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3.2 Jogos temporários: a estrutura em jogo

3.2.3 Construindo e encenando os jogos

Decidi propor a redução do grupo de trabalho de treze para nove intérpretes, obtendo uma formação coletiva mais concisa, mesmo que ainda numerosa, instável, e sem unidade definida, mas que propiciaria comunicação e entendimento mais diretos e ágeis. Escolhi Alice Becker, Evandro Macedo, Joffre Santos, Leonard Henrique, Lílian Pereira, Luis Molina, Sônia Gonçalves, Paulo Fonseca e Fátima Berenguer, porque demonstraram mais afinidade e identidade com a proposta, e porque já assumiam papéis centralizadores nos jogos. Mantive, todavia, o intuito de reintegrar o grupo em sua totalidade, o que ocorreu em uma etapa posterior de finalização.

Passei a identificar e eleger as experiências que, visivelmente, insinuavam os mecanismos que constituiriam a engenharia dos jogos, suas regras, princípios de movimento, papéis e utilização do espaço, agora demarcado pelo uso de bancos que definiam o tabuleiro de jogo. Direcionei os ensaios no sentido de definir um eixo que norteasse o desempenho dos intérpretes, tendo como perspectiva a evolução da ação, partindo de um ponto zero até seu desfecho. Paulatinamente, foram excluídas as experiências que não apresentavam resolução cênica sem ferir o sentido de jogo. Afastei, assim, qualquer possibilidade de vir a elaborar composições coreográficas codificadas e sustentei o risco da proposta.

Distingui, inicialmente, os jogos de relação que ocorriam aos pares, por nós denominados como privados. Eram mais simples e com papéis claramente antagônicos. Em seguida, os que envolviam um ou poucos jogadores em papéis que antagonizavam-se com os demais em jogos coletivos e, por fim, aqueles que se constituiriam por uma superposição de papéis e ações diferenciadas, definidos como jogos mistos. Dessa forma, fui engendrando as cenas e suas transições sem perder o fio que conduziria a formulação de um roteiro para o espetáculo.

Em cada jogo, eram listados os elementos de movimento que haviam surgido das respostas espontâneas às situações. Logo após, propunha algumas possibilidades de combinações desses elementos, agrupadas de forma a delinear etapas do desenvolvimento da ação. Em geral, de uma primeira abordagem do jogo seguia-se um crescimento de tensão e dinâmica que, ora causava uma reviravolta na situação revertendo os papéis, ora culminava com um desenlace que distendia o conflito.

Para uma compreensão mais clara desses procedimentos, passo a descrever a gênese de três jogos, um privado, um coletivo e um misto, respectivamente, sem apresentá-los na ordem ou na seqüência em que apareceram, posteriormente, no espetáculo:

JOGO - "A um passo do abismo” (privado)

Motivação/perguntas sem respostas - O que me inquieta, me incomoda, me consome e me preocupa? O que parece nunca se resolver? O que não pode ser digerido, mastigado, não se dissolve na compreensão das coisas?

Sugestionados pela visível preocupação com as limitações do corpo e da vida, experimentou-se princípios de movimento que desenvolviam-se decorrentes de forças de imposição estabelecidas em relações corporais aos pares.

A partir da proposta em que um bloqueava o caminho do outro impedindo-o de seguir, delineou-se um confronto de vontades que sugeria ambigüidade: aquele que parecia cercear poderia, na verdade, estar tentando proteger o outro de dar o passo que conduzi-lo-ia ao “abismo”, entendido como o lugar da perdição, de onde não mais se volta o mesmo. Lembrando que, por vezes, obcecados pelo que não alcançamos, não vislumbramos alternativas de caminho, tornando-nos obtusos à compreensão de que insistir pode nos levar à queda irreversível. Colocava-se em questão a obsessão, o desejo cego pelo que se apresenta inacessível.

Quem - 02 jogadores. Um homem e uma mulher.

Onde - Todo o campo de jogo definido por um tabuleiro quadricular com um ponto

externo em foco.

O quê - Ela tenta alcançar e aproximar-se do ponto focalizado e ele a impede. Regra – Indefinida.

