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Verificamos que a evolução do eixo estruturador das políticas sociais da desigualdade para a chave da exclusão orientou a redefinição operativa necessária para que os métodos de gestão social se adequassem à nova realidade social, política e econômica. As categorias de análise inseridas por esta perspectiva podem ser reconhecidas na análise das políticas sociais brasileiras, e em especial, do município de Belo Horizonte. Apesar de esta abordagem incluir uma série de elementos teóricos essenciais a nosso trabalho empírico, ela ainda não seria suficiente. Além das críticas que lhe são imputadas por manter a identificação da política social como política de redução da pobreza (ou das desigualdades), numa perspectiva franca ou unicamente liberal, ela não evoluiu de forma suficiente para a incorporação das demandas e ênfases acionadas numa perspectiva comunitarista. A lógica binária continuou a prevalecer na relação liberalismo-comunitarismo.

Esta abordagem dicotômica se soma a muitos outros diversos binarismos. Como afirmam Kellner e Best “nossa situação atual nos apanha entre o moderno e o pós- moderno, o velho e o novo, a tradição e a atualidade, o global e o local, o universal e o particular e outras novas matrizes concorrentes” (2002, p.22). Esta tensão entre correntes teóricas não respondeu integralmente às necessidades do gestor público que, por sua vez, não tem como escapar à multidimensionalidade dos problemas que cotidiamente enfrenta:

“Para trabalhar essas tensões, precisamos desenvolver novas sínteses da teoria e da política moderna e das pós-modernas para administrar novidades e complicações de nossa contemporaneidade. Na verdade, tanto as posições modernas e pós-modernas têm pontos fortes e fracos e precisamos buscar uma combinação criativa dos melhores elementos de cada uma. Assim, deveríamos combinar noções modernas de solidariedade, alianças, consensos, direitos universais, lutas macropolíticas e institucionais

com noções pós modernas de diferença, pluralidade, multiperspectivas, identidade e micropolítica”(KELLNER; BEST; 2002, p.22).

A relação entre redistribuição e reconhecimento continua, como podemos perceber pelas análises descritas, subteorizada (FRASER; HONNETH; 2003, p.1). Uma concepção adequada da justiça, em nosso entendimento, deveria considerar, no mínimo, as preocupações com a distribuição e também com o reconhecimento. Sem essa integração não teremos como “chegar a um quadro adequado às demandas do nosso tempo” (FRASER, 2002, p.246). Nancy Fraser (1996, 1997, 2000, 2002, 2003) aceita este desafio. Ela propõe uma perspectiva dualista, onde uma categoria não se encontra subordinada à outra, mas onde ambas são tidas como dimensões de justiça co-fundamentais e mutuamente irredutíveis. A autora nos alerta insistentemente que, a justiça requer hoje simultaneamente tanto reconhecimento como redistribuição, sendo que nenhuma delas, sozinha, seria suficiente para solucionar ou remediar as injustiças sociais. Elas corresponderiam a compreensões distintas de injustiça que, se reintegradas, nos permitirão chegar a um quadro mais adequado das demandas de nosso tempo. A autora se propõe então a, em teoria, criar um paradigma bi-dimensional de análise da justiça social em tempos de pós- socialismo.

Em seu esforço para combinar de forma coerente a política cultural da diferença e a política social de igualdade, a autora vai se dedicar a conceituar ambos os campos, vai teorizar a respeito de como os mesmos estariam entrelaçados e vai tentar clarificar os dilemas políticos que nos surgem quando no combate simultâneo de ambas as injustiças. Comecemos, portanto, por uma descrição breve de alguns de seus conceitos. Há inúmeras conceituações dos termos “reconhecimento cultural” e “igualdade social”. Em sua teorização, Nancy Fraser busca distinguir analiticamente a redistribuição do reconhecimento, expondo a distinção entre suas lógicas numa percepção das injustiças relacionadas a ambos (2002, p.248). Afirma que os dois paradigmas podem ser contrastados a partir de quatro pontos chave, a saber: a concepção de justiça; os tipos de remédios propostos; a percepção sobre que coletividade sofre a injustiça; e, a compreensão sobre as diferenças grupais.

