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4 CONFIGURAÇÃO DO NÍVEL MACRO: PROCESSOS,

4.3 O Processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira

4.3.1 Construção histórica

O questionamento às políticas de saúde e a movimentação em torno de reformas na atenção em Saúde Mental no Brasil teve início quando profissionais da área, em sua maioria, ativistas de outros movimentos pela redemocratização do país, que

vivenciava naquele momento uma série de manifestações de oposição ao Regime Militar - época das grandes greves do ABC paulista, do movimento pela anistia e de disputas da sociedade brasileira contra o poder autoritário do Estado, se reuniram para discutir e atuar em torno de denúncias contra o tratamento desumano existente nos hospitais psiquiátricos (AMARANTE, 1998; LOBOSQUE, 2001; GUERRA, 2005). Segundo GUERRA (2005), “a política de Saúde Mental adotada pelo Regime Militar expandiu consideravelmente o número de hospitais psiquiátricos que passaram de 341 no início da década de 70 para 430 no início da década de 80, sem que isso significasse uma melhoria da atenção oferecida”.

De acordo com Pereira (2003, p.79), uma das primeiras críticas a este modelo acontece em 1977 com a publicação de um manifesto de usuários na forma de uma carta ao Jornal do Brasil, cujo conteúdo era semelhante à causa dos presos políticos.

No ano seguinte acontece a “Crise da DINSAM” (Divisão Nacional de Saúde Mental),

na qual profissionais dos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro criticam as precárias condições de trabalho e de assistência, inclusive com mortes de usuários e grande repercussão pública nacional (GUERRA, 2005).

A Declaração de Alma-Ata, resultante da Conferência Internacional sobre Atenção Primária à Saúde, de 1978, reforça o ideário de atenção primária à saúde (promoção e prevenção aliadas ao tratamento) e, também, estabelece a saúde em um conceito mais amplo do que meramente a ausência de doenças - ratifica o ideal de hierarquização de ações, as noções atuais de território e de controle social (LANCMAN, 2008).

Nessa mesma direção e inseridos no contexto de lutas pela redemocratização do Brasil, nasce o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) com o objetivo de propor alternativas à assistência psiquiátrica até então oferecida (AMARANTE, 1998; GUERRA, 2005; LANCMAN, 2008). Este movimento organiza diversos encontros aglutinando coletivos, como: trabalhadores da saúde, associações de classe, entidades e setores mais amplos da sociedade (GUERRA,

2005).

Ao condenar a violação dos direitos humanos praticada contra pessoas que sofrem de transtornos mentais, esse movimento cunha o lema: "Por uma sociedade sem

manicômios", no II Congresso do MTSM, conhecido como o "Congresso de Bauru",

em 1987 - considerado o marco de fundação do Movimento da Luta Antimanicomial e instituído o dia 18 de maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. É também lançado o “Manifesto de Bauru”, tido como o documento de fundação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (AMARANTE, 1998; LOBOSQUE, 2001; GUERRA, 2005; LANCMAN, 2008). Nesse congresso, com a ampliação de seus princípios e com a participação de outros segmentos sociais, em especial usuários e seus familiares reunidos em associações, há a transformação do Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM) para o Movimento da Luta Antimanicomial (MLA).

O MTSM havia se aglutinado a partir de críticas ao tratamento desumano existente nos hospitais psiquiátricos, compondo-se de um leque variado de posições acerca da reforma psiquiátrica a ser implementada (GUERRA, 2005; LANCMAN, 2008). Este movimento, dentro do movimento mais geral da reforma sanitária preconizava a universalização do acesso, a integralidade da assistência e a equidade.

No entanto, o manifesto de Bauru anunciou uma propositura diferente: a superação

do modelo psiquiátrico-asilar. Esta nova proposta repercute internamente no MTSM

e cria tensão, como revelado por Silva (2003):

Dizia-se, então, que a radicalidade da proposição era „tecnicamente‟ inviável: era„tecnicamente‟ impossível tratar de pacientes agudizados sem o recurso à internação. Até mesmo para alguns membros daquele histórico Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, do qual o movimento antimanicomial representou uma retomada, mas principalmente, uma importante superação – assustados com a radicalidade da proposição da „sociedade sem manicômios‟ – essa proposta parecia como algo folclórico, de poucaconsistência, e até irresponsável. (SILVA, 2003, p. 95)

Dentro do próprio MTSM havia aqueles que defendiam e ainda há hoje outros que defendem a existência de um hospital psiquiátrico que cumpra eficientemente as suas funções e que possua equipamentos técnicos e administrativos suficientes e

necessários para o desenvolvimento de suas ações.

