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2 DA INTERVENÇÃO À PESQUISA: REVISITAÇÃO A

2.3 O papel da norma e sua insuficiência: a necessária

A normatização está associada ao caminho geral em direção à burocratização cada vez maior de diversas atividades sociais e tem se mostrado útil, embora tenha também sido criticada pelo fato do paradigma burocrático não captar sempre a evolução e as condições imprevisíveis a nível organizacional. Tenta-se controlar por meio das normas os procedimentos comuns, a própria emoção - que é racionalizada - numa perspectiva de se aprisionar sujeitos a procedimentos prescritos. Também é fato a distância entre a burocratização e a realidade de trabalho. O papel central desempenhado pela racionalidade técnica neste irresistível e, por vezes, arriscado

caminho sempre combina método científico e procedimentos. Portanto, este caminho adotado de normatizações nos obriga a ficar alerta e vigilante em busca de constante re-engajamento no sentido das regras e regulamentos.

Regras e procedimentos são fundamentais para o funcionamento de uma organização moderna, necessários para a gestão da segurança, numa tentativa de rastrear, controlar e antecipar as atividades sociais. A normatização captura duas faces que estão totalmente incorporadas: de um lado o controle e de outro, a explicitação. Não é novidade que procedimentos escritos não somente indicam como as tarefas devem ser feitas, mas também funcionam como mecanismos restritivos e controladores dos trabalhadores em relação aquilo que deve ser feito e como está sendo feito. Permitem, também, a expressão formal das práticas de trabalho para materializar, divulgar e abrir discussão no "chão de fábrica" entre os níveis da organização, parceiros externos e reguladores, por exemplo.

Segundo Bourrier (2013), sociólogos e ergonomistas há muito tempo têm demonstrado que os procedimentos e as regras geram restrições, porém, também revelam a sua necessidade como elemento de segurança, controle frente às práticas inseguras, as regras insuficientes e o gerenciamento inconsistente. Para a autora, a norma pode trazer conforto às pessoas e reduzir a ansiedade em relação ao novo e incerto.

Na maioria das vezes torna-se necessário ir além das regras para atingir os objetivos, e a norma pode servir também como uma diretriz reconfortante quando o curso de ação não é vivenciado anteriormente ou naquele momento parece controverso. A normatização legitima a racionalidade técnica (GOESTCH, 2007). Historicamente, a normatização tem também sido utilizada como instrumento de culpabilização em razão das falhas identificadas através de investigações e análises de acidentes. De certa forma isso fazia sentido em um mundo onde as crenças sobre segurança eram (e ainda são em muitos lugares), baseadas em um modelo que pressupõe que segurança resulta da confiabilidade do equipamento, procedimentos e processos estáveis, operadores comportados e organizações planejadas (GOETSCH, 2007; BOURRIER, 2013). O mecanicismo colocado em

prática e o meio controlado.

Mas, e as infidelidades do meio? E as variabilidades inerentes a toda atividade de trabalho? E o sujeito trabalhador? Como controlá-lo?

Segundo Amalberti (1996), o operador humano possui uma verdadeira arte para regular esse compromisso de modo dinâmico, em função das exigências da situação e de uma visão reflexiva de suas próprias capacidades no momento. De acordo com este mesmo autor, os mecanismos cognitivos e as micro-regulações permitem ao operador estabelecer um compromisso cognitivo e prático, quase sempre eficaz, entre três objetivos mais ou menos contraditórios conforme as circunstâncias: 1) a segurança (sua própria segurança e a do sistema); 2) o desempenho (imposto pela organização, mas também desejado pela equipe e pelo operador individualmente); 3) e a minoração das conseqüências fisiológicas e mentais deste desempenho (fadiga, estresse, esgotamento). Como citado:

O que é considerado extraordinário, nesta perspectiva, não são os acidentes e situações que fogem ao controle, mas sim que isto não ocorra mais freqüentemente, graças aos compromissos e micro-regulações que estão presentes em qualquer atividade. (AMALBERTI, 1996).

Do ponto de vista situado, a norma tem se mostrado insuficiente para dar conta das imprevisibilidades e variabilidades existentes na atividade de trabalho da enfermagem do hospital psiquiátrico analisado. Há uma invisibilidade em relação aquilo que é feito e como é feito, desconhecida pelos gestores do sistema e que são essenciais para a construção da segurança local (tanto dos trabalhadores quanto dos pacientes atendidos). Torna-se necessário fazer emergir as competências individuais e coletivas construídas e valoradas no contexto, por meio de métodos que façam aflorar estas micro-regulações e, que possam ser captadas, numa perspectiva de se fazer evoluir as normas e produzir segurança.

Para a avaliação e o gerenciamento de riscos inerentes ao local de estudo, principalmente a auto e hetero-agressão na assistência ao paciente psiquiátrico, central para uma clínica satisfatória e para a gestão da própria segurança (MENDES et al., 2008; ANDERSON et al., 2010; FRANZ et al., 2010; ATAN, 2013), é necessário que riscos como o suicídio, fuga e a agressão sejam regularmente

avaliados e documentados (MENDES et al., 2008; ATAN, 2013).

De acordo com a literatura, o papel desta avaliação está ligado à questão da predição de eventos adversos, particularmente os pontos fortes e fracos das medidas estatísticas e as abordagens clínicas adotadas (LAU et al., 2006; FARRELL et al., 2006; ANDERSON et al., 2010; FRANZ et al., 2010). Desta forma, a prevenção é um importante aspecto do trabalho clínico e do gerenciamento de riscos. Os métodos de avaliação de riscos têm um importante papel na prática, como instrumento particular de avaliação de risco. Como citado por Areosa. (2012, p. 56): "conduzirá inevitavelmente a alguma forma de intervenção para reduzir, conter, ou de outra forma amenizar o risco, alterando assim o resultado".

Há diversos instrumentos e/ou ferramentas utilizados para se avaliar os riscos, e estes variam de instrumentos preditivos estatísticos, para aqueles que servem mais como "check-list" - uma lista de verificação para garantir que as áreas essenciais sejam recordadas e avaliadas (DOLAN, 2000). A formação exigida, o tempo de administração, os resultados e os custos dos instrumentos padronizados parecem ter favorecido o maior uso de instrumentos menos validados na prática clínica, porém, com mais aderência com a especificidade da situação local em análise. Enquanto a maioria das pesquisas tem centrado a análise na validade e confiabilidade do uso de instrumentos padronizados, muito pouca pesquisa tem explorado, do ponto de vista da atividade dos trabalhadores, as estratégias singulares e coletivas situadas, emergidas a partir das competências construídas, valoradas e necessárias para o controle de risco em um ambiente tão dinâmico, imprevisível e variável como aquele presente na assistência ao paciente psiquiátrico. Será que a avaliação de risco feita sob a perspectiva prescritiva/normativa é suficiente para antecipar as condições de risco e, desta forma, estabelecer métodos de controle? Há condições de darmos conta de todas as variabilidades sob esta abordagem? E o papel dos trabalhadores nesta análise?

Para Schwartz (2000), a ciência tradicionalmente busca a generalização e, assim, acaba neutralizando as singularidades ligadas à atividade. Para este autor, os saberes gerados na atividade são potencialmente uma fonte para a compreensão

das situações de trabalho. Ao serem considerados, os conceitos científicos são colocados à prova. Por meio da análise situada do risco, a confrontação de saberes se torna uma exigência para compreender e transformar as situações de trabalho.

3 PERCURSO TEÓRICO E METODOLÓGICO