• Nenhum resultado encontrado

4 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: CONCEITOS, SENTIDOS E

4.1 REVISITANDO E PROBLEMATIZANDO CONCEITOS

Na ocasião da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em 1990 ― a que nos referimos no capítulo anterior ―, defendeu-se a erradicação do

analfabetismo até o final do século XX, objetivo este que, obviamente, não foi concretizado. Reconhecia-se que a educação escolar “pode contribuir para conquistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e ambientalmente mais puro, e que, ao mesmo tempo, favoreça o progresso social, econômico e cultural, a tolerância e a cooperação internacional” (DECLARAÇÃO..., 1990, p. 2). Emerge nesse discurso uma visão liberal ¾ e, por que não, propositadamente ingênua ¾ da alfabetização como promotora de progresso, como um bem condicionante de realizações pessoais e sociais. Também por isso, a declaração nos desvenda a amplitude social, cultural e política que o saber ler e escrever envolve, amplitude esta que se torna tão extensa e profunda que é preciso definir que habilidades de leitura e escrita se pode esperar realmente de um indivíduo alfabetizado e que lhe permitam atuar nos domínios sociais. Ademais, é preciso ver com cautela as consequências dessa alfabetização, o que muito extrapola os limites deste trabalho. Conforme já buscamos mostrar com a Teoria Ator-Rede, quando se trata das relações nos diversos contextos, multifatores devem ser considerados como agentes que acarretarão inumeráveis condições.

A definição de habilidades, de atributos relativos à alfabetização, não deixa de ser arbitrária (SOARES, 2017), mas faz-se necessária principalmente quando se reconhece a relação entre alfabetização e conquista/exercício pleno da cidadania. A citação a seguir, embora longa, expressa perspectivas valiosas quando se trata de alfabetização, especialmente se compartilhamos das premissas freireanas para a abordagem do tema:

[...] as responsabilidades dos que promovem e desenvolvem programas de alfabetização são inseridas em um objetivo maior, que é o de participar da construção de uma sociedade mais justa e da constituição de uma identidade política e cultural para o conjunto do povo brasileiro, filiando-se à luta contra as discriminações e as exclusões.

No quadro referencial dessas reflexões, cabe-nos colaborar na descoberta de soluções para o combate ao precário acesso que o povo brasileiro vem tendo à leitura e à escrita, mas soluções que realmente levem à inserção na cultura letrada, pois as soluções que têm sido propostas, tanto as soluções escolares quanto as soluções adotadas em movimentos de alfabetização de adultos, na verdade frequentemente camuflam, sob o pretenso ‘alfabetizado’, aquele que, embora tenha aprendido a ler e a escrever, não se apropriou verdadeiramente da leitura e da escrita como bem simbólico de uso político, social e cultural, não se integrou realmente na cultura letrada: ao povo tem-se permitido que aprenda a ler e a escrever, não se lhe tem permitido que se torne leitor e produtor de textos. (SOARES, 2017, p. 175. Destaques da autora.)

Uma vez suscitadas discussões como essa, vemos que ainda é latente o debate sobre o que é “alfabetização” e o que significa “ser alfabetizado”, especialmente quando se considera que se lê e se escreve algo, de alguma forma, em algum momento, por um motivo. Ou seja, a alfabetização se relaciona estreitamente com o social, com a cultura, com a história de uma sociedade. Paulo Freire já reconhecia isso há décadas29, quando propôs sua teoria da educação, por meio da qual se posicionou claramente contra a alfabetização como aquisição de uma técnica (SOARES, 2017). O conceito de alfabetização em Freire (1995) ganha contornos mais críticos, agregando implicações e discussões políticas. Para o autor, a alfabetização deveria conscientizar, politizar o homem, tornando-o mais consciente de sua realidade, mais crítico, de modo que poderia, assim, agir sobre ela. Por isso uma prática educativa que considerasse o meio onde e o modo como os alfabetizandos viviam.

Nessa perspectiva e devido também a outras discussões mais recentes, como as teorias de aprendizagem e o letramento, ainda se busca transformar o ensino da escrita, eliminando da escola a herança das cartilhas. Esses materiais ofereciam um ensino que promovia aprendizagens bastante restritas e limitantes. Além de desenvolverem metodologias baseadas na repetição e memorização de unidades menores da língua, não promoviam conhecimento dos textos como gêneros, explorados segundo suas características e seus propósitos e determinantes sociais; os contextos de produção da língua eram preteridos ante o privilégio que ganhava o estudo de fonemas, letras e sílabas. Essa orientação pedagógica acabava impedindo ou dificultando o desenvolvimento das habilidades de compreensão e produção de textos, bem como a argumentação e a formação crítica dos estudantes.