Fraser considera que a injustiça socioeconômica está enraizada na estrutura político-econômica da sociedade. A autora considera este tipo de injustiça pode ser classificado em três categorias:

− Exploração: “ter os frutos do trabalho de uma pessoa apropriado para o beneficio de outros” (FRASER, 2002, p.249);

− Marginalização econômica: “ser limitado a trabalho indesejável ou baixamente remunerado ou ter negado acesso a trabalho assalariado” (FRASER, 2002, p.249) caracterizando uma situação de pobreza;

− Privação: “ter negado um padrão material adequado de vida” (FRASER, 2002, p.249) o que ser manifestaria em eventos como a miséria e a fome.

Estes tipos de injustiça seriam sofridos por classes ou coletividades/grupos nelas baseados (definidas economicamente pela distinção em sua relação com o mercado ou com os meios de produção). O “remédio” mais adequado para sanar tais injustiças seria a reestruturação econômica, a redistribuição da riqueza, dos rendimentos ou do bem-estar.

Na compreensão de Fraser, a falta ou mesmo a distorção no reconhecimento se constituiria num outro padrão de injustiça, desta vez no âmbito propriamente cultural/simbólico. Neste caso, a autora também apresenta três categorias para a classificação deste tipo de injustiça:

− Dominação cultural: “sendo sujeitados a padrões de interpretação e de comunicação associados à outra cultura estranha e/ou hostil” (FRASER, 2002, p.250)

− Não-reconhecimento: “ser considerado invisível pela práticas representacionais, comunicativas e interpretativas de uma cultura” (FRASER, 2002, p.250)

− Desrespeito: “ser difamado habitualmente em representações públicas estereotipadas culturais e/ou em interações cotidianas” (FRASER, 2002, p.250) o que corresponde a abuso físico, psicológico e moral.

A coletividade, alvo da injustiça neste caso seria o grupo de status78 e, portanto, o

“remédio” adequado seria a possibilidade de uma mudança cultural ou simbólica,

revalorizando as identidades desrespeitadas, reconhecendo e valorizando positivamente a sua inerente diversidade cultural.

Quadro 1 – Paralelo conceitual entre os paradigmas da redistribuição e do reconhecimento segundo Nancy Fraser

Pontos-chave Redistribuição Reconhecimento

Concepção de justiça A injustiça é socioeconômica e

decorre da estrutura econômica da sociedade.

A injustiça é cultural e decorre

dos padrões sociais de

representação, interpretação e comunicação.

Coletividade sofre a injustiça

Classe. Grupo de status.

Remédios propostos Reestruturação econômica. Mudança cultural ou simbólica.

Compreensão sobre das

diferenças grupais São diferenciais injustos, resultados sociamente construídos de políticas econômicas injustas, que deve ser abolidos.

Variações culturais pré-

existentes (ou não)

transformadas em valores

hierárquicos, que devem ser promovidas.

Fonte: Elaboração própria

A distinção entre estes dois tipos de injustiça é meramente analítica. Apesar das diferenças, segundo o paradigma que orienta a autora, os dois tipos de injustiça perpassam a sociedade estando eminentemente imbricados. Ambas formas estariam enraizadas em práticas que sistematicamente beneficiam alguns grupos em relação a outros (FRASER, 1997, p.15).

