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3.2 Jogos temporários: a estrutura em jogo

3.2.2 Delineando e significando os jogos

Percebendo que eu não alcançaria, de imediato, uma disponibilidade do grupo para lançarem-se em um mergulho no imaginário e sentirem-se imersos em uma atmosfera dramática, de sentidos dilatados e emoções despertadas, decidi, inicialmente, abordar a idéia de jogo a partir de princípios sensoriais de movimento que se desenvolvem em relações corporais.

Novamente, busquei enfatizar a sensação do tato e do contato, agora entre os corpos, associando minhas propostas às falas que surgiram do exercício de perguntas sem respostas. Assim, experimentaram jogos sensoriais de tocarem e serem tocados, insinuando intenções diversas: resistir ou retrair-se ao toque; aceitar e respirar com o corpo todo a cada toque; abraçar criando laços que nunca se rompem; esquivar-se e nunca se permitir tocar, entre outras possibilidades.

Sugeri que estabelecessem encontros e breves relações, quando todos circulavam livremente pelo espaço. Era preciso, todavia, que traçassem, de forma definida, seus percursos para proporcionar possíveis interseções em jogos de percurso. Proteção, provocação e dominação surgiram como motes de abordagem. Os intérpretes foram percebendo que a interação do par demandava uma precisão e clareza de intenções e que uma ação tranqüila evitava ruídos na comunicação, propiciando simplicidade e desenvoltura aos movimentos.

As dificuldades na realização dos exercícios correspondiam à idéia de limitação, manifestada em suas inquietações reflexivas. Para tirar proveito dessa evidência, passei a elaborar algumas propostas motivadas pelos conceitos de forças de imposição ou jogos territoriais. Experimentamos tais opções: criar obstáculos à passagem do outro; dificultar o livre fluxo pela iminência do choque; impingir pela força a ir; ou estar em algum lugar, obrigando os intérpretes a reagirem, desviando, esquivando, retrocedendo, resistindo, transgredindo e subvertendo essas forças.

Ainda sobre a impossibilidade, surgiu o plano de transportar um corpo que é levado por não ter vontade própria, que se move sujeito às circunstâncias ou é carregado. Ou, então, corpos que não se sustentam e abandonam-se à queda, amparados por alguém, sugerindo jogos que já insinuavam um caráter afetivo.

No enfoque de explorar antagonismos, vimos que cada exercício poderia ganhar conotações díspares. O corpo inerte daquele que é levado passivamente pode ser também o

oportunista que tira proveito das circunstâncias. A iminência da queda de um corpo pode suscitar a imagem do abandono ou do prazer pela vertigem. As analogias à trajetória da vida e às relações com o mundo, com o outro e consigo tornaram-se mais evidentes, a cada momento, nas metáforas dos jogos corporais.

Foi, então, que defini uma área delimitada no centro da sala como um campo de jogo que demarca o presente, sendo um dos lados externos à linha limítrofe o passado e o outro o futuro. Assim, eles atravessaram esse campo, criando referências ao agora, ao antes e ao depois.

Trabalhar a passagem do tempo, ou daquilo que não se detém, trouxe a urgência de viver cada instante com intensidade. Incitei-os a correr e pedi que se interceptassem para ouvir a pulsação, que ainda mais forte reafirmava a vida pela aceleração inevitável do coração. Esse experimento apontou, de um lado, para a percepção do pulso, do organismo vivo, e, de outro, para a escuta do que nos fala o coração, para os afetos.

Disso extraí um primeiro entendimento de como os jogos poderiam ocorrer em percursos efêmeros e impermanentes, expressando a inexorável passagem do tempo, onde tudo pode ser relativo no presente pelo sentido múltiplo e reversível das coisas.

Insinuou-se, dessa forma, uma primeira abordagem de estruturação e agrupamento dos jogos em: jogos de percurso, de passagem, de como se segue pela vida; jogos de relações, de como lidar com o outro e jogos individuais, de como eu me sinto diante da vida.

Se foi possível avançar no estudo das possibilidades de cada jogo a partir de seus princípios de movimento, a experiência careceu de explorar o conflito dramático que lhe fosse inerente, e que a princípio, em minha concepção, deveria ser o estimulador de toda e qualquer ação. Em algumas situações, o conflito insinuava-se no olhar, na respiração ou na atitude que se transformava, mas não era sustentado nas relações desenvolvidas por caminhos divergentes do meu desejo, pautadas, antes, pela busca da desenvoltura do corpo em movimento, do que por suas motivações internas.

Então, optei, nessa primeira fase de desenvolvimento do trabalho, por consolidar o entendimento dos mecanismos engendrados em cada situação de jogo, aguardando o momento propício para lançá-los em novas circunstâncias que os arrancassem da comodidade do conhecido, ou seja, daquilo que não suscita instabilidade e não os expõe ao risco. Mas, ainda não havia descoberto como fazê-lo.