Mas é principalmente como fruto de mudanças na dinâmica social que surge a necessidade de se estenderem as práticas alfabetizadoras e de se designar o conjunto de atividades sociais de interação mediada pela escrita, com que se envolvem todos que convivem com a escrita e que interagem por meio dela, mesmo que precisem de intermediários para isso em algumas situações, como o caso de

29 Apesar de longa data da “pedagogia freireana”, a perspectiva que prevalece nos cadernos quanto ao conceito de alfabetização (e letramento) é de Magda Soares, com uma abordagem dedicada também ao campo social, mas no sentido de ser contextualizada; então, volta-se mais às questões metodológicas que à crítica política e ideológica. Paulo Freire é retomado em poucos momentos no material formativo e, quando citado, foi para se abordar a autonomia do professor como sujeito inventivo, a necessidade de uma prática planejada, sistematizada e que preveja articulação entre os diversos campos de conhecimento (Ano 1, Unidade 2; Ano 2, Unidade 2; Ano 3, Unidades 1, 2, 5 e 8; e no caderno geral sobre formação de professores).

pessoas analfabetas. Ainda, nesse sentido, ser alfabetizado ou saber ler e escrever passou a implicar também ter domínio do uso intencional e competente da leitura e da escrita, para além do emprego da tecnologia, da técnica: lendo-se e compreendendo-se o que foi lido; escrevendo-se e sendo compreendido o que foi escrito (cf. SOARES, 2017). Para essas representações semânticas, num primeiro momento, ainda na década de 1995, Soares optou pelo termo alfabetismo30; posteriormente, ganhou lugar o termo “letramento”, na interface com alfabetização.

Como consequência, tão logo diversos estudos surgem buscando elucidar e discutir alfabetização e letramento. Procedeu-se a uma revisão conceitual da própria natureza da alfabetização. O que significaria, então, “ser alfabetizado”, se a aprendizagem da técnica de codificar fonemas e de decodificar grafemas deixou de ser suficiente num contexto sócio, histórico e cultural? Essa é uma discussão que ainda persiste nos campos político, educacional e acadêmico-científico.

Segundo documentos do PNAIC (Caderno de Apresentação), dizer que a criança está alfabetizada significa que ela desenvolveu algumas habilidades: compreende o funcionamento do sistema de escrita; domina correspondências grafofônicas, ainda que este domínio não se estenda completamente às irregularidades ortográficas e às construções mais complexas; lê com fluência, compreende e produz textos escritos (BRASIL, 2012o). Ou seja, a criança aprendeu o sistema de escrita, domina suas propriedades e sabe ler e escrever textos de circulação social mais comuns e, claro, dentro das limitações esperadas para a infância, de modo que constrói sentidos para o que lê e cuja produção escrita também tem sentido para o outro (Figura 8).

30 Em texto primeiramente apresentado na XVII Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – ANPEd, em outubro de 1995; depois, no texto publicado na Revista Brasileira de Educação, em seu número inaugural desse mesmo ano. Segundo a autora (SOARES, 2017, p. 147), na época ela usou alfabetismo como sendo constituído de duas dimensões: uma, individual, referindo-se à habilidade de leitura e escrita; outra, social, como se referindo ao conjunto de atividades e de demandas sociais de uso da língua escrita.

Figura 8 – Conceito de alfabetização no PNAIC

Fonte: Elaborada pela autora.

Nessa perspectiva, hoje, para ser considerado alfabetizado, não basta que um indivíduo conheça as letras, que forme palavras e frases, especialmente se a proposta for alfabetizar e letrar. Logo, o letramento se faz como uma extensão da alfabetização (SOARES, 2004), à vista da necessidade de não apenas se compreender o sistema de escrita, mas também de se fazer uso desse sistema para fins de interação social. Isso tem implicações pedagógicas na escola e fica claro em Teberosky e Tolchinsky (2002, p. 8), quando as autoras afirmam:

[...] reconhecemos no analfabetismo uma carência muito mais ampla que saber ler e escrever e atribuímos ao suposto resultado da alfabetização algo muito mais abrangente que saber ler e escrever. Pensamos que a escola deve considerar esses diversos componentes da noção de alfabetismo no que diz respeito aos níveis de conhecimentos tanto quanto à amplitude de meios notacionais na organização de atividades e na escolha dos materiais de leitura, desde os primeiros passos da educação formal.

