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2.2 ESTADO MODERNO, POLÍTICAS SOCIAIS E DIREITOS DE CIDADANIA

2.2.3 A CRISE DO ESTADO SOCIAL

Na década de 70, as bases estruturais do Estado Social clássico encontravam-se profundamente alteradas (FARIA, 2000; GOMÀ, 2004). Faria destaca: o envelhecimento da população; a mudança na organização produtiva que altera o mercado de trabalho e a estrutura de classes diminuindo o peso da classe trabalhadora industrial; a família nuclear, sob a responsabilidade de um chefe- homem trabalhador, perde “gravitação” com a intensificação a participação da mulher nas diversas esferas fora do lar; a democracia se consolidou nos países desenvolvidos; e a competição aumentou. Dentre elas, duas também são evidenciadas por Gomà (2004) que foca sua contextualização na fragmentação da

sociedade, caracterizando como tridimensional: 1) diversificação étnico-cultural; 2) alteração da pirâmide de idades; 3) pluralidade das formas de convivência familiar. Estas mudanças impactam sobre o Estado, especialmente na percepção de sua função social, e sobre a concepção de cidadania.

A mudança na função social do Estado é deflagrada pela crise do modelo econômico do pós-guerra, ocorrida em 1973. Ela levou o mundo a uma “longa e profunda recessão, combinando pela primeira vez, baixas taxas de crescimento como altas taxas de inflação” (ANDERSON, 1995, p.10) e abriu espaço para que as idéias neoliberais ganhassem terreno.

O neoliberalismo nasceu logo após a Segunda Guerra Mundial como uma reação teórica e política contra o Estado intervencionista do bem-estar.24 Anderson (1995)

afirma que durante mais ou menos 20 anos a doutrina neoliberal permaneceu na teoria. Neste momento de turbulência, suas idéias chamaram atenção para o aspecto multidimensional da crise do Estado de Bem-Estar e propuseram um novo receituário no qual a estabilidade monetária era considerada a principal meta de um governo. Para alcançá-la o neoliberalismo preconizava disciplina orçamentária, redução de gastos, ou seja, a redução do Estado e, conseqüentemente, de suas responsabilidades sociais. Questionava-se o Estado Social, empreendedor e intervencionista, colocando em dúvida a eficiência e eficácia de gestão a partir de uma ótica fiscal (baseada no gasto estatal) e macroeconômica. O gasto social passou a ser considerado como uma das principais causas do déficit público, gerando impactos nefastos sobre a economia (especialmente sobre as taxas de juros e inflação); a proteção social prejudicava o desenvolvimento econômico ao onerar as classes mais elevadas em favor das classes populares, gerando efeitos perversos sobre a poupança e, conseqüentemente, sobre o investimento; a regulação estatal desestimulava o investimento privado.

O primeiro país a adotar o receituário neoliberal foi a Inglaterra, com a eleição do governo Thatcher. Com a mudança de governo em outros países da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o neoliberalismo foi

ganhando novos adeptos - Estados Unidos (1980), Alemanha (1982), Dinamarca (1983), seguidos por quase todos os países do norte da Europa Ocidental (exceto Suécia e Áustria). “No início, somente governos explicitamente de direita radical se atreveram a por em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda podiam rivalizar com eles em zelo neoliberal “(ANDERSON, 1995. p.14). Adotado pelas agências multinacionais, o receituário neoliberal foi muitas vezes imposto aos países menos desenvolvidos como condição de acesso a financiamentos. Foi assim que o neoliberalismo alcançou a hegemonia como ideologia na década de 1980.

A nova e profunda recessão que atingiu o mundo em 1991 evidenciou os limites do neoliberalismo. Tendo como prioridade imediata conter a inflação, o neoliberalismo obteve êxito inegável neste propósito, no entanto, observou-se que, além do desemprego e da desigualdade terem aumentado, os investimentos continuaram aquém do necessário. Outro fator que merece destaque foi a manutenção do peso da estrutura de proteção social a despeito das inúmeras tentativas de reduzir os gastos sociais, o que se atribuiu aos custos do desemprego e do sistema previdenciário (aumento demográfico dos aposentados na população). Ou seja, o receituário neoliberal não foi capaz de reverter as “mazelas” atribuídas ao Estado Social, além disso, mostrou-se muito mais perverso no que se refere á dinâmica social ao aprofundar as desigualdades e a pobreza.

Neste momento de busca por uma nova definição da função social do estado a cidadania se amplia e “muda de mãos”. Vilani (2002, p.59) destaca que esta ampliação da cidadania acrescentou, àquelas apresentadas por Marshall, a “terceira geração”. Ela refere-se aos direitos metaindividuais ou difusos - direitos dos indivíduos enquanto seres humanos, direitos que consolidam a solidariedade. Incluem três conjuntos de demandas: o primeiro corresponde a direitos reivindicados por agentes coletivos que pedem por uma vida digna e saudável (são exemplos: direitos pela paz, pela preservação da natureza, por um mundo solidário); o segundo refere-se a necessidades de categorias sociais específicas (das crianças e idosos, por exemplo); o terceiro e último contempla as minorias e sua liberdade de culturais ou estilos de vida diferenciados (grupos étnicos, grupos religiosos, homossexuais). Esses novos elementos da cidadania refletem fenômenos típicos da modernidade tardia, a pluralidade das identidades sociais ou o multiculturalismo. “O

multiculturalismo adquire significação política e importância para a cidadania na medida em que os indivíduos que compartilham a mesma identidade sociocultural interagem para expressar na esfera pública suas opções, necessidades e demandas” (VILANI, 2002, p.59).25 É neste contexto que a Declaração de Direitos

Humanos de Viena (1993) remete a titularidade e a promoção dos direitos aos indivíduos e não mais ao estado.

