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Perguntas sem respostas: preparando para a criação

3.2 Jogos temporários: a estrutura em jogo

3.2.1. Perguntas sem respostas: preparando para a criação

Como mencionei, há tempos reflito sobre algumas idéias que não se concatenam, entretanto, percebo que tecem uma rede de associações que vem permeando toda a minha recente fase artística como criadora. Nesse processo, especialmente, os conteúdos que deram sentido à criação estavam ocultos em meu inconsciente. De fato, eu ainda não havia me dedicado, analiticamente, sobre essas inquietações, refletindo mais profundamente sobre elas, nem tampouco o elenco; apenas nos propusemos a deixar fruir as impressões adquiridas sobre o que veio a ser nosso mote de criação: a impermanência.

Estava, de alguma forma, conectada com o que expressa Maffesolli (2004), ao falar de um desejo de “presentidade”, de exaurir a vida no presente como expressão da consciência de nossa impermanência. Um desejo de excessos, de riscos, de catarses purgatórias, como resposta ao recalque dos impulsos da sombra que nos habita, essa que corresponde à natureza antagônica das coisas, de tudo e de todos nós, fundada no antagonismo primordial de toda existência, ou seja, na morte como complemento essencial à vida. Da morte em vida, que em nós manifesta-se no corpo biológico, na vida social, afetiva e psicológica. São as lutas perdidas, frustrações, fracassos, tombos, amores desfeitos, violência, agressividade, repressão, sofrimentos, guerras, genocídios, preconceitos e tudo o mais que poderia estar em uma lista infindável de males e imperfeições que contradizem e contrapõem-se ao ideal do bem como valor absoluto.

Tendo essas motivações de fundo para minhas indagações, formulei as seguintes perguntas sem respostas para que os intérpretes fizessem um exercício reflexivo sobre a sua compreensão da existência: o que me inquieta e me incomoda, me consome e me preocupa? O que parece nunca se resolver? O que não pode ser digerido, mastigado, não se dissolve na

compreensão das coisas? Como sinto meu corpo, o que eu sou, o que eu gostaria de ser? O que eu não quero na vida, o que eu nego ou abomino, ou recuso, ou não aceito e me afasto? O que é o sexo? O que é o amor? O que é a morte?

Propus um exercício de livre associação, sem preocupação com um pensamento elaborado, até mesmo porque eram perguntas sem respostas. Queria suscitar a manifestação de imagens, sensações e sentimentos, possíveis fios condutores de um pensamento comum.

Era um jogo anônimo, pois não me interessava revelar aquelas individualidades e suas intimidades perante o coletivo, mas descobrir a pessoa humana e sua natureza, aspectos de um eu composto, contraditório, múltiplo, que implica alteridade.

Mesmo tendo sido um exercício de superfície, realizado com alguns pudores, colocando-me apenas diante da evidência do óbvio, essa atividade permitiu-me ver que é, justamente, na banalidade da nossa percepção, nos lugares comuns, em tudo o que todos queremos ou não, em nossa auto-imagem sempre mais positiva do que realmente somos, nos mesmos medos e sonhos que ainda se afirmam, incongruentemente, as idéias ditadas como verdades absolutas para um mundo cuja perenidade está longe de ser uma certeza.

Assim, todos demonstraram o desejo de apartar de suas vidas os males que os afetam. A morte é única certeza, compreendida como transformação, como passagem, o futuro desconhecido colocado no lugar do definitivo, do nunca mais, ou mesmo o momento da grande ascensão; o prazer do sexo é sublimado pelo amor e justificado pelo instinto. O amor é, para alguns, a virtude maior, a elevação, a plenitude, a suprema felicidade nunca alcançada, para outros, a complexidade que envolve conflitos. Alguns poucos deixaram entrever, nas frestas e nas brechas de sua fruição espontânea, a dimensão antagônica das coisas e de si mesmos.

Extraí, de pronto, uma imagem recorrente: a dos limites à realização de uma vida plena, das impossibilidades e de tudo o que representa negatividade. Limites do corpo, do espírito, das relações, da sociedade e do espaço.

Toda a cultura ocidental repousa na superação progressiva das limitações, sendo essas as diversas perdas, onde a morte é o ápice.

Acredito, entretanto, que só existe vida se existe determinação. A vida não pode ser indefinida nem infinita; ela precisa de limites. Tal como um marco que delimita a terra cultivada em relação ao indefinido da terra inculta. O marco constitui uma violência. Violência que é fonte de vida. Vemos nisso o papel fecundante da limitação. Assim como,

para fundar uma cidade, traça-se uma linha que demarca, portanto, força da limitação. Mais uma vez, a limitação permite ser porque determina alguma coisa ou alguém. Igualmente, as regras do jogo social são limites que permitem a convivência.

Nesse sentido, a violência é um mal fecundo, reconhecível como fator indivisível do dado mundano. Maffesolli (2004, p.57) lembra-nos que a energia do vitalismo repousa nessa antinomia dos valores. A vida deriva, antes, da tensão de forças contraditórias do que da submissão ou prevalência de umas sobre as outras.