Essa avaliação das autoras faz-se pertinente e leva-nos a reconhecer que o significado de alfabetização é de natureza não só pedagógica, mas também política, histórica e social. O conceito altera-se conforme o momento histórico de cada sociedade, segundo seus estágios específicos, sua cultura e, portanto, suas demandas. É a partir desse quadro, trazendo-o para o contexto brasileiro imediato, que divisamos a importância de se promover o acesso à aprendizagem da leitura e da escrita como possibilidade de ampliação da participação social e cidadã. Dizemos

“ampliação” porque o indivíduo analfabeto também é cidadão e participa ativamente da dinâmica social. Também, falamos em “possibilidade”, já que saber ler e escrever, embora tenham importância incomensurável, não são habilidades que condicionam ou que garantem a participação social mais engajada politicamente. Aliás, uma participação mais comprometida e audaz pode ser motivada pela própria escola, ao desenvolver abordagens pedagógicas estreitamente associadas a práticas de letramento sociais para além da instituição, buscando formar leitores e produtores de textos que realmente se apropriem da escrita.

A despeito dos debates insurgidos desde o limiar das últimas eleições presidenciais no Brasil em 2018, quando a defesa pela exclusividade do método fônico ganhou centralidade nas discussões políticas e educacionais sobre alfabetização no país, parecia já consolidada a concepção de alfabetização e letramento como processos distintos, mas indissociáveis, e que, necessariamente, deveriam ser trabalhados de forma integrada na educação formal brasileira. Essa concepção tornara-se sólida nos documentos oficiais e em parte significativa da literatura científica sobre o assunto, fazendo-se aceita e adotada por muitos professores alfabetizadores, embora ainda havendo desafios a serem vencidos na prática pedagógica. E, importante destacar, essa concepção não exclui o método fônico; só não lhe confere exclusividade, inserindo-o junto a outras proposições metodológicas.

Nessa ótica, a partir de um relativo afastamento conceitual entre alfabetização e letramento, Soares (2003a) define alfabetizar, de modo mais restrito, como o processo de se levar ao alfabeto, à aprendizagem das relações fonema/grafema. A esse processo também se somam alguns conhecimentos técnicos, relativos a habilidades motoras para a realização da escrita e da leitura; por exemplo, aprender a usar tecnologias para a escrita (lápis, caneta, borracha e mesmo equipamentos eletrônicos, como o teclado de um computador) e aprender que se escreve e se lê (geralmente) de cima para baixo e da esquerda para a direita. Concepção semelhante têm Albuquerque, Morais e Ferreira (2013, s/p.) ― autores de algumas seções dos cadernos do programa ―, para quem a alfabetização corresponde à apropriação da escrita alfabética pelos indivíduos no sentido de compreenderem os princípios que regem o sistema notacional.

Reunidos esses atributos da alfabetização e considerando-se que a ela se soma uma segunda dimensão, o letramento, o conceito congrega cinco componentes, conforme ilustramos na Figura 9.

Figura 9 – Conceito de alfabetização em relação ao letramento

Fonte: Elaborada pela autora.

Como sumarizado no organograma, o processo de ensino e aprendizagem da língua escrita pressupõe um mediador que levará o aprendiz à consciência do alfabeto, ao domínio do sistema ortográfico padronizado da língua em que será alfabetizado. Dizemos que “levará à consciência” porque, obviamente, a experiência da criança com a escrita não é inaugural quando ela inicia a etapa escolar de alfabetização. Antes desse momento, ela já se relaciona com a escrita em suas vivências particulares, com menor ou maior frequência; ela já experienciou situações de escrita e de leitura, ainda que essas práticas tenham sido por ela apenas observadas ou realmente vivenciadas, pela mediação de alguém alfabetizado. A partir das situações de interação mediadas pela escrita que se apresentarem à criança nesse decurso da escolarização, ela pensará a língua e descobrirá que esse alfabeto serve para notar os sons da fala, associando fonemas e grafemas; também, descobrirá que a notação se faz conforme uma combinação desses elementos e

segundo princípios definidos para isso. Para registrar essa escrita ou mesmo para ler um texto escrito, a criança também tomará conhecimento de que há habilidades motoras específicas que coordenam o modo como se escreve e como se lê.