Outra diferença do novo movimento está na proposta de composição que buscava ampliar as suas bases reunindo amplos setores da sociedade (GUERRA, 2005). Apesar do “Manifesto de Bauru” apontar para a construção de laço social dos profissionais com a sociedade para o enfrentamento da questão constituída pela presença dos manicômios na sociedade brasileira, o mesmo não traz nenhuma alusão a uma tarefa política, relacionada com a organização dos próprios atingidos e vitimados.

Assim, na origem do MLA, há uma forte presença dos profissionais em um período de poucas organizações civis. É nesse mesmo período que a influência de Franco Basaglia, efetiva-se. Segundo Lancman (2008, p.45), após uma série de mortes em uma clínica psiquiátrica particular conveniada ao extinto Inamps, a prefeitura de Santos decide intervir e desapropriar o estabelecimento. No lugar do hospital são implantados novos equipamentos, como os Núcleos de Atenção Psicossocial – NAPS, abertos 24 horas por dia, 7 dias por semana. Estrutura-se, assim, um trabalho semelhante ao do psiquiatra italiano com uma nova maneira de lidar com pessoas institucionalizadas a longo tempo e em sofrimento psíquico grave. Foram criados, nesse local, oficinas de trabalho para geração de renda de ex-internos, cooperativas de trabalho e diversos projetos culturais de inserção social. Veio à tona a perspectiva de ressocialização.

A década da redemocratização brasileira trouxe, ainda, a instauração do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), para o campo das práticas de saúde mental. O primeiro deles, o CAPS Luiz Cerqueira – também conhecido como CAPS Itapeva – inaugurado em 1987 na cidade de São Paulo, tem forte inspiração no modelo francês de comunidade terapêutica, que fez da sua prática ousada e inovadora, um elemento de atração e agregamento de grande parte dos militantes da reforma. Os CAPS e os NAPS condensavam os princípios de inclusão social, autonomia e cidadania (AMARANTE, 1998; LANCMAN, 2008).

Nesse período inicial do movimento, as experiências bem sucedidas do CAPS Luiz Cerqueira em São Paulo e da intervenção no Hospital Anchieta, em Santos, além

das subseqüentes ações que ali aconteceram – como a implantação dos NAPS, as oficinas de trabalho, a rádio Tam Tam – incitaram os participantes do Movimento da Luta Antimanicomial e, revelaram, mesmo ainda incipiente, algumas experiências nacionais de viabilidade do projeto, até então tido como uma mera utopia (AMARANTE, 1998; GUERRA, 2005; LANCMAN, 2008).

Segundo (BRASIL, 1987), o relatório da I Conferência Nacional de Saúde Mental aponta estratégias para a desospitalização, bem como a redução progressiva de leitos e a garantia de tratamento que respeite os direitos das pessoas com transtornos mentais, em consonância com os princípios de cidadania e inclusão social. De acordo com Lancman (2008, p.45), nesse relatório há uma reversão da tendência “hospitalocêntrica e psiquiatrocêntrica” para uma priorização do sistema

extra-hospitalar e multiprofissional como referência assistencial ao paciente.

A partir da I Conferência, o setor público não mais credenciará nem instalará novos leitos psiquiátricos em unidades psiquiátricas tradicionais, reduzindo progressivamente os existentes e substituindo-os por leitos psiquiátricos em hospitais gerais públicos ou por serviços inovadores alternativos à internação psiquiátrica (LANCMAN, 2008). Proíbe-se, a partir deste momento, a construção de novos hospitais psiquiátricos tradicionais.

Em 1990, por influência do MLA, é apresentado o Projeto de Lei 3.657, de autoria do Deputado Paulo Delgado (PT-MG). Nesse contexto, iniciam-se as lutas do movimento da reforma psiquiátrica nos campos legislativo e normativo. Este projeto previa a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais, a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por recursos assistenciais extra- hospitalares, além de regulamentar a internação compulsória. Segundo o próprio deputado, esta lei propunha uma radical transformação do modelo de atenção, em um momento em que “não havia nas Nações Unidas e sua Organização Mundial de Saúde uma compreensão e um consenso sobre o novo tratamento, nem mesmo sobre os direitos dos usuários”. Ressalta-se que, nesse período, a proposta do Ministério da Saúde expressa no Documento “Orientações para o funcionamento e supervisão dos serviços de saúde mental”, determinava uma convivência de

2008). Esse projeto de lei não foi integralmente aprovado.