O mesmo no que diz respeito à vida cotidiana. Ela é permeada por conflitos, obstáculos e limites que lhe conferem toda a sua intensidade. “É mesmo possível que as múltiplas vicissitudes expliquem o impulso cego que projeta em direção à vida. Um querer- viver obstinado, preferindo a existência tal como ela é, apesar de tudo” (MAFFESOLLI, 2004, p.71).

Sugeri, então, que explorássemos a idéia de limites sob esse ângulo, compreendendo que o que limita e cerceia é, paradoxalmente, o que protege e permite ser. Essa idéia foi usada como mote de vários experimentos que se fundaram na tensão do que se é e do que gostaríamos de ser. Essa relação, essencialmente contraditória, sugeriu diversos exercícios que propunham explorar oposições em complementaridade, aceitação e negação.

Também, outra inquietação surgiu com certa evidência, proporcionando o elo que eu precisava para trazer à tona em meu referencial temático de fundo: o tempo que passa. Esse sentido da efemeridade, da finitude das coisas que constrói cada instante de nossas vidas tornou-se o eixo norteador de nosso percurso. O jogo, como princípio gerador e formador da estrutura da composição cênica, ganha sua pertinência no trabalho, porque impõe uma conexão com o presente da ação, do aqui e agora, ressalta a urgência e o desejo de desfrutar cada momento da vida.

Se a instabilidade da vida decorre da inexorabilidade e imprevisibilidade de sua finitude, - vida que se esvai no curso do tempo -, e determina a instabilidade do ser, expressa em suas contradições essenciais, como encenar tais contradições ou esse equilíbrio instável? Como reconhecê-las como sombra e negatividade necessária, imprescindível à dinâmica da vida, à pulsão vital, num mundo que ainda se ressente da hegemonia de valores que recalcaram o mal e preconizaram sua extirpação em favor da falácia do homem perfeito? Indagações que suscitaram algumas indicações de exercícios que se desenvolveram com a construção de jogos.

Era necessário permear a experiência com outra reflexão que pudesse expor, mais claramente, o significado de um processo criativo centrado no intérprete. Procurei, em diferentes momentos, compartilhar com o elenco a minha compreensão do papel de cada um na construção do trabalho, considerando, sobretudo, a perspectiva de como pretendia conduzi- lo.

Trazia, de forma recorrente, a idéia de que deveriam criar uma disponibilidade criativa, aguçando suas percepções pelas sensações, pela imaginação e pelas emoções. Falava- lhes sobre meu desejo de vê-los mergulhar na experiência por um caminho intuitivo e sensível de transformação, de transe criativo sem pudores, permitindo-se provar o sabor de sentirem-se alterados, em permanente contato com a totalidade de seu corpo.

Tentei despertá-los para a compreensão de que a qualidade artística de uma ação poderia advir da sensibilização do corpo, obtida pela disposição para sentir, verdadeiramente, cada gesto ou movimento. Isso, por si só, esboçaria uma linguagem de movimento poética que distinguir-se-ia daquela cotidiana ou técnica pelas sensações suscitadas por esse desfrute. Sugeri, ademais, que aceitassem, desde os primeiros momentos do aquecimento, entrar em um campo de jogo imaginário como se eles estivessem em cena, buscando intenções claras, precisão, sem desperdício de energia e nada gratuito. Percebo que essa proposta, em muito, assemelha-se à idéia de zona de ensaio criada por Brook (1999), a partir da utilização de um tapete. Eu precisava ver o quanto, realmente, eles sustentariam uma conexão com o imaginário. Qualquer desconexão só seria possível fora do campo de jogo. O aquecimento, assim, deveria desenvolver-se tal qual uma atuação e, igualmente, ser um momento de postura investigativa, de imersão, de interioridade e inteireza.

Mesmo que estivéssemos em um espaço privado de uma oficina, esperava que os intérpretes se sentissem sempre convocados a assumir a mesma atitude que, supostamente, dispunham em cena, sujeitos ao olhar de observadores. Todavia, essa percepção demorou a chegar. De fato, não perceberam desde o início que todas as etapas teriam implicação na construção do espetáculo. Isso tornou-se evidente quando Evandro Macedo manifestou, durante a entrevista concedida para esse estudo, seu desentendimento:

Eu fiquei surpreso e comentei até com alguns. Porque a gente tinha no processo um período de workshop, então eu me dividi: meu período de workshop era o de reconhecimento, de um pouco de entendimento sobre o que é isso, sobre o processo pra chegar à obra. Mas, uma análise que eu fiz é que aquele workshop já era parte do processo de criação da obra. Aí, eu caí na real! Já estou no processo... Quando caiu a ficha eu disse: “não! Espera

aí, eu tenho que acordar fazendo o jogo, já!”. Então, a partir daí, eu passei o período todo de trabalho acordando e entrando num jogo.

