

Nesse sentido, compreendemos que é a articulação que acarreta a simultaneidade, e esta se realizando na proposição das atividades, já que simultâneo significa síncrono, coincidente, que se faz ou se realiza ao mesmo tempo ou quase ao mesmo tempo que outra coisa (HOUAISS, 2001, p. 2575). Nesse caso, o “tempo” diz respeito ao momento específico e imediato de cada ação pedagógica.

A ideia de articulação é coerente com a formação gramatical da expressão “alfabetizar letrando”: combinam-se duas formas nominais de verbos ¾ um no infinitivo, outro no gerúndio. Nessa construção, uma vez que o verbo no gerúndio está imediatamente após o outro, ele expressa uma ação simultânea, correspondente a um adjunto adverbial de modo (CUNHA; CINTRA, [s.d.], p. 480). Nessa condição, “letrando” é o modo como se alfabetiza e, segundo rege a gramática, devem, então, ser as duas ações realizadas concomitantemente, em um mesmo momento. Nessa acepção, letra-se ao alfabetizar e alfabetiza-se ao letrar. Para tanto, compreendemos que as atividades sobre as propriedades da escrita devem ser desenvolvidas a partir de textos, abordados em atividades de leitura e escrita que visem, de fato, à interação, como um produto cultural construído

socialmente, para além do letramento escolarizado40. Mas não somente: também por meio da realização deles, os alunos devem ser mobilizados a compreenderem e a apreenderem o sistema de escrita.

Para melhor esclarecermos esses sentidos e sua culminância na prática pedagógica, pensemos nas propostas de atividades que discutimos a seguir, retiradas de livros didáticos de ensino de língua materna. A primeira delas, Figura 13, constitui uma sugestão de trabalho com uma agenda diária de atividades a serem realizadas no período em que a criança estará na escola. O objetivo, nesta situação sugerida, é desenvolver estritamente habilidades de leitura e interpretação escrita. Trata-se de uma sequência de atividades elaboradas por Magda Soares com a finalidade de trabalhar letramento no 1º ano do ensino fundamental (SOARES, 1999, p. 29-30)41. Conforme a autora deixa explícito nas anotações dirigidas aos professores nas laterais das páginas referentes à proposta, o objetivo é levar os alunos a identificar o uso da escrita para planejar atividades. Para tanto, é indicado que o professor contemple outras possibilidades de horários, inclusive o horário diário da turma; de igual modo, que discuta outros conhecimentos relativos a calendário, por exemplo, e a noções de localização temporal (antes, depois, ontem, amanhã etc.).

40 Reiteramos, entretanto, a importância da didatização das práticas de letramento, a qual compreende atividades e práticas próprias, e até exclusivas, da escola. Ela se faz relevante especialmente para aprendizagem de questões específicas que dificilmente são compreendidas de forma natural, espontânea. Por isso, dizemos que as práticas de texto serão realizadas para além desse letramento escolar (LE), o que não o exclui do processo de ensino-aprendizagem; somam- se a ele outras abordagens, estendidas a outros usos sociais. Uma vez realizadas na instituição de ensino, necessariamente passarão por um processo de escolarização, nesse caso, o processo institucional e formal de ensino-aprendizagem (práticas escolares, com orientações, questionamentos e outras ações), o qual compreende as referências sociais que se tem da escola. A observação que fazemos é que não se pode incorrer no erro de se dar exclusividade ao LE ou de se priorizá-lo sobremaneira, em detrimento de outras práticas letradas. Se assim acontecer, os alunos poderão ser privados de vivências e aprendizagens necessárias para interagirem adequadamente nas diversas instâncias para além da escola. Importante sempre considerar que as experiências sociais e culturais fora da escola devem também adentrar as salas de aula, não só servindo como objetos de reflexão, mas, principalmente, sendo realizadas dentro de propósitos genuínos de interação também na instituição de ensino.

41 Optamos por discutir atividades dessa obra didática porque foi citada em momento da qualificação desta tese. Embora ela date duas décadas, o formato de suas práticas ainda se mantém ¾ conforme vemos nas recentes entrevistas concedidas pela autora ¾ e constituem a natural heterogeneidade da organização didático-metodológica da sala de aula.

Figura 13 – Proposta de livro didático visando a trabalhar letramento

Fonte: SOARES, 1999, p. 29-30. Livro didático para o 1º ano do ensino fundamental.

Nessa sugestão didática, apresenta-se o texto e questões relativas a ele, voltadas à localização de informações constantes no gênero em questão. Coerentemente com o propósito de letrar, ela não encaminha, específica e sistematicamente, para abordagens referentes à estrutura da língua, embora reconheçamos, na leitura e na escrita de textos, oportunidades para os alunos intuírem sobre a estrutura e a gramática da língua, bem como para confrontarem suas hipóteses a respeito. Assim, naturalmente a leitura do texto e das questões, bem como as respostas escritas contribuem com o processo de alfabetização, mas o mero contato com essas construções dificilmente promoverá a aprendizagem do sistema da língua e de todas as suas propriedades sem direcionamento sistemático, já que se trata de convenções42.