Ela experimentou diferentes formas de explicitar sua vontade, todas ressaltando a obstinação. A cada tentativa frustrada, mais intensificava-se sua força e determinação. As estratégias de resistência permearam ações de segurar, puxar, empurrar, reter, bloquear, assim como para vencer o obstáculo ela buscou contornar, passar por cima, pelos lados e até mesmo derrubá-lo. Tudo poderia ocorrer entre o vigoroso e ágil ou o denso e lento. Quando o ímpeto era aplacado pelo cansaço, era possível, então, para ele, se impor com pequenos gestos que a

detinham com autoridade, quando não, utilizava-se de sua superioridade através do uso deliberado da força. Era preciso, no entanto, equilibrar as energias, pois não tratava-se de um jogo de forças, mas sim de vontades.

Nesse sentido, busquei fazê-los compreender que a dinâmica da ação não precisava desenvolver-se linearmente. Poderiam permitir-se avançar e retroceder, usando estratégias ora incisivas, ora sutis. O mais significativo era que ela mantivesse a vontade crescente a cada tentativa, demandando uma intensificação do desejo, mesmo quando expresso pelo menor gesto.

Percebi, contudo, que a tensão diluía-se no espaço, demandando uma restrição do campo de jogo. Como tratava-se de focar um ponto externo, sugeri que o trabalho se desenvolvesse em uma área definida pelo ângulo formado por duas retas em diagonal, cuja intercessão convergia para o lado oposto ao qual se projetava o desejo, criando uma abertura ilimitada no sentido do inalcançável.

Reconhecendo as possibilidades de progressão da ação, foi possível redefinir o jogo da seguinte forma:

Quem - 02 jogadores. Um homem e uma mulher.

Onde - Área em "V" demarcada por bancos, aberta para um dos lados do campo de

jogo, no mesmo sentido para o qual se projeta o foco.

O quê - Ela tenta se aproximar do ponto para o qual projeta seu olhar, e ele a impede,

buscando mantê-la distante do alcance de sua visão.

Regra - Ela deve respeitar cada gesto dele, não forçar a passagem, ignorando ou

negando o que lhe é imposto como impedimento, assim como deve dirigir seu foco a um único ponto fixo imaginário. Ele, em correspondência, deve empreender força e energia equivalentes à força e energia por ela empreendidas na tentativa de transpor sua presença, que se impõe como obstáculo.

Progressão - A ação progride em função do desenvolvimento de avanços e

retrocessos e o uso de até cinco estratégias para vencer o obstáculo, de forma a oferecer uma curva crescente de tensão expressa pela intensificação de sua vontade e obsessão.

Desfecho - Impossibilitada e exaurida, ele finalmente consegue anular seu olhar,

explicitando sua cegueira. Cobre-lhe os olhos, desvia-a do foco, desnorteando-a no espaço.

JOGO – “Ampara” (coletivo)

Motivação/ perguntas sem respostas - Como sinto meu corpo, o que eu sou, o que eu gostaria de ser?

Esse jogo nasce da sensação de conforto sentida quando entregavam-se ao chão, aliviados do esforço da sustentação do peso do corpo, por vezes dolorido ou machucado. Isso foi suficiente para sugerir um exercício em que uns davam suporte a outros, moderando a descida de seus corpos até o chão, suavemente, amortecendo o impacto sobre o solo. Inicialmente, executado dois a dois, o experimento apontou para novas interpretações. O gesto de amparar podia ser avaliado como um esforço para suportar a queda, causada pela impotência em confrontar a vida ou suscitada pela liberdade e desfrute da entrega em confiança.

Quando propus que um se dispusesse a amparar a queda de outros dois, em movimento livre pelo espaço, surgiu a possibilidade do erro, gerando outro significado: o quão excitante pode ser expor-se ao risco da queda, quando nem sempre há mãos que se dispõem a amparar, numa metáfora dos que agem com ousadia na vida.

Estabelecia-se uma relação pautada pelo afeto. Um que estende mãos e braços em benefício do outro, seja no prazer ou na dor. O sentido do suporte que evita a queda irreparável poderia ser explorado tanto pela ousadia da vertigem, como pela extrema dependência de quem não mais consegue permanecer de pé. Assim, experimentamos uma primeira estrutura:

Quem - 03 jogadores

Onde - Todo o campo de jogo definido por um tabuleiro quadricular.

O quê - Dois se deslocam, livremente, pelo espaço, em movimento instável e

oscilatório, expondo-se à iminência da queda. O terceiro se mantém atento e pronto a ampará-los até o chão.

Regra - Indefinida.