Tentei ainda, nos jogos de relação, buscar para cada situação um argumento que sintetizasse o conflito, a questão primordial que motivou sua gênese. Trouxe imagens simples que pudessem dar suporte ao desenvolvimento da ação. Dessa forma, para um jogo realizado a três, onde o foco centrava-se na intenção de dilacerar, deliberadamente, uma relação que tendia à estabilidade, escolhi como subtexto a idéia "o que não é meu não é de mais ninguém". Para outro, que expunha a insistência em manter uma relação mesmo quando já não há mais reciprocidade, surgiu o apelo "não vá embora, não me deixe". Ou, "eu preciso te mostrar o que está diante dos teus olhos", para uma situação de resistência frente ao desejo de expor a verdade ao outro. Assim como, "eu não posso deixar que você siga por ali", em um confronto de vontades em que um tenta proteger o outro que ignora o abismo, entre outras situações.

Concluí essa etapa com um inventário de todos os jogos, até então, experimentados e colocados em fluxo contínuo, de modo que o término de um jogo apontava para o início de outro, conduzidos por livre associação e iniciativa dos intérpretes.

Pudemos constatar que logramos obter um primeiro esboço de estruturas de jogos fundadas em significados que demandavam maior aprofundamento e compreensão. Não houve imersão, mas uma concentração que permitiu perceber como surgiria a cena a partir do que, até então, ocorria como experimento.

Pude, nesse estágio, concluir que, se cada processo criativo desenvolve-se em função das circunstâncias, da maturidade, equilíbrio e afinidade dos participantes, demandando seus próprios procedimentos, essa experiência me revelou que eu precisava moldar-me àquele contexto sem desviar-me dos propósitos fundamentais da minha pesquisa, o que exigiu muito esforço da minha parte. Segui acreditando que a resolução de impasses poderia trazer outras possibilidades que, antes, não eram vislumbradas; tornei meus horizontes mais flexíveis, estimulando-me a manter a atenção em meu foco e, de alguma forma, busquei reafirmar a aplicabilidade dos princípios que investigo.

A segunda etapa inaugurava uma fase de novos desafios na definição e desenvolvimento de cada jogo, considerando sua progressão de um ponto de partida até o desfecho. Era preciso, de pronto, fazê-los compreender e introjetar as motivações que serviriam de subtexto às ações, fomentar a criação de imagens que os remetessem à outra realidade sugerida pelo jogo, onde o que se faz (ação) não se “conta” (narrativa) e nem faz como “se fosse” (simulação), apenas vive-se naquele momento. Afinal, para jogar é preciso ser e estar presente inteiramente e verdadeiramente no jogo, e somente jogando vão

revelando-se suas possibilidades, sua evolução e sua resolução. Ademais, os intérpretes careciam ser estimulados a empreender maior desenvoltura em seus movimentos, a explorar suas habilidades em resposta às situações propostas, construindo uma poesia corporal.

Discutimos os sentidos implícitos em cada proposta de jogo, identificando seus possíveis desdobramentos, ampliando a perspectiva de elaborar outras associações e metáforas, vislumbrando reconhecer a unidade da obra pela síntese dos seus significados. Pretendia, com isso, enriquecer nosso entendimento e outorgar a cada um a devida autoridade sobre o trabalho, pois seria, no corpo, movimento e intenção que se manifestaria o que teriam a dizer.

Tentávamos falar da indiferença, da alienação ou não percepção da vida que nos cerca, das preocupações que nos absorvem e nos desligam do presente. Questionamentos projetados no passado ou no futuro: como teria sido se...? Ou como será se...? São indagações que, tantas vezes, apartam-nos do instante vivido e geram atitudes de extrema individualidade, quando nada do que está à nossa volta interessa. Em contraposição a isso, necessitamos nos fazer ouvir e sentir, necessitamos manifestar nossas carências e não sermos ignorados ou ausentes.

Igualmente, inquietava-nos o sentido do aprendizado proporcionado pelo confronto com a adversidade. Parecia haver um consenso de que há que se seguir adiante, viver a dor para desfrutar o prazer do alívio. Os momentos passam, mas persiste o caminho no próximo passo. Driblar a adversidade pode tornar-se um jogo de prazer, pois oferece o desfrute como objetivo. Se os obstáculos se impõem para inibir a ousadia, a satisfação aumenta quando logra-se viver o que era impedido e ganha-se o sabor do extraordinário.

Ainda refletimos como as coisas são recorrentes e, entretanto, sempre distintas. A imagem concreta e imutável do percurso cotidiano de volta a casa se sobrepõe à idéia de que sendo os mesmos, somos, a cada dia, diferentes. São necessárias as mesmas vinte e quatro horas entre nascer e morrer o sol, e cada dia é outro. No movimento contínuo da rotação e translação, reside o paradoxo do que, apesar de se repetir, nunca é igual. Na aparente permanência das coisas, o eterno devir.

Se o sentido da impermanência pressupõe uma nova experiência resultante, ele implica, igualmente, na dissolução, na extinção do que antes era e se foi, perdeu-se, tornando- se ausência e falta. Por impotência, atribuímos dor a tudo que representa o inexorável, e, na maioria das vezes, sem percebermos que o tempo tudo retorna.

