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O corpo dramático: imaginário, emoção e ação

Ora, os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa de que se falou, caíam desfalecidos. Nesse estado, acreditavam sair de si pelo processo do “ékstasis”, êxtase. Esse sair de si, numa superação da condição humana, implicava num mergulho em Dioniso e este no seu adorador pelo processo do “enthusiasmós”, entusiasmo. O Homem, simples mortal, “ánthropos”, em “êxtase e entusiasmo”, comungando com a imortalidade, tornava-se “anér”, isto é, um herói, um varão que ultrapassou o “métron”, a medida de cada um. Tendo ultrapassado o métron, o anér é, ipso facto, um “hypocrités”, quer dizer, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, isto é, o ATOR, um outro (BRANDÃO, 2001, p.132).

O sentido de transpassar e de romper limite, decorrente desse fragmento, permite identificar, nas raízes da tragédia, – portanto, do drama –, o significado da arte do ator. Afinal, no movimento de transformação, de construção de um “outro”, o ator procura romper com padrões e condicionamentos de sua imagem corporal e de sua expressão somática. Consciente disso, penetra em si mesmo, em seu imaginário, nas emoções e na memória, a fim de

encontrar os recursos de que necessita para moldar o “outro”, a personagem. Então, extraí a matéria-prima de sua criação.

No meu entendimento, essa imersão representa a passagem para outro nível de percepção de si mesmo e da realidade que, paradoxalmente, quanto mais fundo alcança, mais remete à sensação de alçar estágios mais elevados de sensibilidade. Nesse momento em que as faculdades sensitivas do corpo aguçam-se, emerge o corpo dramático impregnado de potencial para dar vida a situações imaginárias, gerando ação dramática, entendida como a “totalidade dos atos físicos, emocionais e espirituais” (ROCHA FILHO, 1986, p. 26) que emanam da presença do intérprete.

A idéia, ora descrita, encontra referências no trabalho de pesquisas experimentais de Grotowski, da década de 1960, posteriormente publicadas em Em busca de um teatro pobre, que vê o ator como “aquele indivíduo que se engaja na investigação de si mesmo para tornar- se um criador […] até aflorar sua verdade pura” (GROTOWSKI, 19714 apud JANUZZELI, 1992, p. 24). A porta de acesso para esse processo consiste em reconhecer o material vivo das associações, das correspondências entre experiências vividas, na busca de evocar a memória corporal do ator: “As recordações são sempre reações físicas. Foi a nossa pele que não esqueceu, nossos olhos que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar dentro de nós” (GROTOWSKI, 1971, p. 172).

A imagem da força expressiva dessa memória orgânica, viva no corpo do intérprete, aparece dimensionada nas idéias visionárias de Artaud. Na obra Um atletismo afetivo, ele afirma que “toda emoção tem bases orgânicas. É através do cultivo da emoção em seu corpo que o ator faz a recarga da densidade de sua voltagem” (ARTAUD, 19565 apud ESSLIN, 1978, p. 81). No ensaio O teatro e a peste, ele compara os efeitos da peste no organismo ao ator dominado por suas emoções:

O estado do pestífero que morre sem destruição da matéria, tendo em si todos os estigmas de um mal absoluto e quase abstrato é idêntico ao estado do ator integralmente penetrado e transtornado por seus sentimentos, sem nenhum proveito para a realidade. Tudo no aspecto físico do ator, assim como no do pestífero, mostra que a vida reagiu ao paroxismo e, no entanto, nada aconteceu (ARTAUD, 1999, p. 20).

Suas idéias – que servem à defesa de um teatro cuja função primordial é visar algo profundo, universal e significativo – encontram eco na prática de diversos criadores /

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GROTOWSKY, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Tradução de Aldomar Conrado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

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pensadores teatrais. Como exemplo disso, cito, mais uma vez, Grotowski (1971, p. 74), que identifica sua concepção de ato total com as metáforas do pensamento artaudiano:

Ele [Artaud] enfoca algo que devemos ser capazes de atingir através de caminhos diferentes. Refiro-me ao ponto mais importante da arte do ator: que o ator deve atingir (não tenhamos medo do nome) um ato total, que faça qualquer coisa com todo o seu ser, e não apenas um gesto mecânico (e, portanto, rígido) de braço ou de perna, nem uma expressão facial ajudada por uma inflexão e um pensamento lógico […]. O ator não deve usar seu organismo para ilustrar “um movimento da alma”; deve realizar este movimento com seu organismo.