Como o laboratório experimental era precedido de uma aula de técnica clássica, que fazia parte da rotina da companhia, passei a propor um procedimento de preparação para a atividade dirigida aos sentidos. Enfatizando a percepção da respiração, do tato pelo contato do corpo sobre o solo, alertando para a não fragmentação dos movimentos, pretendi despertá-los para outra qualidade de ação, distinguindo-a do objetivo estrito de preparação articular e muscular, sem, contudo, perder de vista o propósito de acomodar o corpo, alongando-o, de promover sua prontidão e de acionar o sistema cardiovascular.

Esse procedimento cumpre as seguintes fases: no primeiro momento solicitei a concentrarem-se na respiração, sentindo como se o fluxo de ar percorresse todo o corpo, abrindo canais de sensibilidade obstruídos pela tensão, dilatando-os, internamente, e expandindo-os para além das extremidades. Disso resulta o desejo de moverem-se. Inicia-se, então, o segundo momento, quando agregam o sentido da ação à consciência da respiração lenta e contínua, em seus mínimos movimentos de expansão.

Na fase seguinte, essa conexão centrada no corpo estende-se ao espaço à medida que, respondendo à necessidade de acomodação, o corpo transita por diferentes posições. Naturalmente, esse movimento, que nasce internamente, conduz o corpo, promovendo seu deslocamento. Ininterruptamente, sem perder o fio condutor estabelecido desde o primeiro momento com a respiração, são estimulados a explorarem as possibilidades desse deslocamento em suas diferentes formas, planos, direção, sentido, andamento e ritmo. Assim, surgem distintas tensões e qualidades contrastantes na ação.

Nesse momento, imagens antagônicas são evocadas como forças que se polarizam em equilíbrio dinâmico e em constante reversibilidade: angélico x demoníaco; céu x terra; bem x mal; solar x noturno; escuro x claro; sombra x luz; transe x consciência; sonhos x pesadelo; fantasia x realidade; doce x amargo; alegrias x desgraças; felicidade x amargura; controle x descontrole; equilíbrio x desequilíbrio; proteção x desamparo; atração terrena x sede de infinito; finitude x eternidade.

Então, proponho que cada um defina, no espaço da sala, um território de investigação privado, para que nessa última etapa possam experimentar a imersão em um estado alterado de percepção e conexão, exercitando a capacidade de integrar ação, emoção e imaginário num fluxo livre de impulsos e respostas.

Passado esse momento, foram induzidos a diluírem suas construções e a conectarem- se com o coletivo, buscando interação pelo olhar. Solicito, então, que caminhem no espaço, desenvolvendo um deslocamento contínuo de forma que eu possa introduzir algumas propostas de jogos sem interromper a ação.

Processualmente a essa preparação, fui agregando outras indicações no sentido de adequá-la mais especificamente, à experiência que estaria sendo proposta a cada dia ou às necessidades que apresentavam-se no decorrer dos laboratórios. Assim, ora explorei a sonoridade da respiração, ora a progressão ascendente de movimentos que partiam do corpo estendido sobre o solo, ora, ainda, a sintonia do grupo integrado em uma ação comum ou mesmo estudos de elementos de movimento presentes nos jogos que eram experimentados.

Em entrevista, os intérpretes revelaram como o trabalho de preparação desencadeou reações defensivas por parte de alguns que ofereciam, consciente ou inconscientemente, resistência à proposta, impedindo, muitas vezes, que o grupo partilhasse experiências de maior profundidade. Por exemplo, Paulo Fonseca destaca a atitude de olhar como um aspecto determinante para o estabelecimento de uma sintonia coletiva que distinguiu o trabalho, conferindo-lhe um sentido especial, uma vez que o olhar interferia diretamente nas relações em cena:

Tinha uma questão de me olhar e também olhar os outros. Saiu do lugar comum porque eu não tinha que ficar em cena parado para começar. Não tinha isso, o jogo já estava acontecendo. Eu tinha que começar o jogo com meus colegas e isso tinha que já estar exposto.O mais difícil para mim era ter o olho do outro, contar com o olho do outro para algo acontecer, para esse imprevisível acontecer. Sim, porque os olhos saíam do foco. Se eu não tenho foco, não tenho nada, eu não estou participando, eu não estou atento à situação, eu não estou jogando. É uma dança normal com o olho girando em torno do [...] nada.

Joffre Santos analisa a ressonância dessa vivência no coletivo ao mesmo tempo em que pondera sobre o momento vivido:

As pessoas se conheceram, se bateram com elas mesmas, tanto quanto pessoas quanto intérpretes, quanto artistas cênicos, quanto à cena. Se a gente fosse generoso suficiente e pudesse se expor a um ponto total, aí você teria um espetáculo totalmente puro de movimento. Agora é preciso ter [...] não sei se um elenco mais preparado [...] seria um momento talvez de um elenco, porque tudo é um momento, sabe? [...] Pessoas que tivessem com essa predisposição de se dar a esse ponto, porque é muito difícil você se expor, mesmo você vivendo com colegas há anos, é muito complicado. Não estava todo mundo na mesma viagem. Se fosse montado em outro momento, talvez agora, não sei. Teria que embarcar todo mundo...