Sobretudo nas relações humanas se expressa a vontade de reter o tempo, seja na promessa de estarmos “juntos para sempre” ou na crença de que alguns encontros são predestinados. Sob essa perspectiva, estabelecem-se ligações em que se alternam, raramente em equilíbrio estável, papéis diferenciados. Quando um favorece, estimula e impulsiona, o outro avança gozando das oportunidades. Se um é passivo, inválido ou impotente, o outro suporta, carrega-o como a um fardo. Se um reprime e oprime, o outro vive sufocado e cerceado em seu crescimento, e assim por diante. Por outro ângulo, ao admitir a instabilidade das relações, o ser humano pode assumir um comportamento permissivo, como seduzir e causar rompimentos e dilacerações que, pode-se dizer, expressa a perversidade que nos exime da dor alheia. Visões que, de longe, aspiravam ser compreendidas como verdades absolutas.

Para favorecer ainda mais a assimilação de tais significados, alertei para os desenhos e trajetórias esboçadas em cada jogo. Percursos traçados no espaço como metáforas da existência. Corpos em trânsito, ora contínuos, ora em movimento intermitente, sempre de passagem. Finalmente, a síntese residiria no sentido de impermanência que permearia toda a obra, na qual as cenas poderiam ser compreendidas como momentos de um caminho sem qualquer linearidade. Isso, também, me permitiu compreender que o campo de jogo poderia ser como um tabuleiro, especificamente, delimitado no espaço, que poderia assumir formas diferentes a cada jogo.

A partir de rumos que traçavam diagonais, desvios em ângulos retos, serpentinas, ziguezague e espirais, eu insisti em propor nos laboratórios o exercício de integrar o pensamento, a ação e a emoção na livre improvisação de um percurso no espaço. Os intérpretes escolheram um lugar que denominei de ponto zero. Deveriam sempre retornar a esse ponto para recomeçar o trajeto, sem que, necessariamente, fizessem-no da mesma forma, podendo criar atalhos ou variar a velocidade, qualidade ou mesmo a natureza da ação, mas mantendo referências ao percurso original. Sugeri, ainda, que em cada trecho de suas trilhas experimentassem criar uma circunstância que pudesse expor o corpo a uma sensação, demandando uma disponibilidade para o sensível e para a imaginação. Pretendia, com isso, provocar um distanciamento das referências de padrões técnicos que, usualmente, ofereciam suporte ao desempenho do grupo, para suscitar respostas inusitadas.

Muitas imagens foram reconhecidas, de lugares opressores, inibidores e difíceis à amplitude desmedida do horizonte, porém nem sempre integradas às ações executadas. Isso evidenciou-se quando pedi para que, imóveis e de olhos fechados, pudessem refazer o percurso, compartilhando em voz alta a experiência e as sensações suscitadas no instante em

que o reviviam. Acreditando viver o que imaginavam, logravam apenas descrever o que viam ou como agiam, e por vezes, o que sentiam. Apenas um dos intérpretes colocou-se, mais claramente, em outro tempo e espaço e permitiu reagir-se, sensorialmente, e emocionalmente. Percebi, então, que essa noção não nasceria voluntariamente, e que só surgiria por meio do desprendimento do sentido lógico e racional do pensamento, possível pela imersão no imaginário, e isso, para o grupo, demandaria tempo.

O momento solicitava, portanto, outras estratégias que trouxessem o envolvimento e o desprendimento criativo. Procedi ao redirecionamento da preparação do corpo para a atividade, de forma a trazer, logo no início do trabalho, imagens e sensações que permeavam a criação, insinuando uma atmosfera propícia às experiências que sucederiam àquele momento em cada dia de ensaio.

Nessa instância, já era possível observar uma mudança na atitude de alguns dos intérpretes que se disponibilizavam criativamente. Redescobrindo caminhos singulares e sensíveis para acomodar o corpo, pareciam desprender-se mais facilmente dos padrões técnicos e funcionais de movimento aos quais estavam condicionados, investigando outras possibilidades. Ainda assim, não eram em número suficiente para despertar nos outros uma atitude criativa que os libertassem de uma perspectiva de êxito fundada, estritamente, na execução de formas harmônicas. Quando, realmente, buscavam o sentido e ênfase nas intenções, eles enfrentavam certa inibição na construção de uma poética corporal. Restringiam-se a princípios básicos de movimento sem oferecer outras possibilidades para o desenvolvimento do jogo. Era preciso despertar para o entendimento de que essas duas perspectivas, forma e sentido, não poderiam existir dissociadas.

Finalmente, dei-me conta que seria necessário exercer uma intervenção direta no desenvolvimento dos jogos. A evolução da ação só ocorreria em resposta a motivações claramente dirigidas. Sentia-me semeando em campos áridos e estava consciente de que poucos brotos vingariam. As imagens, situações e conteúdos apresentados pareciam não se multiplicar pelo questionamento dos intérpretes, pois não tomavam-nos para si, nem buscavam as respostas por si mesmos. Convoquei-os a realizarem leituras, a procurarem fontes que os nutrissem em suas reflexões e senti que isso só seria realmente produtivo com uma orientação, e não tínhamos mais tempo. Compreendi que o grupo havia se institucionalizado em moldes nos quais tais provocações não teriam eco. Assim, prossegui.