A movimentação livre pelo espaço tendia, naturalmente, a estabelecer-se em percursos que convergiam para o jogador que oferecia sustentação. Os outros, praticamente, lançavam- se sobre ele. Se, por um lado, isso garantia a proteção, por outro, gerava uma dinâmica

repetitiva e previsível que dissimulava o risco. Dessa forma, descaracterizava-se o fator inesperado da queda.

Orientei-os para que investigassem um princípio de movimento que culminasse numa sensação de suspensão do corpo, de forma a oferecer um momento quase de inércia da ação que indicaria o seu limiar de sustentação, após o qual se sucederia a queda. Experimentaram- se três possibilidades. A primeira consistia em uma suave e sutil transferência de peso, no sentido de desestabilizar o eixo de sustentação do corpo. Aqui, o deslocamento no espaço era apenas resultante da própria recuperação da queda e não provocado por outro impulso sem razão. A outra advinha da intenção de lançar-se a uma corrida no espaço e deter a ação, subitamente, como se chegasse à beira de um precipício, provocando o desequilíbrio. E a terceira expunha o corpo a sucessivos desequilíbrios, gerando uma movimentação em que via- se o contínuo esforço de sustentar-se até que a queda se tornasse inevitável.

Percebi que essas possibilidades poderiam trazer para o jogo três dinâmicas superpostas. Ao experimentá-las, simultaneamente, tornou-se visível a dificuldade que impunha-se ao jogador designado a amparar, ao ponto de não mais ser possível para ele assumir sozinho o seu papel. Disso resultou a seguinte formulação:

Quem - 03 jogadores que caem. 01 que ampara e todos os outros que se colocam à

margem, prontos a oferecer proteção.

Onde - Todo o campo de jogo definido por um tabuleiro quadricular.

O quê - Os três jogadores se expõem ao regozijo da queda, enquanto o quarto jogador

se esforça para ampará-los. Todos os outros jogadores se mantêm atentos para garantir a proteção dos que caem.

Regra - Não forjar a queda sem assegurar um momento de suspensão e desequilíbrio.

Não aproximar-se para amparar até que evidencie-se o momento de suspensão.

Progressão - A ação inicia-se apenas com o primeiro jogador, que se deleita de olhos

fechados, sugestionado pela sensação de torpor e tontura. Sem se deslocar, apenas insinua seu desequilíbrio, não abandonando o peso de seu corpo. Esse, de forma antagônica aos outros, no decurso do jogo tende a centrar-se, estabilizando-se. Progressivamente, vão se agregando os outros dois. O segundo brinca de deslocar, sucessivamente, seu eixo corporal até não mais conseguir se sustentar. O terceiro corta o tabuleiro correndo com ímpeto e pára, subitamente, em qualquer ponto, entregando- se à queda. A dinâmica intensifica-se por repetições sucessivas de quedas em menor intervalo de tempo, demandando a participação dos jogadores periféricos.

Desfecho - O segundo jogador chega a um estado em que não mais se mantém em pé e

é detido. O terceiro jogador vai perdendo o controle de seu deslocamento no espaço e se lança vertiginosamente, ao vazio, quando não mais é possível ampará-lo e cai, e o primeiro, já centrado, expressa apenas a lembrança do desequilíbrio.

JOGO - "Tiro ao alvo" (misto)

Motivação - Perguntas sem respostas: O que eu não quero na vida, o que eu nego, abomino, recuso, não aceito e do que me afasto?

Não quero o retrocesso da mente.

Não quero mais a passividade diante de qualquer situação, ainda que o melhor a fazer seja perder a batalha, para logo mais ganhar a guerra.

Não como carne vermelha. Não como manteiga.

Não bebo aguardente, não bebo refrigerante. Não gosto do azul junto ao vermelho. Não quebro a palavra.

Não me traio, tampouco. Não corro porque não gosto.

Não prendo, não fecho, não troco. Não pinto, não grito.

Não gosto de obrigações.

Não sofro de amores por religião. Não à comida gordurosa.

Não à vida vivida num buraco. Não à pobreza política. Não à míngua da língua.

A partir desse desabafo, em que um dos intérpretes expressou a vontade de se afirmar pela negação, propus um experimento em que esse mesmo intérprete se colocasse ao centro como alvo, enquanto os outros desafiariam suas contestações e suas certezas inabaláveis, correndo em sua direção, atacando-o e questionando o quanto ele consegue sustentá-las.