No que diz respeito à compreensão dos princípios que regem o sistema notacional, segundo Morais (2005, p. 42), para se apropriar da escrita alfabética, o aprendiz deve compreender:

1) que se escreve com letras, que as letras não podem ser inventadas, que para notar as palavras de uma língua existe um repertório finito (26, no caso do português); que letras, números e outros símbolos são diferentes; 2) que as letras têm formatos fixos (isto é, embora p, q, b e d tenham o mesmo formato, a posição não pode variar, senão a letra muda); mas, também que uma mesma letra tem formatos variados (p é também P, P, p, P, p, etc.), sem que elas, as letras, se confundam;

3) quais combinações de letras estão permitidas na língua (quais podem vir juntas) e que posição elas podem ocupar nas palavras (por exemplo, Q vem sempre junto de U e não existe palavra terminando com QU em português); 4) que as letras têm valores sonoros fixos, convencionalizados, mas várias letras têm mais de um valor sonoro (a letra O vale por /ó/, /õ/, /ô/ e /u/, por exemplo) e, por outro lado, alguns sons são notados por letras diferentes (o som /s/ em português se escreve com S, C, SS, Ç, X, Z, SC, SÇ, etc). (MORAIS, 2005, p. 42).

Sob a perspectiva da teoria da psicogênese da escrita ¾ teoria desenvolvida pelas psicolinguistas argentinas Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, que partem do pressuposto piagetiano de que todo conhecimento tem uma gênese ¾, essas propriedades são paulatinamente descobertas pelas crianças em fase de alfabetização, embora as aprendizagens acerca da leitura e da escrita comecem antes mesmo dessa etapa. Os aprendizes constroem seus conhecimentos e, especialmente, reconstroem a linguagem, sendo participantes ativos no processo; no caso do sistema alfabético, apropriam-se dele interagindo com a língua escrita. Não se trata, então, de repetir e memorizar, como se propunha nas cartilhas; também, a compreensão necessária não se dá apenas se recebendo informações do meio exterior, transmitidas pelo professor, por exemplo. As crianças, frente ao desafio de compreensão da linguagem escrita, formulam as próprias hipóteses a respeito, as quais se diferenciam ao longo das etapas do processo de apropriação do SEA. Essas hipóteses apontam para a reflexão a que procedem acerca da escrita alfabética; direcionam para “níveis de conceitualização” e representam os modos de organização do conhecimento infantil a respeito da linguagem escrita. Os erros são consequências dessas hipóteses e, por isso, devem ser vistos como construtivos e

indicadores do grau de conhecimento das crianças sobre o idioma. Em todo esse processo, o professor é importante mediador (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999).

Os estudos de Ferreiro e Tebersoky deixaram importantes contribuições ao campo educacional, embora também tenham sido alvo de equívocos, especialmente no Brasil31. As autoras se apropriaram das abordagens epistemológicas de Jean Piaget, ampliaram-nas com fundamentos da Psicolinguística para darem conta da linguagem e aplicaram-nas no campo pedagógico32. Segundo elas, a aquisição dos atos linguísticos de leitura e escrita se dá progressivamente, à medida que os aprendizes buscam responder o que a escrita representa e o modo de construção dessa representação.

A psicogênese da escrita não se trata, assim, de um método de ensino (portanto, não se pode falar em “método construtivista”), mas consiste numa teoria de aprendizagem, que aponta o aluno como sujeito que age, que elabora, que constrói (daí o nome “construtivismo”) e que é resultado desse processo. No processo de ensino-aprendizagem, então, o professor deve ser um mediador, um promotor de conflitos que levarão ao avanço cognitivo dos alunos. Logo, a abordagem da psicogênese da escrita tem implicações pedagógicas, no sentido de fazer com que a escola repense suas ações e suas expectativas para com as crianças em fase de alfabetização. Segundo Ferreiro e Teberosky (1999), longe de considerar o processo de construção do conhecimento, a escola geralmente:

¾ serve àqueles alunos que já percorreram um longo caminho sozinhos, tendo já alcançado um nível mais avançado de conceitualização acerca da escrita; são esses que aprenderão o que a escola se propõe a ensinar e nas condições que o faz;

¾ vê como déficits as diferenças de desenvolvimento conceitual em que se situam as crianças em fase de alfabetização, ignorando que a aprendizagem é um processo;

31 Trataremos também dos equívocos em momento à frente neste texto, visto que impactaram e têm ainda impactado, sobremaneira, a alfabetização no país.