Estabelecendo outra correspondência, arrisco-me a dizer que a idéia de ato total vê-se relacionada à forma de atuação do bailarino-intérprete, pesquisado por Rodrigues (1982, p. 19), professora do Instituto de Artes da Universidade de Campinas (Unicamp):

Há uma dádiva do sujeito, ele está inteiro em cada fragmento de cena, o conteúdo do espetáculo faz parte dele. No entrelaçamento sujeito- personagem, o bailarino não interpreta, mas vive no seu corpo a vida dimensionada pelo espetáculo, sem restrições.

Entregando-se, verdadeiramente, o intérprete coloca-se em posição diametralmente oposta à imagem de um bailarino repetidor. Em vez de ser subserviente, instrumento da vontade do diretor/encenador, ele dispõe de todas as suas possibilidades criativas e permite que sua “humanidade” possa reger seu desempenho. Tal disponibilidade remete, mais uma vez, ao trabalho do ator santo, postulado por Grotowski (1971, p. 22-23):

A realização desse ato ao qual nos referimos – a autopenetração, a revelação – exige uma mobilização de todas as forças físicas e espirituais do ator, que está num estado de ociosa disponibilidade passiva que torna possível um índice ativo de representação. A autopenetração, o transe, o excesso, a disciplina formal – tudo isto pode ser realizado, desde que nos tenhamos entregado totalmente, sem defesas. Este ato culmina num clímax. Traz alívio. Nenhum desses exercícios nos vários campos do treinamento do ator deve ser de superfície.

Outro princípio, de algum modo similar a esse ideal, norteia a metodologia de trabalho do Lume (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp), criado por Luis Otávio Burnier. Trata-se da predisposição do ator à doação de si mesmo, de forma necessária e imprescindível. Doar-se no sentido mais profundo do seu ser envolve os recantos mais íntimos e escondidos da alma. No Lume, o treinamento cotidiano do ator é dirigido no sentido de trabalhar os laços fundamentais do corpo com o espírito, assim como o modo de transformar suas emoções em corporeidades.

Esse sentido de entrega e totalidade é compreendido por Viola Spolin como a presença viva necessária para atuar. Requer uma atitude de receptividade a tudo e a todos e de conectividade com o presente, capaz de produzir uma força de vida, um fluxo contagiante:

O verdadeiro desempenho abre os jogadores para experiências mais profundas. Quando chega esse momento, é aparente para todos. É o momento em que o organismo total trabalha com sua capacidade máxima aqui e agora! [...] criando um momento de grande estimulação por todo o teatro (SPOLIN, 1992, p. 30).

Todos esses pensamentos apontam para a minha compreensão de que o intérprete encontra a plenitude de sua expressão quando se embrenha no íntimo do seu ser em busca da autonomia do sentir, do pensar e do agir. Isso representa o rompimento das barreiras que alienam a mente e o espírito do corpo ou, antes, a profunda percepção de seus intrínsecos elos. O domínio e a integração dessas faculdades constituem condição essencial ao corpo dramático, que sintetiza a total disponibilidade do intérprete para a criação.

Em outra parte do mundo, a prática do Butô japonês também exige a disponibilidade expressiva do corpo, embora seja distinta a perspectiva: o sentido primordial é a desconstrução do corpo do dançarino. Transparente, permeável, em estado de transformação, o corpo morto (como é chamado) mostra-se receptivo aos estímulos do mundo que o cerca, aberto a tudo que possa vir a se expressar por meio dele. Greiner (1998, p. 89) assim o descreve:

O corpo morto é um corpo que trabalha em leis particulares […]. Trabalha com processos invisíveis emprestados de outros universos de criação, como aqueles que coexistem em nosso corpo e não aparecem com clareza […]. O corpo morto é ainda uma afirmação da vida. A vida como replicação (que faz parte de todo ser vivo) e não como vida, especificamente de ser humano. O corpo morto é o receptáculo do lugar onde está, dizia Min Tanaka.

Nessa concepção, vislumbro mais claramente a confluência que se dá entre a criação artística – como obra do ser humano – e a Criação expressão de tudo o que é vivo, da própria existência. Essa relação intrínseca ao ato de criar reafirma o sentido da unidade primordial do universo. Vale mencionar, ainda, algumas pesquisas recentes que trazem visões diferenciadas do corpo e de sua expressão cênica, mas que, igualmente, fazem supor um processo de profunda transformação. Cito, a título de exemplo, o trabalho de Demian Reis, pesquisador formado Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que desenvolve a idéia de “corpo comunicador”. Ao referir-se ao potencial cênico impregnado, voluntária ou involuntariamente, no corpo como um conjunto de qualidades que atuam informando e formando a identidade corpórea, imprimindo nele uma qualidade cênica

específica, Reis (1999, p. 61) argumenta que “o ator precisa qualificar a sua cenicidade [...], permitir construir o corpo comunicador que ele deseja”. E acrescenta:

A construção de um corpo cênico envolve a prática de exercícios específicos, vivências corporais, técnicas corporais, o treinamento e a pesquisa; todas estas experiências confluem para o desenvolvimento de uma memória, consciência e vida muscular própria de e para cada ator (REIS, 1999, p. 63).