Ao referir-se à crise do Estado Social, Faria (2000) acredita que “as transformações ou o espaço transformações decorrente dessa crise, irão variar, dependendo do padrão prevalecente de Estado de bem-estar” (p.36) e nós acreditamos que sua afirmação deva levar em conta o Estado Social antes e depois do neoliberalismo. A despeito de seus resultados limitados26, o neoliberalismo nos alertou quanto à

necessidade de reformulação do pacto social (SIMON, 2005, p.200) e introduziu a parceira do Estado, do mercado e da sociedade no campo da proteção social, inaugurando um esquema plural ou misto de bem-estar social. Se a crise do Estado Social implica também, como afirma Simon (2005) ao citar Pierre Rosanvallon, em uma crise da solidariedade e o indivíduo é o titular e promotor dos direitos, a questão que se coloca é: qual Estado resgatará a solidariedade e promoverá a efetiva incorporação dos direitos?

Quanto ao primeiro aspecto do nosso desafio, a solidariedade, podemos dizer que ela é o elemento perdido no Estado do Bem-Estar. A transferência das relações de troca para o mercado e o deslocamento da oferta de bens públicos para o Estado inibiram a formação de vínculos de solidariedade no tecido social. Esta ética da solidariedade aprofundaria os vínculos sociais e ampliaria a noção de responsabilidade. Este novo princípio de responsabilidade nos coloca como responsáveis também pelo outro, seja ele um indivíduo, um grupo ou a natureza

25 Os mais novos direitos de cidadania, os direitos de “quarta geração”, abrangem à vida e dimensão planetária e contemplam o direito ao patrimônio genético e as conseqüências da biotecnologia para a integridade do ser humano. É a mais polêmica das gerações de direitos não sendo reconhecida por algumas vertentes.

26 Os resultados positivos das reformas neoliberais concentram-se principalmente no controle inflacionário.

(meio-ambiente). Ao estimular a valorização dos vínculos sociais de solidariedade busca a autonomia da sociedade e não do indivíduo.

Quanto à incorporação de direitos, segundo aspecto de nosso desafio, podemos dizer que os direitos humanos representam os novos elementos peculiares às sociedades atuais, pluralistas e altamente complexas, que ainda não haviam sido enfrentados pelo Estado Social. Hoje reconhecidos e protegidos por tratados e convenções internacionais, globais e regionais e por legislações nacionais, os direitos humanos são marcados pela sua indivisibilidade. A 2ª Conferência Mundial de Direitos Humanos (Conferência de Viena) reconhece todos os direitos humanos como universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. Esta nova interpretação dos direitos substitui a visão geracional, considerada fragmentadora e atomista, pois ela não mais responde adequadamente à realidade acima exposta, e remete a reavaliação da ação social do Estado sob a ótica da unicidade.

Neste momento de construção, não sabemos qual Estado lidará como estes dois desafios ou será considerado a melhor opção na construção da sua nova função social. O Estado Democrático de Direito é colocado por alguns autores (SIMON, VILANI, SINGER) como uma das formas possíveis. Este Estado pressupõe não só o reconhecimento dos direitos dos cidadãos em sua completude (todas as gerações primeira, segunda e terceira geração)27 bem como a garantia do direito de participação popular, de manifestação e de controle social. Vilani (2002) destaca como virtudes deste Estado a articulação de três princípios: o da dimensão diferenciada para o pluralismo e o valor das diferenças; o do igualitarismo visto num novo patamar, o da busca de otimização da igualdade de oportunidades; e, o do estabelecimento de novas chances para a prática das virtudes cívicas, através da ampliação do espaço público. Estes pressupostos revelam que o Estado Democrático de Direito implica em um conceito de democracia “que não esteja mais não vinculada [unicamente] à idéia de participação política” (SIMON, 2005, p.203). No que tange à função social do estado como promotor de justiça social, as expectativas depositadas no Estado Democrático de Direito foram traduzidas por

27 O Estado democrático de direito é considerado por Vilani como imprescindível à garantia dos direitos de “terceira geração”.

Vilani (2002, p.59) nos seguintes aspectos: reconhecimento do direito de todos a um contexto cultural que permita aos cidadãos definir os modos de conduzir a vida em mútuo respeito; a ressalva de que a efetividade da igualdade social nas sociedades pluralistas de hoje implica na eventual necessidade de ‘ações compensatórias’28; a

ênfase no fato da realização da igualdade social requerer do Estado uma ação diferenciada para proporcionar garantias àqueles que carecem de condições mínimas necessárias para o pleno exercício da cidadania; e, por fim, a ampliação do espaço público mediante a criação de mecanismos de participação e controle social. Neste momento de construção não temos como saber se estas expectativas se concretizarão.