32 Segundo Jean Piaget, filósofo e psicólogo suíço, o conhecimento é construído por meio da interação entre o sujeito que conhece e o objeto que é conhecido; elaborou, assim, uma teoria geral dos processos de aquisição de conhecimento. Emilia Ferreiro, com formação em Psicologia Genética, foi orientanda de Piaget no período de 1966 a 1970 e, também, sua auxiliar de pesquisa posteriormente.

¾ acredita no exercício mecânico como forma de se aprender a língua escrita, reduzida à produção de sons e à reprodução de formas; por isso, impede a criança de pensar quando se dedica a ditados, cópias e decifrações, numa busca insistente de se evitarem erros;

¾ não auxilia o aluno no processo de construção do conhecimento da escrita, mas parte de uma perspectiva adulta, de que o aluno deve sempre ser capaz de desempenhar um certo trabalho cognitivo, negando-lhe as fases de desenvolvimento que lhe são próprias.

As autoras assim resumem as consequências pedagógicas provenientes de suas pesquisas:

[...] a leitura e a escrita se ensinam como algo estranho à criança, de forma mecânica, em lugar de pensar que se constituiu num objeto de seu interesse, do qual se aproxima de forma inteligente. Como disse Vygotsky (1978), ‘Às crianças se ensina traçar letras e fazer palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. A mecânica de ler o que está escrito está tão enfatizada que afoga a linguagem escrita como tal’. E logo acrescenta: ‘É necessário levar a criança a uma compreensão interna da escrita e conseguir que esta se organize mais como um desenvolvimento do que como uma aprendizagem’. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 293)

A aprendizagem mecânica era alimentada pelos métodos de ensino de outrora, sintéticos e analíticos; eles enfatizavam a escola, o processo de ensino. Por sua vez, a teoria da psicogênese da escrita desloca o foco para o modo como os alunos aprendem: “Entre o que é ensinado e o que a criança aprende há um intermediário, que é o processo de assimilação. A criança reinterpreta a informação que recebe para compreendê-la” (EMILIA..., 1985).

Essa mudança de abordagem representou uma revolução conceitual e tem, ainda hoje, promovido avanços na alfabetização, de modo que se tem buscado escapar do artificialismo das cartilhas e, ainda, divisar hipóteses lógicas construídas pelos alfabetizandos até o momento em que realmente se apropriam da escrita como um sistema notacional. Daí a relevância das verificações diagnósticas ao longo de todo o processo alfabetizador. Em entrevista à Folha de São Paulo em 1985, a própria Emilia Ferreiro explica em que suas concepções se diferem da visão tradicional, concepções estas que a tornaram conhecida por constituírem uma “revelação conceitual da alfabetização”:

Na concepção tradicional, o importante são os componentes perceptivos e motrizes. Para que a criança aprenda a ler e escrever, deve ser capaz de fazer boas discriminações perceptivas, aprender a distinguir entre duas formas visuais próximas entre si, dois sons próximos entre si, para não confundi-los {sic}; aprender a controlar seus movimentos para traçar linhas retas e curvas corretamente e fazer boas associações entre formas gráficas e sonoras, entre letras e sons de linguagem. Fundamentalmente, a aprendizagem é considerada pela visão tradicional como técnica. A criança aprende a técnica da cópia, do decifrado. Aprende a sonorizar um texto e a copiar formas. O que eu contribuí é na explicação de que por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa. Essa criança que pensa não pode se reduzir a um par de olhos, de ouvidos e a uma mão que pega o lápis. Ela pensa também a propósito da língua escrita e os componentes conceituais desta aprendizagem precisam ser compreendidos. (EMILIA..., 1985)

Sob esse novo paradigma, aos demais atributos supracitados (Figura 9) acrescentamos a concepção de alfabetização como um processo também de