Quem - 01 jogador contestador que se afirma pela negação e um coletivo que o

desafia.

Onde - Todo o campo de jogo definido por um tabuleiro quadricular com um ponto

central em foco.

O quê - 01 ao centro reage esquivando-se e os outros atacam-no, investindo contra seu

corpo.

Regra - Não é permitido investir simultaneamente.

Os primeiros experimentos revelaram que as ações davam-se de forma caótica, gerando uma movimentação confusa no espaço, no qual não era possível discernir ou perceber, com clareza, as iniciativas que se sobrepunham sucessivamente. Também, o jogador contestador não conseguia verbalizar as imagens, anteriormente, criadas em suas negações, enquanto esquivava-se e, como seus adversários eram numerosos, era quase impossível responder a todas as investidas, sobretudo quando davam-se pelas costas, gerando um jogo,

extremamente, desequilibrado. A situação, dessa forma, reduzia-se e esvaziava-se em uma mecânica conturbada de deslocamento no espaço e que não oferecia referências claras para um entendimento comum do conflito exposto.

Propus um exercício em que cada um, à sua vez, colocava-se de olhos fechados no centro de uma roda e purgava suas negações em um fluxo contínuo de imagens, sem se preocupar com o sentido lógico da fala, expondo-se sem censuras ou críticas. Quando a fala esgotava-se, abria os olhos e incitava um a um para o confronto, convidando-os com o olhar.

Isso revelou que o jogo necessitava de um espaço mais restrito de ação, onde a proximidade permitiria uma comunicação mais direta para o desafio e uma resposta efetiva à ameaça da colisão. Percebi que alguns se viram inibidos em expor seus recalques ou, quando isso não acontecia, não distinguiam o universo imaginário do real, entregando-se a uma revelação que não os distanciava da cena, sucumbindo e fragilizando-se. Concluí que nem todos estariam aptos para esse desafio.

Quanto à dinâmica da ação, era preciso que o desafiador se mantivesse estático, tal qual um alvo, enfatizando a precisão da esquiva. Quando ocorria o contrário, pondo-se em movimento e antecipando suas reações, dissolvia o risco por se tornar inatingível. Outra questão que se impunha era a duração, pois não havia nada que delimitasse o tempo nem as chances de reverterem-se os papéis. Como solução para a integração dos jogadores, que não estavam aptos para o jogo, criou-se um time de jogadores coadjuvantes periféricos com função diferenciada. Tudo isso orientou uma redefinição da proposta:

Quem - 01 jogador contestador que se afirma pela negação, 05 jogadores que o

desafiam e 03 periféricos.

Onde - Em um ringue quadricular, definido por uma área restrita demarcada por

quatro bancos.

O quê - O jogador contestador ao centro incita e reage, esquivando-se, os outros cinco

atacam investindo com seus corpos.

Regras - Ao jogador que ataca, somente, é permitido investir quando invocado pelo

olhar do contestador, devendo pretender atingi-lo, tendo o corpo como um projétil, sem tentar segurá-lo. A qualquer momento, os atacantes podem deixar o ringue, trocando de lugar com um dos jogadores periféricos. Esse, entretanto, deve posicionar- se de costas para o contestador de forma a não oferecer seu olhar ao desafio, anulando o convite ao ataque que deve ser redirecionado a outro jogador.

O jogador ao centro deve permanecer parado, pronto para reagir e somente ele poderá decidir quem ocupará seu lugar ao permitir ser atingido.

Progressão – Um jogador de pé ao centro inicia o desafio de olhos fechados, expondo

suas injúrias, até que dirige seu olhar a um dos atacantes sentado, convocando-o. Uma vez atingido o alvo, legitimamente, seja porque não conseguiu esquivar-se ou porque se permitiu atingir, trocavam-se os papéis e aquele que o interceptou assumia o centro. Todos, então, devem trocar, rapidamente, de posição e recomeçar o jogo.

Desfecho - A partida se dá por terminada quando houver quatro revezamentos na posição central de contestador, não sendo vedada a recorrência de um mesmo jogador nesse papel em uma mesma partida.

O Jogo assume um caráter misto quando, eventualmente, um dos integrantes do time periférico ocupa o espaço de um atacante, reduzindo o número de jogadores aptos a desafiar, confundindo o contestador. Esse, ao abrir os olhos, pode deparar-se com as costas de um jogador, criando-se, assim, uma ação antagônica paralela.