É válido ressaltar que o conceito de corpo construído para a cena, ou mesmo como elemento central na busca de novas formas de representação, surgiu nas artes cênicas do Ocidente no início do século XX, em decorrência das transformações no pensamento e na prática teatral. Essa evolução, seja no processo de formação, seja no desenvolvimento profissional do ator, deve ser tributada à contribuição efetiva de François Delsarte (1811- 1871), de Jacques Dalcroze (1865-1950) e, posteriormente, de Rudolf Von Laban (1878- 1958), que impuseram um novo olhar sobre o homem e o movimento.

O pensamento de Delsarte abriu novas perspectivas para a compreensão das conexões sensíveis intrínsecas ao movimento. Observando a correspondência entre comportamento e situações emocionais, ele reconheceu a ligação entre processo interior e expressão, desenvolvendo um sistema gestual baseado em uma classificação anatômica relacionada às emoções. Dividiu “o corpo em zonas. Mental (cabeça e pescoço), emocional e espiritual (tronco e braços) e física (bacia e pernas)” (GREBLER, 2006, p. 40), concepção precursora que auxiliou a percepção da função de cada uma de suas partes, noção até então negligenciada.

Disso decorreu a compreensão do sentido integrado atribuído ao corpo expressivo, preconizado por Laban e sucessores. Para Laban, essa integração significava um saber sentir, fruto do trabalho do tempo em cada indivíduo, que o permitiria perceber as afinidades entre a natureza e as coisas, permanentemente, em devir, compreender o movimento corporal inseparável das emoções e lograr alcançar o êxtase na dança, estado de consciência plena de sua existência, “no qual o dançarino doa tudo de si e perde a consciência de sua aparência exterior” (LAUNAY, 1992, p. 70). Laban considera essa a verdadeira experiência de dissolução de si dentro do fluxo corporal, momento único deslocado do tempo, turbilhonando o olhar de quem o encontra. Alteração e transformação que, em meu entendimento, tornam clara a distinção do corpo expressivo e da atitude ordinária.

Ao tecer considerações sobre o corpo no trabalho do ator, Bonfitto (1999, p. 41) recorda que “a idéia de corpo cênico [...] que se diferencia do corpo cotidiano, está presente no trabalho de muitos criadores teatrais do século XX: de Gordon Craig a Grotowski e Barba;

de Meyerhold a Peter Brook”. Tomando como exemplo algumas experiências desses diretores, ele chega à seguinte conclusão:

Várias podem ser as matrizes da criação do intérprete: textos escritos para cenas, textos não escritos para a cena, o trabalho com linguagens codificadas, improvisações não desenvolvidas somente a partir de temas, mas que utilizam diferentes referenciais tais como outras formas de arte, visando à construção da cena. Portanto, o contexto teatral não é composto de um teatro, mas de muitos teatros. Conseqüentemente não existe uma concepção a respeito do corpo do ator, mas sim diferentes concepções de "corpo", muitos "corpos" (BONFITTO, 1999, p. 42).

Foi sob essa perspectiva – a do artista que se utiliza da liberdade de realizar sua obra entre uma multiplicidade de caminhos e fontes de criação – que desenvolvi o trabalho com o corpo dramático: um meio para a construção da cena. Esse conceito diverge daquele presente no corpo cênico, construído e trabalhado, que demanda um processo de preparação técnico- corporal e o desenvolvimento de qualidades e habilidades. De fato, o sentido do corpo dramático privilegia o processo de sensibilização e estimulação mental, física e emocional por meio de um mergulho interior, permitindo emergir conteúdos subliminares e registros emocionais da memória corporal do intérprete que se dirigem à expressão objetiva na ação.

A criação resultante desse processo inclina-se a apresentar elementos singulares na medida em que encontra sua raiz na identidade do corpo criador. Isso me leva a supor que, quanto mais verdadeira a busca, mais honesta será a obra; quanto mais profunda a exploração, mais própria será a matéria que a constitui, não havendo como expressar seus conteúdos de outra forma.