42 Daí a relevância também do letramento escolar, LE, já que, em muitas situações, é preciso que as práticas de leitura e escrita na escola se diferenciem daquelas realizadas fora desse espaço, a fim de que cumpra com sua função social.

Na expectativa de que noutro momento a professora dará enfoque a essas questões linguísticas43, reconhecemos, nessa forma de organização do trabalho pedagógico, alfabetização e letramento como práticas integradas, já que se trabalham ambas as dimensões ao longo do período destinado à alfabetização, embora em momentos didáticos diversos. Ou seja, elas constituem o todo da prática alfabetizadora, de modo que, ao findar da etapa escolar dedicada a isso, espera-se que o aluno esteja alfabetizado e letrado. São, assim, práticas contemporâneas, não simultâneas.

Diferentemente, entretanto, é pensar na realização dessas práticas articuladamente. Essa é a possibilidade que mostramos no fragmento a seguir, segundo estudo e análise realizados por Gomes, Dias e Silva (2008)44. Na situação didática relatada e discutida pelas autoras, além de a rotina ou agenda de atividades da turma servir intencionalmente para que os alunos aprendam sobre os usos e as funções da escrita, ela serve também, ao mesmo tempo, como contexto em que e por meio do qual os alunos aprendem sobre o próprio sistema de escrita. É o modo como a atividade foi realizada, a partir de interações entre professora e alunos, que permitiu essa possibilidade de integração articulada.

A professora pede ajuda a Manuela para escrever o quinto item da Rotina do Dia, PARA CASA. Manuela soletra as letras dessa expressão e a professora a escreve no quadro em letra de imprensa e cursiva. Quando a professora termina o registro, Manuela conta quantas vezes a letra ‘a’ se repete em PARA CASA45. Pedro vai ao quadro, aponta as letras repetidas. A professora enfatiza a reflexão desses dois alunos ao dizer para toda a turma: ‘1, 2, 3, 4. Isso mesmo, tem quatro ‘as’’. A professora pede a Júlia para ajudá-la a escrever o sexto item da Rotina, BRINQUEDO. Ao ouvir a palavra BRINQUEDO, a turma toda vibra: ‘Oooobaaaaaa!!!’ A professora volta a perguntar a Júlia como é que se começa a escrever BRINQUEDO. Dois alunos, Ana Carolina e Hermes, apresentam respostas alternativas: BI e BIN, respectivamente. A partir daí, inicia-se a discussão sobre a estrutura silábica das palavras {sic} que se torna objeto de reflexão dos participantes no restante do evento.

[...]

Professora: Me ajuda, Júlia, a escrever brinquedo. Como é que começa?

43 Até mesmo porque esta obra compõe uma coletânea para o ensino fundamental. Há os livros 1, 2, e 3 dedicados à alfabetização (um dos quais referenciamos nesta tese, de Gladys Agmar Sá Rocha, 1999).

44 No texto original, essas informações constituem quadros, nos quais se indicam outros dados que julgamos dispensáveis para nossa abordagem; por exemplo, as linhas da transcrição da gravação do evento em fita de vídeo.

45 Segundo lembram as autoras, é uma reflexão comumente vivenciada pelas crianças em fase de aquisição da escrita, já que elas têm como hipótese o critério de variedade dos caracteres na composição das palavras, conforme teoria de Ferreiro e Teberosky (1999).

[Professora escreve no quadro BRI e para.] Ana Carolina: B I

Hermes: B I N

[Nessa hora, a professora sai do quadro e vai para a mesinha falar com Ana Carolina.]

Professora: Espera aí. Deixa eu entender o que a Ana Carolina está falando aqui. Primeiro o quê?

Ana Carolina: Consoante é primeira e a segunda é vogal.

[A professora volta ao quadro e aponta a palavra CHEGADA, registrada no início do evento.]

Professora: A segunda tem que ser vogal. Mas dá uma olhadinha nessa palavra aqui ó. ‘C’ é consoante?

Ana Carolina: Não.

Professora: ‘C’ é o quê? Vogal? Ana Carolina: Não.

Hermes: Não, professora. Ela tá falando que toda palavra tem que ter uma consoante e vogal também.

Professora: Pode ter palavra só com vogal? [A professora desafia a validade da hipótese manifestada por Hermes.]

Ana Carolina: Não.

Hermes volta-se para a câmera: Vogal é A-E-I-O-U.

Professora: Sempre tem que ter. Tem. Vogal é A-E-I-O-U. Ah! E isso aqui [se refere à palavra A da expressão A CASA escrita no quadro pela professora] não é uma palavra não? Olha.