Outros jogos privados, coletivos e mistos foram explorados a partir de uma mesma inquietação: o que é o amor? O que é sexo? Constatamos que as relações que estabelecemos com o outro, afetivas ou não, são, necessariamente, permeadas pelos diferentes significados do amor, suas contradições e oposições. Estimulados a estabelecer parcerias, por meio de relações de cumplicidade ou de conflito, foi quase impossível evitar a recorrência de imagens que traziam fortes referências aos pactos de amor.

Percebi que isso persistia, também, nas falas dos intérpretes, pois quando indagavam- se sobre outras questões referentes ao incompreensível, ao que se carece, aos temores, às recusas, à perda e à morte, sempre estava presente uma referência ao amor. Reconheciam-no como essencial, como aquilo que dá sentido à vida, razão do hoje e motivo para o amanhã.

As idéias transcritas para o papel expressavam o quanto não se quer, jamais, deixar de poder amar, como, tampouco, se quer sofrer por infidelidade ou mentira. O quanto não se quer ficar só e o quanto inquieta, consome e preocupa amar loucamente. “Doença de amor, doença de paixão, dolorosa, mas incontornável. Uma espécie de sentimento trágico da vida derivado de uma tensão entre pólos opostos e perfeitamente complementares” (MAFFESOLLI, 2002, p.76).

Se, para alguns, o amor é só felicidade, arrebatamento e coração batendo forte, para outros não há imunidade à sua complexidade. É, igualmente, sofrimento, lágrimas e dor. Estabilidade e instabilidade. É cuidar, maltratar, tomar, dar, ficar ou não ficar, tranqüilidade e intranqüilidade, confiança e desconfiança. É perdoar, conceder, compreender, aceitar. Como é difícil e, no entanto, como faz falta. Se for compreendido como inevitável, imprevisível e casual, paradoxalmente, é considerado como aquilo que mais se procura, como principal anseio do homem. Para quase todos, é companheirismo, cumplicidade, parceria. É troca, é sentir a falta quando não se está perto. Não é matemático ou lógico, é irracional e inexplicável, e não foi inventado por alguém.

Disso decorreu o desenvolvimento de mais três jogos pautados sobre distintas relações amorosas.

JOGO - "Olhar" (privado)

Estabelecer uma verdadeira conexão com o olhar implica em despojar-se de pudores e permitir que o outro penetre em uma intimidade profunda e incógnita. Nessa perscrutação recíproca, podem emergir as mais sensíveis expressões de nossos afetos. Pensando em quebrar as defesas que esfriam o nosso olhar, sugeri uma brincadeira em que, a partir do olhar, os jogadores desenvolveriam uma ação livre no espaço, travando uma comunicação visual dialógica. Entre as diferentes respostas obtidas, surgiu a idéia de um, deliberadamente, obstruir a visão do outro com o seu próprio olhar.

O jogo que poderia ser apenas uma brincadeira, tornou-se incômodo e impertinente, causando pouco a pouco intolerância e mau humor. Logo percebi que aquele que cerceava demonstrava, antes, sua debilidade do que sua força. Isso me pareceu bem sugestivo. É como se ele dissesse: eu quero que você só tenha olhos para mim, sendo que, implícito nesse gesto imperativo, estava sua necessidade de ser visto e notado.

Pode-se compreender o sentimento de posse e o ciúme como ambíguos. Se, por um lado, desperta em nós uma força cerceadora e opressora que impõe-se, arbitrariamente, sobre a pessoa amada, por outro revela nossa fragilidade, insegurança e solicita exclusiva atenção para reafirmar o bem querer. Essa contradição alimenta o equilíbrio entre a satisfação e a insatisfação geradas pelo ciúme. Equilíbrio regulado pelo grau de aceitação e tolerância dos amantes às diferentes razões que dão existência a tal sentimento.

Inspirados nesse paradoxo que tempera o amor, desenvolvemos o jogo do olhar com um casal de intérpretes. Ela iniciava, fixando seu olhar em qualquer ponto no espaço, ele então colocava-se à sua frente, obrigando-a a olhar para ele. Para desfazer-se do intruso, ela projetava e fixava seu olhar em um novo ponto, muitas vezes, deslocando-se para outro lugar,