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2.2 ESTADO MODERNO, POLÍTICAS SOCIAIS E DIREITOS DE CIDADANIA

2.2.2 O ESTADO SOCIAL

A ascensão da burguesia e o desenvolvimento tecnológico levam ao advento da indústria como motor do progresso econômico. Com o estabelecimento da sociedade de livre mercado a crescente acumulação de riqueza da classe burguesa convive com a pauperização da classe operária, que a despeito de possuir igualdade perante a lei, não possuía igualdade de oportunidades sendo subjugada a uma condição de inferioridade, marcada pela pobreza e pela fome.17 Esta contradição

constitui-se como um elemento de tensionamento constante nas relações que se estabelecem entre os diferentes sujeitos sociais e como o motor que alavanca o processo histórico de reivindicações e conquistas dos setores sociais marginalizados dos benefícios produzidos pelo avanço das condições de produção material (ZANETTI, 2002, p.31).

As primeiras ações do Estado para melhorar esta dada ordem social são observadas no caso inglês, mais especificamente, no estabelecimento da Poor Law (1536)18 e do Statute of Artificiers (1563). No entanto, a ambigüidade destas leis (apesar de tentarem aliviar a pobreza evitando a miséria, destituíam o beneficiário da condição de cidadão) e sua ineficácia geram o aumento das tensões e a organização de movimentos reivindicatórios. A questão social eclode, impondo-se como um fato perturbador da ordem e das instituições liberal-burguesas (PEREIRA, 2002).

A passagem do Estado Liberal, protetor, para o Estado Social, provedor, se dá gradativamente a partir dos movimentos trabalhistas do século XVIII (SIMON, 2005, p.199). Nos séculos XIX e XX as lutas dos trabalhadores se confundem com lutas de emancipação política das nações contra este sistema de dominação produzido pela elite industrial. A política social é introduzida na sociedade moderna com a tarefa de regular as relações entre capital e trabalho (ARAÚJO, 2003).

17 “As sociedades modernas contêm, em essência, um elemento de contradição, representado pela afirmação da igualdade de direitos como princípio fundante das relações jurídicas entre os indivíduos e entre os cidadãos e o poder, e a desigualdade como manifestação mais clara das relações econômicas de classe” (ZANETTI, 2002, p.31)

A questão seguridade social constitui o objeto das primeiras ações intervencionistas do Estado Social. São exemplos do envolvimento do Estado com a seguridade social: a implantação do sistema previdenciário alemão por Otto von Bismark entre 1878 e 1889 consolidado no código de seguros sociais de 1911; a legislação fabril e o sistema de seguro nacional progressivo adotados em 1864 e 1905 a 1911, respectivamente.19 É importante destacar que estes primeiros avanços eram

limitados a algumas partes da população. No primeiro caso, na Alemanha, os trabalhadores eram os beneficiários enquanto no segundo, na Inglaterra, a proteção se estendeu “a escolares, mulheres exploradas, mineiros, idosos e desempregados” (SINGER, 2003, p.237). O autor elucida que este modelo inglês se destaca não só pela amplitude, mas também por inserir a questão do gasto público.

A Primeira Guerra Mundial deu um grande impulso à luta pelos direitos sociais dos trabalhadores. A instauração do regime socialista na Rússia em 1917 despertou esperanças em trabalhadores e temores em empregadores por todo o mundo fazendo que antigas promessas feitas aos trabalhadores se concretizassem. A criação da Organização Internacional do Trabalho - OIT viabilizou a generalização de direitos sociais mediante a adoção de convenções. O documento que constitui a OIT destaca a justiça social como uma das bases de estabelecimento da paz e reconhece que condições de trabalho inadequadas podem impor a injustiça, o sofrimento e a privação 20. Mais uma vez o trabalho se coloca como um tema crucial na definição da função social do estado.

Faria (2000) destaca que o “Estado de bem-estar, embora tenha raízes profundas no passado e seja tributário de transformações capitalistas que ocorreram ao longo do século XIX, ganha densidade institucional e importância funcional, sobretudo a partir da crise de 1929” (p.33) quando o estado capitalista regulador e intervencionista se consolida como uma alternativa ao liberalismo. A queda da bolsa de Nova Iorque teve efeitos inflacionários, afundando a economia norte-americana em depressão

19 Para outros exemplos ver PEREIRA (2002) e SINGER (2003).

20 Desde sua criação a OIT aprovou 187 convenções. Ao longo dos anos os temas e sua abrangência, apesar de sempre relacionados a questão do trabalho de alguma forma, se diversificaram. Como este é um processo muito dinâmico recomendamos ao leitor verificar a situação mais atual no site da própria organização (http://www.ilo.org/ilolex/spanish/convdisp1.htm).