Um segundo aspecto ao qual a autora se dedica é o da teorização sobre os modos como as desvantagens econômicas e as manifestações do desrespeito cultural estariam entrelaçados. A autora destaca que as políticas de reconhecimento e de redistribuição, numa primeira visada, pareceriam ter fins contraditórios, especialmente, no que se refere aos grupos - “onde a primeira tende a promover a diferenciação a, segunda tende a minar isso” (FRASER, 2002, 254). Esta afirmação revela reivindicações e demandas que estariam em tensão e que, de certa forma, poderiam vir atrapalhar uma à outra. No entanto, há pessoas que, estando sujeitas às injustiças culturais e econômicas simultaneamente, precisariam negar e reivindicar suas especificidades. A autora classificaria casos como este no que ela define por dilema redistribuição/reconhecimento. Ao construir esta imagem Nancy Fraser coloca as duas dimensões em um único espectro, estando cada uma delas em um extremo e admitindo-se a possibilidade de termos casos que ocupam vários níveis de gradação em direção ao meio, como nos mostra a figura a seguir. Isto nos retiraria de uma lógica exclusivamente binária e nos insere na possibilidade de algo

poder, ao mesmo tempo, coexistir (mesmo que em graus diferenciados) com o seu oposto. Ao inserir a possibilidade pelo menos analítica de que venhamos a nos deparar com tais modelos híbridos na perpetuação de injustiças, a autora nos leva a pensar e a questionar se, de fato, existiriam coletividades realmente puras.

Figura 1 – Espectro redistribuição/reconhecimento

Fraser afirma que “coletividades ambivalentes [...] podem sofrer injustiças socieconômicas e não reconhecimento cultural em formas nas quais, nenhuma dessas injustiças seria um efeito indireto da outra, mas em que ambas são primárias e originais” (2002, p.264). Procura destacar como nessas situações ambivalentes um tipo de injustiça poderia reforçar a outra e exigir uma abordagem distinta quanto à forma de remediar as injustiças. Desta forma, a autora em questão nos remete ao terceiro aspecto de suas considerações: a tentativa de esclarecer os dilemas políticos que surgem quanto tentamos combater ambas as injustiças simultaneamente. É na compreensão das diferenças grupais que ela revela as maiores tensões, pois um eixo remete a eliminação das diferenças e outro no indica a valorização das especificidades do grupo79.

Com a apresentação resumida da proposta do paradigma bidimensional de Fraser, no qual vamos amplamente nos apoiar aqui nesta dissertação, acreditamos ter reunido os elementos teóricos necessários a nosso trabalho empírico.

79 Em seu trabalho a autora dedica-se a partir deste ponto a discussão dos possíveis remédios, criando uma tipologia própria para tratar os vários tipos de ações passíveis de corrigir injustiças em uma realidade marcada pelo hibridismo. Recomendamos ver seus trabalhos (1996, 1997, 2002 e 2003) para conhecer melhor esta proposta. Esta não será objeto de estudo deste trabalho.

Redistribuição Reconhecimento

Dilema

5 ANÁLISE DAS POLÍTICAS SOCIAIS SOB O PARADIGMA BIDIMENSIONAL DA JUSTIÇA: O CASO DE BELO HORIZONTE

Por mais coerente e atual que pareça o paradigma bidimensional da justiça apresentado por Fraser (1996, 1997, 2002, 2003), nos deparamos com a necessidade de buscar, em alguma realidade empírica, elementos que fossem capazes de nos evidenciar a possibilidade de sua factibilidade ou ainda que revelassem a sua acurácia e exeqüibilidade práticas.

Vamos aqui, então, apresentar os elementos metodológicos que nos orientaram no sentido de chegarmos à proposição de uma aplicação empírica/orientada para o paradigma já mencionado. Partiremos de uma discussão mais geral sobre o método estatístico e comparativo nas ciências sociais para, mas adiante, propor como nosso fundamento metodológico a “lógica nebulosa” (fuzzy logic). O estudo de caso e o método GOM (Grade of Membership), por sua vez, serão utilizados como forma de aplicação da “lógica nebulosa” e irão funcionar como apoio sistemático, do ponto de vista metodológico, para a sustentação e debate crítico com o referido paradigma da justiça social.