Segundo Guerra (2005), a proposição do Projeto de Lei 3.657 insufla fortes reações dos prestadores de serviços hospitalares organizados na Federação Brasileira de Hospitais (FBH) que se articulam para formar „lobbies‟ no Congresso Nacional e

influenciar deputados e senadores. Além desta reação, em 1990, é fundada a Associação de Familiares e Amigos dos Doentes Mentais (AFDM), com uma postura de franca defesa da assistência oferecida pelos manicômios. De acordo com Amarante (1995), esta associação surgiu apoiada pela FBH para fazer oposição ao projeto de lei antimanicomial.

De acordo com Amarante (1998), as diretrizes da Reforma Psiquiátrica Brasileira – desinstitucionalização, desospitalização e garantia dos direitos dos doentes mentais já haviam sido estabelecidas em 1987, na I Conferência Nacional de Saúde Mental e na Conferência de Caracas, de 1990, e referendadas na II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em dezembro de 1992.

A Declaração de Caracas retoma a Conferência de Alma-Ata, ao ressaltar que a assistência psiquiátrica deva ser oferecida nos sistemas locais de saúde (LANCMAN, 2008).

O ano de 1992 se mostrou de suma importância para o movimento. Marco importante para a instauração do novo modelo de atenção pública em saúde mental em nosso país, a Portaria Federal n. 224, de 29 de janeiro de 1992, indicou que as equipes técnicas de atenção à saúde mental que atuassem em unidades básicas e centros de saúde deveriam ser definidas de acordo com critérios do gestor local – essas equipes poderiam ser compostas tanto por profissionais especializados (psiquiatra, psicólogos e assistentes sociais) como por outros profissionais (médicos generalistas, enfermeiros, auxiliares, agentes de saúde). Segundo Lancman (2008), o cuidado em saúde mental em primeira linha deveria ser realizado por profissionais não especialistas e os NAPS e os CAPS poderiam também constituir-se como porta de entrada da rede de serviços.

mobilizações de energia e investimento jamais realizadas sobre uma temática de cunho sanitário” (VENTURINI, 1995, p.13), sendo realizadas 159 conferências municipais ou regionais e 24 conferências estaduais, envolvendo, em todo o processo, mais de vinte mil pessoas (GUERRA, 2005). Essa conferência ratifica as diretrizes gerais para a reorganização da atenção em saúde mental no Brasil no plano assistencial e jurídico-institucional (LANCMAN, 2008) e reforça as definições da I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), posicionando-se contrariamente a diversas técnicas tradicionais da psiquiatria.

Após diversas modificações e de longos 11 anos de tramitação, a lei sancionada pelo Congresso Nacional em 6 de abril de 2001 é um substitutivo do projeto original. Segundo Lancman (2008, p. 56), a promulgação da Lei Federal n. 10.216/01, juntamente com as resoluções elaboradas na III Conferência Nacional de Saúde Mental, reitera as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) no que tange à implantação de políticas de saúde mental baseadas nos serviços de atenção comunitária, pública e de base territorial, promovendo atenção integral, acesso universal e gratuito, equidade, participação e controle social. Após a criação do (SUS), é o primeiro grande marco da reforma psiquiátrica brasileira pelo fato de redirecionar a assistência em saúde mental, por garantir o direito do portador de transtorno mental a assistência em ambiente terapêutico, por meios menos invasivos possíveis e por privilegiar o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária.

A lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e determina em seu artigo 4°, que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”,

embora não institua mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios (LANCMAN, 2008).

A Portaria 336 de fevereiro de 2002, que cria a figura orçamentária e organizacional do CAPS, foi um marco de grande importância para a substituição do modelo hospitalocêntrico e para a instauração de um novo modelo de atenção à saúde Mental conhecido como modelo em rede.

Ao priorizar a atenção aos portadores de transtornos mentais graves e persistentes e se ancorar na noção de território (BRASIL, 2002), há a proposição de se utilizar uma ampla rede de recursos afetivos (relações pessoais), sociais (moradia, trabalho, educação), econômicos, culturais, religiosos, associativos e de lazer.