econômica avassaladora, marcada, dentre outros aspectos, por elevado índice de desemprego. A crise se irradiou ao mundo a partir dos Estados Unidos. A política do New Deal adotada por Roosevelt21 reconhece que a intervenção estatal se coloca como necessária frente à incapacidade da “mão-invisível” de restabelecer o equilíbrio do mercado naquele momento de crise. Merece destaque o reconhecimento da responsabilidade estatal de combater o desemprego. A intervenção do estado com o intuito de restabelecer o nível de emprego se deu sob a doutrina keynesiana que estimulou a criação de diversas medidas de natureza macroeconômica22 que tiveram impacto na esfera econômica e social. É importante

ressaltar que este projeto social estava marcado pela busca da socialização do consumo, vinculando-se a uma percepção material da justiça, a justiça redistributiva. Foi nos anos 1940 que o estabelecimento da proteção social como um direito do cidadão e um dever do Estado teve sua afirmação explícita. Os programas de seguridade social elaborados pelo comitê interministerial britânico, presidido por William Beveridge, em 1941 e 1942 consistem em um novo marco na definição da função social do estado. Reconhecendo o pleno emprego como objetivo do estado e considerando que a população não deveria sofrer de indigência nem dos “cinco gênios malignos da história: a enfermidade, a ignorância, a decadência e a habitação miserável” (SINGER, 2003, p.247) o Plano Beveridge amplia o sistema proposto por Bismarck introduzindo três conceitos: (a) universalidade: a cobertura social se estenderia a todo o conjunto da população e não apenas aos operários; (b) unicidade: um só serviço administraria o conjunto; (c) uniformidade: os auxílios independeriam do nível de renda. Estes conceitos trazem consigo o rompimento com a tradição liberal de atender somente a determinadas categorias trabalhistas ou de focar a assistência nos “necessitados”.

21 Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos eleito em 1932.

22 São exemplos das medidas macroeconômicas tipicas da doutrina keynesiana: regulação do mercado; formação e controle de preços; imposição de condições contratuais; emissão de moeda; distribuição de renda; combate à pobreza; investimento público (PEREIRA, 2002, p.32). Pra entender a doutrina keynesiana ver a obra de Keynes entitulada Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, publicada em 1936.

Outro importante ponto a se destacar neste plano é seu aspecto redistributivo, propunha que o custo do estado do bem-estar fosse financiado pelos contribuintes e não só por pagamento dos interessados. São estas características que o caracterizam como a inspiração do moderno estado de bem-estar adotado em diversos países.

“O estado capitalista, até por questão de sobrevivência, renunciou à sua posição eqüidistante de árbitro social para tornar-se francamente um interventor. E, nesse papel, ele passou não só a regular com mais veemência a economia e a sociedade, mas também a empreender ações sociais, prover benefícios e serviços e exercer atividades empresariais” (PEREIRA, 2002, p.30).

É assim que os direitos sociais se tornam verdadeiramente parte dos direitos humanos.23 Na mesma década, mais especificamente em 1948, a Organização das Nações Unidas – ONU elabora a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Muda o paradigma político e jurídico, alterando o padrão convencional de regulação social e as funções do estado de direito. Segundo Matos, “a Declaração de 1948 remetia a titularidade e a promoção dos direitos ao Estado” (2006, p.11), atuando no sentido indicado pelo Plano Beveridge.

Vilani (2002) destaca que os direitos sociais são “fruto da luta dos despossuídos pela ‘igualdade de fato’” (p.57). Seu fundamento é o direito de todos ao bem-estar social. Compreende desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico ao direito de participar por completo da herança social (ex.: sistema educacional e serviços sociais). A perspectiva geracional dos direitos classifica direitos sociais como a “segunda geração” de direitos, historicamente significou o acesso à educação, à saúde, à previdência social e às garantias trabalhistas.

Apesar da cidadania, mesmo em suas formas iniciais, se constituir num princípio de igualdade é na segunda geração, segundo Marshall, que se destacou a questão da desigualdade. Foram os direitos sociais que mudaram significativamente o princípio igualitário. “O objetivo dos direitos sociais constitui ainda a redução das diferenças de classe, mas adquiriu um novo sentido. Não é mais a mera tentativa de eliminar o

23 Singer também destaca a Declaração da Filadélfia adotada pela OIT em sua conferência de 1944 como uma importante manifestação internacional que eleva os direitos sociais a ao nível dos demais direitos humanos.

ônus evidente que representa a pobreza nos níveis mais baixos da sociedade. Assumiu um aspecto de ação modificando o padrão total da desigualdade social” (MARSHALL, 1967, p.88).

O Estado passa a atuar como prestador de serviços para a sociedade, com o intuito de promover seu bem-estar. Simon considera que o “Estado–Providência é a expressão última da laicização do Estado, na medida em que busca compensar as desigualdades da natureza e os infortúnios da sorte (‘o Estado-Providência exprime a idéia de substituir a incerteza da providência religiosa pela certeza da providência estatal’)” (2005, p.199). Em resumo, o Estado Social - de Bem-Estar ou da Providência – tem como função amenizar as diferenças econômicas e sociais exacerbadas pelo Estado Liberal. Propõe-se a fazê-lo através de políticas distributivas e do reconhecimento de uma nova categoria de direitos, os direitos sociais.

Este estado de providência é alvo de elogios e criticas. Pereira (2002) alerta que esta nova realidade impõe uma difícil convivência entre direitos individuais e direitos sociais. Acreditamos que a intenção de Simon (2005) ao citar Pierre Rosanvallon coaduna com o alerta de Pereira, os autores apontam para o problema da solidariedade no Estado Social, o risco de uma solidariedade fundada exclusivamente na ação do “Estado como responsável pela distribuição de renda, bens e serviços, sem a participação da coletividade” (p.204).