[...]

[A professora propõe perguntas acerca da quantidade de letras e de palavras, acerca da composição dessas palavras em termos de uso de consoantes e vogais. Após um período de discussão, segue a finalização dessa sequência de atividades. Escreve a palavra CHEGADA no quadro.] Professora: Ah! Mas aí eu perguntei o seguinte: se na palavra chegada tem uma consoante e logo depois uma vogal. Vamos ver? ‘C’ é consoante, não é? E ‘H’?

Ana Carolina: Também é. Professora: Também é. E o ‘E’? Ana Carolina: Vogal. [Todos repetem.]

Professora: Ah! Então aqui eu tenho consoante, consoante, vogal, num dá pra ler não?

Ana Carolina: Dá.

Professora: Eu achei, Carolina, que só podia ser consoante com vogal. Pode ter duas consoantes?

Ana Carolina: [Vai ao quadro e, enquanto escreve seu nome, vai dizendo se a letra é consoante ou vogal. A turma e a professora observam Ana Carolina.] Ah! Igual isso. A é uma vogal; N é consoante; A é vogal; C é consoante; A é vogal; R é consoante; O é vogal; L é consoante; I é vogal; N é consoante; A é vogal.

Professora: Isto! Muito bem! Semana que vem nós vamos começar a fazer isso com nossos nomes, tá? (GOMES; DIAS; SILVA, 2008, p. 64, 66, 70, com alterações.)

Como vemos, a produção do gênero serviu, ao mesmo tempo, num mesmo evento didático, à aprendizagem de estruturas linguísticas. As próprias autoras caracterizam o evento como uma “articulação entre o trabalho com um gênero textual e o estudo de características estruturais do sistema de escrita” do português (GOMES; DIAS; SILVA, 2008, p. 60). Segundo elas, “ao produzirem a Rotina do Dia, a professora e os alunos, simultaneamente, realizam uma prática de uso social e

escolar da linguagem e tornam a escrita de palavras objeto de estudo” (p. 63. Destaque adicionado). Isso só foi possível porque se dedicou boa parte do tempo da aula para apresentação, discussão e registro da agenda do dia, momento em que a professora ouviu os alunos e pôde confrontá-los e instigá-los a falar, visando, intencional e sistematicamente, ao desenvolvimento conceitual da turma quanto à escrita.

Quando além da integração há a articulação das facetas, vemos um importante ganho didático: o aluno participa da construção de sentidos concomitantemente à aprendizagem do sistema, o que lhe exige reunir mais de um processo cognitivo, tal qual naturalmente se vivencia nos contextos de interação mediados pela escrita. Além disso, o aluno pode reconhecer, na prática, motivo relevante para se envolver com a construção de conhecimentos e saberes, especialmente no que se refere à habilidade de escrita e a seus usos sociais.

Então, vemos nesses termos distinções semânticas e pragmáticas que não podem ser ignoradas. Esses vocábulos têm recebido destaque nas proposições conceituais de autores que pesquisam sobre o tema ¾ tal qual se deu nos cadernos formativos do PNAIC ¾, com vistas a melhor esclarecerem do que se trata alfabetizar letrando, em contexto de letramento ou na perspectiva do letramento. Mas, a depender de como sejam interpretados, irão culminar em práticas pedagógicas distintas. Além disso, pode ser a falta de clareza em seus sentidos ou as próprias divergências de compreensões que fazem com que professores se sintam incapazes de colocar em prática as ações do PNAIC, tal qual nos foi externado em momentos das formações de 2014 e 2015.

Retomemos, por exemplo, o fragmento de natureza conceitual que retiramos do caderno Ano 1, Unidade 3 (excerto (b) do Exemplo 1)46. Nele se usa a expressão “alfabetizar letrando”, que trazemos especificada no texto de Soares (2016), em que a autora fala de um processo de alfabetização que seja contextualizado. No

46 Novamente o apresentamos aqui para favorecer a discussão: “Embora saibamos que, hoje, letramento é um conceito complexo e multifacetado, ao pensarmos no processo de alfabetização e de ensino-aprendizagem da escrita na escola, concebemos letramento como o conjunto de práticas de leitura e produção de textos escritos que as pessoas realizam em nossa sociedade, nas diferentes situações cotidianas formais e informais. Nessas situações, os gêneros textuais são incrivelmente variados e cada um deles tem características próprias quanto à estrutura composicional, quanto aos recursos linguísticos que usa, bem como quanto às finalidades para que é usado e aos espaços onde circula. Como Magda Soares (1998) e outros estudiosos, consideramos perfeitamente possível e adequado alfabetizar letrando, isto é, ensinar o SEA, permitindo que os aprendizes vivam práticas de leitura e de produção de textos, nas quais vão